segunda-feira, 13 de junho de 2022

De caçadores a aurigas





Auriga, no contexto da Antiguidade Clássica, refere-se a um condutor de um carro de guerra - a quadriga - que tem como ofício guiar os cavalos que a puxam. Na Roma Antiga, os aurigas conduziam os carros no circo, durante as corridas de bigas. Ao cocheiro mais experiente, que pode conduzir a quadriga, é-lhe atribuído o título de agitador. No transporte de alguns dos mais influentes romanos, principalmente comandantes militares, os aurigas tinham o dever de dirigir a biga, e eram normalmente escolhidos entre os escravos em quem possuíam maior confiança. Mais tarde, nas corridas de bigas, os nobres do Estado começam a participar nas competições.

O auriga é geralmente retratado vestido com uma túnica curta, a cabeça normalmente protegida por um capacete de couro, um pequeno chicote seguro na sua mão e guias em torno da cintura e atadas atrás das costas (técnica etrusca readoptada pelos romanos) para evitar que se soltem, fazendo uso de um colete de proteção feito de tiras de couro que protegem o peito contra a fricção das rédeas.

No Santuário de Delfos foi encontrada a estátua de bronze mais famosa de um auriga - O Auriga de Delfos (na imagem).




Esta escultura constitui uma peça honorífica de um condutor de uma quadriga vencedor nos Jogos Píticos de 478 a.C. Os olhos estão incrustados com pedras coloridas e esmalte.

Caio Apuleio Diocles (104-146) é um dos mais conhecidos aurigas da Antiguidade. No fim da sua brilhante carreira que durou 24 anos, segundo uma inscrição dedicada a Diocles, são-lhe atribuídas 4257 corridas e 1426 vitórias; com isto, recebeu o título de 'o melhor auriga da história'. Os seus lucros financeiros eram tais que se tornou mais rico do que o próprio imperador.

Uma biga é um carro de duas rodas, movido por dois cavalos, semelhante a uma quadriga (movida por quatro cavalos). Foi usada na Antiguidade como carro de combate. Leve, em grande parte de madeira, a biga foi usada no Egito desde a Quinta Dinastia. Largamente difundida na Civilização Micénica (o mundo do tempo da Guerra de Troia) a biga estava reservada aos chefes. No século V. a.C., o seu uso na guerra já havia decaído em território grego. Mas, no final do mesmo século e nos seguintes, passaria a ser muito usada em corridas, nas festas helénicas. Em Roma, a biga persistiu nas corridas de circo.

Alguns modelos mais antigos podiam mesmo dispor de quatro rodas, embora estes não sejam geralmente referidos como bigas. A invenção que potenciou a construção destes leves carros para fins militares foi a utilização de aros na roda. Por esta altura, a maioria dos cavalos não conseguia suportar o peso de um homem em combate; o cavalo selvagem original era, na verdade, um grande pónei em tamanho. As bigas eram eficazes sobretudo em terrenos planos e abertos. Os cavalos eram gradualmente alimentados para se tornarem maiores e mais fortes. Foi a utilização das bigas que potenciou mais tarde o surgimento da cavalaria nas divisões militares. As bigas de roda com aros datam de cerca de 2000 a.C., e a sua maior utilização parece ter-se dado à volta de 1300 a.C. 

Porque se terão tornado os aurigas, ou os pastores de quem eles direta ou indiretamente descendiam, mais belicosos que os seus ancestrais caçadores ou vizinhos agricultores? Não terá sido muito antes de 1700 a.C. que a intrepidez bárbara deu largas à Técnica que viria a dar na chamada Civilização. Nas pastagens em torno e entre os assentamentos agrícolas viviam pastores aparentados linguisticamente aos guerreiros da estepe ocidental. Por meio da mediação das comunidades agrícolas, esses pastores ficaram cada vez mais expostos à influência irradiada do distante centro cultural da Mesopotâmia.

Pode-se dar como certo que a Agricultura reduziu a proporção de carne na dieta humana. Sabe-se que a mudança para a produção de cereais não só reduziu o consumo de proteínas, como os lavradores araram as terras mais para o cultivo do que para as pastagens; é também um facto amplamente observável que os agricultores procuraram prolongar a vida de seus animais domésticos — para maximizar a sua produção de leite, peso da carcaça ou força muscular — em vez de apartá-los para comê-los assim que atingissem a maturidade. Em consequência disso, o fazendeiro não adquiriu as habilidades do açougueiro - matador de animais jovens e lépidos. Os caçadores primitivos era bons a localizar e a cercar a presa até ao golpe fatal; mas não dominavam tão bem as técnicas do açougueiro. Isso foi desenvolvido na passagem de caçador a pastor.

