quarta-feira, 22 de junho de 2022

O ano de 1415 d.C.





No ano de 1415 deram-se duas batalhas que foram decisivas para o rumo de três quartos do mundo nos 500 anos seguintes nas mãos dos europeus. Um punhado de europeus avisou o mundo de que o tempo estava a mudar. Poucos anos mais tarde os canhões de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral, quando chegaram à Índia, puseram grande parte do mundo de pernas para o ar. Em Mombaça e Calcutá, no ano de 1498, os mercadores obedeceram ao poder de fogo.

Em 21 de agosto de 1415, os filhos de D. João I de Portugal, com a conquista de Ceuta estavam a expandir o domínio de Lisboa para África. E no mês de outubro de 1415, no dia de São Crispim/Crispiano, um exército inglês animado pelo seu rei - Henrique V - alcançou uma das maiores vitórias da Guerra dos Cem anos. Tratou-se da batalha de Azincourt que se travou entre duas florestas húmidas no norte de França, em que os ingleses ganharam, num número de um para quatro franceses. Os ingleses tiveram 29 baixas; e os franceses perderam dez mil. Pelo menos assim imaginou Shakespeare.




Os ingleses haviam invadido a França novamente no começo do século XV, quando o rei Henrique V resolveu reivindicar o trono do país rival. No começo da Guerra dos Cem Anos, no século anterior, as tropas inglesas se mostraram mais eficientes do que o exército feudal francês. Mas quando Henrique iniciou a sua invasão, em agosto de 1415, a situação da França havia melhorado. Henrique e seus homens não tinham, por outro lado, mantimentos suficientes para uma prolongada campanha e precisavam forçar um engajamento decisivo. Foi próximo a Calais, no norte da França, que finalmente os dois exércitos bateriam de frente.

O terreno era difícil e irregular, com florestas nos flancos, o que não permitia muita manobra. Os franceses tomaram a iniciativa, mandando sua cavalaria atacar os arqueiros inimigos, mas foram repelidos com pesadas baixas. Logo em seguida, mandaram o grosso de sua infantaria. O terreno cheio de lama, atrasou este avanço e expôs os homens ao arco inglês. Como resultado, novamente, os franceses sofreram grandes perdas, com milhares de soldados sendo capturados. Segundo relatos da época, Henrique V liderou pessoalmente as suas tropas na batalha e teria participado dos combates corpo-a-corpo. Já o rei francês, Carlos VI, não comandou os seus homens, já que ele sofria de problemas mentais. Foi esta batalha que marcou o uso mais notável do arco longo inglês em grandes números, com arqueiros ingleses e galeses formando cerca de 80% do exército de Henrique. Esta batalha também é um dos temas centrais da peça Henrique V de Shakespeare.

Segundo uma lenda ou invenção muito posterior, os franceses se gabavam de sua superioridade numérica e ameaçavam os arqueiros de cortar o dedo do meio deles (fundamental para arqueiros, para armar o arco), mostrando o seu maior levantado; quando os franceses foram feitos prisioneiros, os ingleses mostraram os dedos e disseram "Olha: os meus dedos estão aqui". Esse gesto deu origem ao gesto obsceno de "mostrar o dedo" de hoje em dia, nas versões francesa/continental de um dedo e na inglesa dos dois dedos.


Um selo com um soldado ucraniano a fazer um gesto obsceno com a mão para o navio russo Moskva, afundado no Mar Negro alegadamente por mísseis ucranianos, tornou-se um item de colecionador para os ucranianos que o veem como um sinal de "vitória".

No século XIV já se fabricavam armas de fogo na Europa, canhões que usavam mais pólvora e disparavam balas mais pesadas. No século XV, nos sete anos que se seguiram a Azincourt, os artilheiros ingleses transformavam os castelos de pedra da Normandia em cascalho.

O que os portugueses estavam a anunciar para os 500 anos que viriam a seguir era que os europeus se preparavam para travar uma Guerra de Quinhentos anos contra o resto do mundo. E na verdade viria a revelar-se a guerra mais produtiva da história. Em 1914 os europeus dominavam 84% de terra e 100% de mar. Entre 1945 e 2001, nunca a humanidade tinha vivido um período de paz e segurança tão longo e produtivo.

