segunda-feira, 13 de junho de 2022

A política externa americana no tempo do ilusionista Kissinger




Em 1968 os Estados Unidos ainda eram uma presença marcante no Sudeste Asiático, com meio milhão de soldados apenas no Vietname do Sul. A Guerra Fria dera lugar à détente entre os EUA e a União Soviética com SALT 1 em 1972. Era o primeiro tratado internacional para limitar armamentos estratégicos. E entre a Alemanha e vizinhos a leste, em consonância com a Ostpolitik de Willy Brandt e dos tratados e acordos assinados com a União Soviética em 1970 e nos anos seguintes. No Médio Oriente, a instável trégua pós-67 entre Israel e os países árabes foi seguida pela Guerra do Yom Kippur, pelo embargo do petróleo e o aumento de preço, e uma mudança radical na configuração do poder tanto na região quanto entre os países árabes e as grandes potências. No sul da Ásia, um novo país nascia — Bangladesh — em consequência da guerra entre a Índia e o Paquistão.

Em 1979, na Ásia, os Estados Unidos, após ignorar deliberadamente a China comunista por duas décadas, iniciaram uma série de contactos e encontros com líderes chineses que culminariam na restauração das relações diplomáticas entre os dois países, algo impensável para a maioria dos políticos e estadistas norte-americanos da era da Guerra Fria. Em abril de 1975 os EUA já haviam saído do Vietname e do Camboja; dois meses depois realizava-se a conferência de Helsínquia sobre segurança e cooperação na Europa.

Henry Kissinger – dado o facto de a presidência de Nixon coincidir com uma viragem importante nos assuntos internacionais – fez da condução da política externa dos EUA um tema de inusitado interesse geral pela originalidade estratégica.

A Guerra Fria continuava congelada, e os EUA tinham estado presos a uma guerra perdida no Sudeste Asiático. Os regimes comunistas do Sudeste Asiático, inclusive o de Hanói, eram autoritários, repressivos e representavam uma ameaça a seus vizinhos não comunistas; e o regime de Hanói estava implacavelmente determinado a expandir seu poder. Contudo, ninguém no Ocidente conseguiu encontrar um modo eficaz de se opor a esses governos sem o apoio a governos não comunistas duvidosos (e frequentemente impopulares), o que na maior parte dos casos redundou em fracasso. Muitos soldados norte-americanos morreram no Vietname antes de Richard Nixon assumir o poder, por razões que pareciam cada vez mais obscuras a muita gente. Os “especialistas” poderiam ter tentado explicar porque e como os EUA estavam no Sudeste Asiático, mas eles pouco tinham a oferecer em termos do que precisava ser feito: salvar o Vietname do Sul ou retirar as forças norte-americanas. E este, acima de tudo, era o problema enfrentado pelo governo republicano que tomava posse.

A política externa sob Nixon e Kissinger não só deixava de ser adequadamente discutida no Congresso ou pelo eleitorado, como foi em ocasiões vitais deliberadamente escondida. O governo não só participou livremente em atos clandestinos e operações militares ilegais.

A abertura para a China e os tratados de armamento com a URSS foram bons em si, e no caso chinês ajudaram a destravar a discussão interna sobre a política externa nos Estados Unidos. Nixon e Kissinger podem levar corretamente o crédito por esses feitos. Mas eles nunca fizeram parte de uma estratégia abrangente. Kissinger desprezava os profissionais da política externa. A sua confiança em seu próprio conhecimento e compreensão era paradigmática. Quando um membro de sua equipe discordou do plano de invadir o Camboja em abril de 1970, Kissinger respondeu, reveladoramente: “Seus pontos de vista representam a covardia da elite da Costa Leste.”

Nem Nixon ou Kissinger pensaram em consultar outros congressistas influentes a respeito dessas missões — com o resultado de que, quando elas foram final e inevitavelmente divulgadas, eles não somente levaram à decisão do Congresso, em junho de 1973, de cortar os fundos para futuras ações militares no Sudeste Asiático, como também a um ambiente de frustração e ressentimento generalizados que contribuíram para a queda de Nixon. Como resultado, Kissinger desconsiderou diplomatas profissionais, estabeleceu canais privados com pessoas de todos os tipos e assumiu sozinho negociações cruciais, frequentemente sem consultar a equipe negociante existente, deixada completamente no escuro.