Os pastores aprenderam primeiro a selecionar para depois matar. Para o pastor as ovelhas e as cabras são para eles alimento, mas alimento vivo que dá o leite e seus derivados: manteiga, coalhada, soro, iogurte, bebidas fermentadas e queijo. Só secundariamente dá a carne e, talvez, o sangue. Não se sabe com certeza se os nómadas das estepes da Antiguidade extraíam sangue de seus animais, como fazem os pastores de gado da África oriental, mas parece possível; eles certamente matavam a produção anual de animais jovens e os reprodutores mais velhos, juntamente com os feridos, deformados ou doentes, numa base rotativa. Tal programa de matança exigia a capacidade de liquidar um animal vivo com um mínimo de dano e a menor perturbação possível para o resto do rebanho. Dar um golpe letal curto e rápido constituía uma habilidade pastoril, para além do conhecimento anatómico adquirido na matança periódica. A castração dos machos foi outra técnica adquirida pelo conhecimento da diferença no corte da carne. Assim como a experiência dos partos e da cirurgia veterinária, que apesar de grosseira, era própria e decorrente da boa administração de um rebanho.

Toda essa experiência com os rebanhos levou a que os pastores das montanhas e das estepes acabassem por levar sempre a melhor com os agricultores sedentários e os bandidos estacionários das planícies. Foi a técnica da conduta dos rebanhos, assim como o abate dos animais, que fez dos pastores guerreiros calculistas que lhes conferiu vantagem no confronto com os agricultores sedentários das terras ditas civilizadas. 

Foi assim que os hunos, turcos e mongóis passaram da biga para o cavalo de montar, o que tornou as suas táticas ainda mais eficazes. Para fazer a batalha virar a seu favor, eles assolavam e intimidavam o inimigo com saraivadas de flechas atiradas de longa distância com a sua arma terrivelmente superior, o arco composto. Que não deve ter aparecido da noite para o dia, pois a complexidade de sua construção, como a da biga, levou à fabricação de muitos protótipos experimentados durante décadas, se não séculos. um pedaço de madeira fina, ou de várias lâminas, ao qual se colavam tendão de animal elástico na parte externa (“costas”) e tiras de chifre compressível na parte interna (“barriga”). As colas, compostas de tendões de gado fervidos e couro misturado com pequenas quantidades de pó de chifre e couro, podiam levar mais de um ano para secar e tinham de ser aplicadas sob condições precisas de temperatura e humidade. Em suma, muita arte tinha de estar envolvida na sua preparação e aplicação, boa parte dela caracterizada por uma visão mística e semirreligiosa.

A habilidade e a presteza com que se moviam ajustavam-nos à guerra de ataque. Toda a guerra exige movimento, mas para povos sedentários até mesmo os movimentos de curto alcance impõem dificuldades quando os equipamentos são inadequados e pesados. Os agricultores não dispunham de meios de transporte rapidamente mobilizáveis, nem especialmente animais de tração. A sua movimentação era desajeitada e volumosa. Para o nómada fogo e água assumem uma importância diferente. Cada vez que a tenda é erguida em um novo lugar, um pouco da primeira água fervida e o primeiro alimento cozido devem ser rejeitados.

Os povos que tinham dominado as artes de fazer e usar bigas e arcos compostos descobriram — de que forma não podemos conjeturar — que os defensores das terras colonizadas não poderiam resistir aos métodos agressivos que tinham inicialmente inventado para enfrentar os predadores que atacavam os seus rebanhos. Os aurigas que desceram das montanhas para as planícies abertas conseguiram infligir baixas incapacitantes aos povos sedentários. Cercando soldados a pé sem armaduras a uma distância de cem ou duzentos metros, uma tripulação de biga — um para dirigir, outro para atirar — poderiam acertar em seis homens por minuto. Um trabalho de dez minutos de dez carros de guerra poderia causar quinhentas ou mais baixas aos pequenos exércitos da época.

Uma vez aperfeiçoada, a tecnologia da biga teria sido fácil de reproduzir e até mais fácil de transportar e vender. Um baixo-relevo egípcio de cerca de 1170 a.C. mostra um homem carregando uma biga sobre os ombros — menos de 45 quilos —, e um produto assim altamente comerciável teria estimulado a produção em todos os lugares onde houvesse artesãos com os conhecimentos necessários. O limite para a produção de uma mercadoria tão vendável e cara não seria, na prática, a falta de capacidade ou de matéria-prima, mas a escassez de cavalos adequados. O animal para a biga tinha de ser selecionado e bem adestrado. A mais antiga escola para adestramento de cavalos data 
dos séculos XIII e XII a.C. , com base em um grupo de textos mesopotâmicos.

