quarta-feira, 29 de junho de 2022

Genocídio: do Kristallnacht ao Holocausto




Em 9 de novembro de 1938, teve lugar na Alemanha um acontecimento que passou para a história com o nome de Kristallnacht. Lojas, lares e templos judeus foram atacados por uma multidão desgovernada, embora oficialmente encorajada e sub-repticiamente controlada. Houve destruição, incêndios, vandalismo. Cerca de cem pessoas foram mortas. A Noite dos Cristais foi o único pogrom em larga escala ocorrido nas cidades da Alemanha durante todo o Holocausto. Foi também o único episódio do Holocausto que seguiu a tradição secular da violência de turba contra os judeus. Não diferiu muito dos pogroms anteriores; praticamente nada a destaca na extensa lista de violência desse tipo que vai da Antiguidade, passando pela Idade Média, até as quase contemporâneas, mas ainda em grande parte pré-modernas Rússia, Polónia ou Roménia. Se o que os nazis fizeram com os judeus tivesse sido apenas Noites de Cristal e coisas do género, só teriam acrescentado mais um parágrafo, um capítulo no máximo, à crónica em vários volumes de emoções que degeneram em violência, grupos de linchamento, soldados que saqueiam e violam ao invadir cidades. Mas não foi isso que aconteceu.

A raiva e a fúria são deploravelmente primitivas e ineficazes como instrumentos de extermínio em massa. Elas normalmente se exaurem antes que se conclua a tarefa. Não se podem erguer grandes projetos sobre essa base. Certamente não projetos que visem para além de efeitos momentâneos como uma onda de terror.

Em nenhuma outra oportunidade, fora os regimes de Hitler e Stalin, tanta gente foi assassinada em tão pouco tempo. Esta não foi, porém, a única novidade, talvez nem mesmo uma novidade básica, mas apenas um subproduto de outras características mais fundamentais. O assassínio em massa contemporâneo caracteriza-se, por um lado, pela ausência quase absoluta de espontaneidade, destaca-se pelo propósito. É genocídio com um propósito. É a visão grandiosa de uma sociedade melhor e radicalmente diferente. É um elemento de engenharia social que visa produzir uma ordem social conforme um projeto de sociedade perfeita.

As vítimas de Hitler e de Stalin não foram mortas para a conquista e colonização do território que ocupavam. Muitas vezes foram mortas de uma maneira mecânica. enfadonha, sem o estímulo de emoções humanas — sequer do ódio. Foram mortas por não se adequarem, por uma ou outra razão, ao esquema de uma sociedade perfeita. Um mundo harmonioso, livre de conflitos, dócil aos governantes, ordeiro, controlado. Pessoas manchadas pela inerradicável praga do seu passado ou origem não podiam se adequar a esse mundo impecável, saudável e brilhante. Como ervas daninhas, a sua natureza não podia ser alterada. Elas não podiam ser melhoradas ou reeducadas. Tinham que ser eliminadas por razões de hereditariedade genética ou ideológica — por razão de um mecanismo natural, resistente, imune ao processamento cultural.

O efeito mais essencial do genocídio é a “decapitação” do inimigo. Espera-se que o grupo marcado, uma vez privado de liderança e centros de autoridade, perca sua coesão e capacidade de sustentar a própria identidade e, consequentemente, seu potencial defensivo. A estrutura interior do grupo sofrerá um colapso, reduzindo o grupo a uma coleção de indivíduos que podem ser então pinçados um a um e incorporados à nova estrutura administrada pelos vencedores, ou reorganizada à força como categoria subjugada e segregada, governada e policiada diretamente pelos gerentes da nova ordem.

As elites tradicionais da comunidade condenada constituem, portanto, o alvo primário do genocídio, na medida em que este vise de facto à destruição do povo marcado como comunidade, como entidade autónoma coesa. De acordo com a visão de Hitler para a Europa oriental como um vasto Lebensraum [espaço vital] para a raça alemã em expansão e de seus habitantes como futura força de trabalho escravo a serviço dos novos senhores, as forças de ocupação alemãs procederam à sistemática extinção de todos os vestígios da estrutura política e autonomia cultural nativas.

A escravização dos judeus nunca foi objetivo dos nazis. Mesmo que o assassinato em massa não tenha sido pensado desde o início como fim último, a situação que os nazis queriam era a efetiva remoção dos judeus do mundo e da vida germânicos. Hitler e seus seguidores não tinham uso para os serviços que os judeus podiam oferecer, mesmo como trabalhadores escravos.

É possível supor que a insistência nazi em fazer tudo no gueto pelas mãos dos judeus tinha como um dos seus perversos objetivos tornar o poder da liderança judia tanto mais visível e convincente. A população judia ficou virtualmente fora da jurisdição das autoridades administrativas normais (o que aconteceu gradualmente na Alemanha e de forma abrupta nos territórios conquistados), sendo atirada inteiramente e sem apelo nas mãos dos seus líderes correligionários, que em troca recebiam suas ordens de — e respondiam perante — uma instituição alemã similarmente alheia à estrutura “normal” de poder. Os princípios teórico-legais da bizarra mistura de autogoverno e isolamento do gueto foram enunciados e codificados em 1940 por Hermann Erich Seifert.

A liderança judia exercia um poder ilimitado sobre a população cativa, mas estava à mercê de uma organização criminosa livre de controle exercida pelos órgãos constitucionais do Estado. As elites judias desempenhavam, portanto, um papel mediador crucial na incapacitação dos judeus; de forma bem atípica para um genocídio, a submissão total de uma população à vontade desenfreada dos seus captores foi alcançada não pela destruição, mas pelo reforço da estrutura comunitária e o papel integrador desempenhado pelas elites nativas.

Paradoxalmente, portanto, a situação dos judeus nos estágios preliminares da Solução Final parecia mais a de um grupo subordinado dentro de uma estrutura normal de poder do que a de vítimas de uma operação genocida “ordinária”. Em notável medida, os judeus eram parte do arranjo social que iria destruí-los. Constituíam um elo vital na cadeia de ações coordenadas; suas próprias ações eram parte indispensável da operação total e condição crucial do seu sucesso. O genocídio “comum” divide os atores de forma inequívoca em assassinos e assassinados; para estes, a resistência é a única resposta racional.

No Holocausto, as divisões foram menos claras. Incorporada à estrutura geral de poder, com uma lista ampliada de tarefas e funções dentro dela, a população condenada tinha aparentemente uma gama de opções. A cooperação com os próprios inimigos jurados e futuros assassinos não escapava à sua medida de racionalidade. Os judeus podiam, portanto, brincar nas mãos de seus opressores, facilitar a tarefa deles e apressar a própria perdição, enquanto guiados em sua ação pelo propósito racional de sobreviver.





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