As expectativas relacionadas aos benefícios da conquista de Ceuta não se confirmaram a longo prazo. Sob a ótica económica, pode-se afirmar que o domínio português sobre a cidade se revelou um completo fracasso. As rotas comerciais que chegavam ou passavam por Ceuta foram desviadas para outras localidades. Além disso, o permanente estado de guerra comprometia o cultivo dos campos e a produção de cereais. Os muçulmanos chegaram a sequestrar o Infante D. Fernando (considerado santo a partir deste episódio) e outras pessoas, para exigir Ceuta de volta, mas Portugal não cedeu e os prisioneiros acabaram por ser torturados e morrer. A situação agravou-se em função das elevadas despesas militares necessárias à manutenção da praça africana. Os membros da corte chegaram a cogitar o abandono da cidade.

Os marroquinos não se conformaram e atacaram a cidade duas vezes, em 1418 e em 1419, sem sucesso.
Manter a cidade constituía-se em um problema logístico: era necessário enviar suprimentos, armas e munições; a maior parte dos soldados era recrutada à força, recorrendo-se a condenados e criminosos a quem o rei comutava a pena desde que fossem para Ceuta e ainda recompensar generosamente os nobres que ocupavam postos de chefia. Julgaram consegui-lo, quando do desastre português de Tânger, pedindo como resgate do infante D. Fernando a cidade de Ceuta. Mas D. Fernando faleceu em 1443 no cativeiro e a cidade continuou portuguesa.

Ceuta teve que se aguentar sozinha, durante 43 anos, até a posição da cidade ser consolidada com a tomada de Alcácer Seguer em 1458, Arzila e Tânger em 1471. A cidade de Ceuta foi reconhecida como possessão portuguesa pelo Tratado de Alcáçovas em 1479; e pelo Tratado de Tordesilhas em1494. Quando Portugal esteve sob tutela Filipina de Espanha, Ceuta manteve a administração portuguesa, assim como Tânger e Mazagão. Mas quando se deu a Restauração com a aclamação do Duque de Bragança, o Norte de África não voltou mais para Portugal. A situação foi oficializada em 1668 com a assinatura do Tratado de Lisboa entre os dois países, e que pôs fim à Guerra da Restauração. 

Passado 500 anos o saldo de riqueza material para o povo português é nulo. Valha o cosmopolitismo e o saldo diplomático que é positivo. O progresso dos europeus era escasso, a menos que conseguissem oportunidades diplomáticas. Os mercadores portugueses começaram a subir o rio Zambeze em 1531, mas o Império do Monomotapa (um dos sucessores do Grande Zimbabué, que entrara em declínio nos anos de 1440) manteve-os à distância.

Como nunca é de mais repetir, o estado de guerra e de bandidagem civil sempre foi o estado corrente dos povos estacionados, e os africanos não tinham como ser uma excepção. Assim, os chefes africanos diziam aos mercadores europeus: Se me trouxeres pólvora, mosquetes e balas, levas homens mulheres e crianças". Assim, entre 1500 e 1800 eles entregaram na troca perto de doze milhões de escravos que marcharam para o outro lado do Atlântico. Num trocadilho de palavras eram prevalentes dois tipos de peste: a peste negra e a peste branca a infestar o Novo Mundo do outro lado do Atlântico.

A Eurásia tinha-se fundido consideravelmente desde a peste negra do século XIV, produzindo um equilíbrio que quando muito funcionava contra os europeus que continuavam vulneráveis à malária nos trópicos. Entre Lisboa e Guangzhou havia 20 mil quilómetros a percorrer, o que não era coisa pouca para as carracas dos portugueses. Mas para os asiáticos, apesar de os portugueses serem irritantes, acabavam por ser úteis quando um ou outro chefe precisava de armas de fogo. Assim, desde que se mantivessem dentro do limite não muito longe da costa, era mais barato ignorá-los do que combate-los. Era tratados como piratas. Para os impérios do continente asiático, o lucro das cidades costeiras era um problema a resolver apenas entre piratas europeus. Uma economia a duas velocidades, portanto, que ganhava forma no oceano Índico. E como sabemos, na disputa, as coisas não correram bem para Portugal.

Portugal não conseguia concorrer naquele modelo de negócio. De modo que saiu de cena de Malaca e Ceilão para dar lugar a ingleses e holandeses. Até que, quando a Inglaterra estava a ficar por cima, entrou em cena um novo rival: a França. E em Istambul, Deli e Pequim continuava-se a não lhes dar grande atenção. Distância, germes e demografia conferiam aos impérios asiáticos uma sensação de invulnerabilidade, até que um dia se esgotou.

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