Os hicsos que invadiram o Egito vinham das fímbrias setentrionais pouco férteis do deserto da Arábia e falavam uma língua semítica. Os cassitas e hurritas que dividiram e derrubaram o Império Mesopotâmico de Hamurábi vinham das cabeceiras montanhosas dos rios Tigre e Eufrates, ainda hoje uma das regiões etnicamente mais complexas do mundo. Os cassitas falavam uma língua não identificada, classificada como “asiática”, enquanto os hurritas e os hititas, que estabeleceram um império onde é hoje a Turquia, falavam línguas indo-europeias. O mesmo acontecia com os árias que invadiram a Índia e é possível que os fundadores da dinastia San da China também viessem do Norte do Irão, embora talvez de um centro proto-iraniano do Altai.

A identidade obscura dos soberanos aurigas é uma indicação da sua principal característica: eram mais destruidores que criadores e, na medida em que se civilizavam, faziam-no mediante a adoção de hábitos, instituições e cultos de povos conquistados, em vez de desenvolverem uma cultura própria. Na Mesopotâmia, o império de Hamurabi, que emergira de um período de conflitos provocado por povos fronteiriços conhecidos como gutos e elamitas, conseguiu restabelecer a autoridade outrora exercida por Sargão, reconstruindo uma burocracia e um exército profissional sob o comando da Babilónia. Porém, o exército desse império amorita continuava a ser uma força de infantaria incapaz de deter os carros de guerra cassitas e hurritas, quando eles irromperam pelas fronteiras no século XVII a.C.

Os invasores hicsos do Egito, embora tenham se assenhoreado efetivamente do Norte do país, fizeram-no somente assumindo uma divindade egípcia como seu deus estatal e adotando práticas administrativas dos faraós. Também os San parecem ter assumido uma cultura preexistente no Norte da China, em vez de ficarem com a sua própria. Algumas inscrições revelam que eles caçavam com bigas, matando animais tão grandes quanto tigres e touros com o arco composto, e que faziam sacrifícios humanos, provavelmente de escravos, mas talvez também de prisioneiros de guerra. Objetos encontrados em escavações de túmulos indicam que faziam uso do bronze, enquanto seus súbditos agricultores continuavam a usar instrumentos de pedra. Os San foram derrubados em 1050-1025 a.C. pelos Tsou, uma dinastia do Sul da China que aprendera a usar o cavalo e o carro de guerra de uma outra fonte.




A tirania dos aurigas teve curta duração em todos os lugares. Os soberanos árias da civilização do Indo parecem ter sido os únicos invasores sobre rodas que não foram derrubados internamente; alguns investigadores, no entanto, consideram que o aparecimento do budismo e do jainismo foi uma reação nativa contra a tirania de casta que os árias haviam implantado. Os hicsos foram expulsos do Egito pelo renascimento do poder faraónico com Amnés, que fundou o Novo Império por volta de 1567 a.C. Outros aurigas, os hititas da Anatólia, os gregos da civilização micénica, que foram talvez os responsáveis pela destruição da civilização minoica de Creta, e podem ter inspirado a história de Homero da Guerra de Troia, foram ambos derrubados por povos do Norte da Grécia, os frígios e os dórios, por volta de 1200 a.C. Porém, mais significativo é o caso dos mesopotâmios nativos, sob a liderança de Assurubalit, que concluíram em 1365 a.C., após uma demorada campanha contra os seus suseranos hurritas restabeleceram o antigo império, conhecido como Assíria, nome derivado de sua capital Assur.

A imagem dos Assírios, inferida de sua magnífica arte imperial descoberta nas escavações de Nínive e Nimrud, é de uma civilização sobre carros de guerra. De facto, seus reis e nobres eram aurigas, assim como foram aurigas os faraós do Novo Império. Porém seus ancestrais não o haviam sido. É essa transformação do papel dos reis no mundo civilizado que devemos considerar como o mais significativo, duradouro e funesto efeito da dominação pelos guerreiros dos antigos Estados teocráticos. Os egípcios do Antigo e do Médio Império mal tinham sido guerreiros; até mesmo o exército permanente de Sargão era uma organização ineficaz em comparação com o seu sucessor assírio. Os povos sobre rodas ensinaram aos assírios e egípcios as técnicas e o espírito da guerra imperial e ambos, cada um em sua órbita, tornaram-se poderes imperiais. O impulso que fez os faraós do Novo Império expulsarem os hicsos levou os seus exércitos nos anos seguintes a estabelecer as fronteiras do Egito longe do Nilo, nas montanhas do Norte da Síria. Depois da expulsão dos hurritas, os assírios resolveram o constante problema da civilização mesopotâmica, em que as suas ricas terras, mas indefesas, eram alvo de predadores. Partiram para a ofensiva, estendendo progressivamente os limites do que viria a tornar-se o primeiro império etnicamente eclético, incluindo partes do que são hoje a Arábia, o Irão e a Turquia, junto com a totalidade da Síria e da Israel modernas. 

Foi dessa forma que esses povos, ao receberem o legado da biga dos aurigas, instituíram o modelo de Estado que ainda perdura em todo o mundo civilizado pela guerra.


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