Kissinger era por vezes autoritário ao lidar com a sua equipa. Em certos momentos ele humilhava negociadores profissionais de modo a preservar o sigilo ou valorizar seu papel. Nada disso seria importante se ele tivesse garantido o desfecho desejado. Normalmente considera-se o Camboja — “a guerra de Nixon” — a pior falha no histórico de Nixon. No Camboja, o governo Nixon repetiu todos os erros do Vietname em escala ampliada e concentrada, sem ter mais a desculpa da inexperiência. Autorizou secretamente mais de 3.600 ataques aéreos com B-52s contra supostas bases do Vietcongue (jamais confirmadas) e contra forças norte-vietnamitas no Camboja, apenas em 1969-70. Em 1974 esta política contribuiu para a ascensão do Khmer Vermelho — uma organização comunista de guerrilha cujos crimes seguramente não podem ser creditados na conta de Nixon, mas cujas possibilidades políticas foram ampliadas pela devastação provocada pela guerra.

Por outro lado, a intensidade dos bombardeios — questão de avaliação pelo senso comum, compartilhada por muitos observadores objetivos — levou o Khmer Vermelho a esforços militares maiores. Também os tornou mais confiantes, mais distantes do Vietname do Norte, mais alienados de Sihanouk, e no geral menos sujeitos à influência de qualquer de seus defensores comunistas. Os bombardeios certamente tornaram mais difícil, e não menos, que qualquer parte persuadisse o Khmer Vermelho a aceitar um cessar-fogo e negociasse uma saída política — que era o objetivo declarado. As chances desta mudança de rumo do Khmer Vermelho já eram quase certamente mínimas. Um esforço de negociação para incluir Sihanouk como aliado [...] em conjunto com um programa de bombardeio bem mais limitado, para manter a ameaça em vigor, poderia ter alguma chance. Como foi feito, com bombardeio intenso sem negociação, até enraivecer ainda mais o Khmer Vermelho, foi o pior de todos os mundos. Como durante todo o envolvimento norte-americano no Camboja, os erros políticos — descontadas as eventuais reações do Congresso — foram monumentais. Eles devem ser devidamente creditados na conta de Nixon e de seus dois principais assessores, Alexander Haig e Henry Kissinger.

Nixon, Kissinger e Alexander Haig guardaram para si e para um punhado de colegas os detalhes da operação no Camboja enquanto foi possível, raramente pedindo conselhos a fontes desvinculadas dos militares (que se preocupavam unicamente em bloquear as rotas de suprimento norte-vietnamitas que passavam pelo leste do Camboja). O benefício no Camboja reduziu-se, portanto, quase inteiramente ao impacto psicológico negativo no Vietname do Sul se o Camboja caísse, e ao compromisso pessoal de Nixon com Lon Nol.

Não foi exatamente uma grande vitória do pensamento estratégico. Havia pessoas bem informadas no Departamento de Estado (e mais ainda no Quai d’Orsay, em Paris) que poderiam ter aconselhado Kissinger e Nixon a não fazer o que propunham, mas ninguém lhes perguntou nada. Kissinger, ainda mais do que Nixon, considerava um axioma que o mundo era governado pelas Grandes Potências, que passavam instruções e impunham seus interesses aos Estados menores, aos quais só restava obedecer. A política em relação ao Camboja foi, portanto, concebida e praticada sem atenção devida às características específicas de qualquer das partes locais interessadas. No caso dos países e organizações comunistas, Kissinger considerava óbvio que as linhas de comunicação seguiam precisa e diretamente de Moscovo (ou Pequim) para o mais humilde guerrilheiro na selva.

Assim como os governantes vietnamitas em Hanói desconfiavam historicamente da China, os comunistas do Camboja nunca obedeceram a seus “camaradas” vietnamitas, embora o “modelo” maoísta — que conheceram em primeira mão na China — sem dúvida inspirasse seu pensamento de forma mais direta. Zhou Enlai chegou a tentar transmitir esta verdade básica sobre a história da Ásia e a política comunista a Kissinger, em pessoa, sem qualquer resultado aparente.

O Camboja foi o pior exemplo, mas não foi o único. Em março de 1971 o ditador paquistanês Yahya Khan reprimiu com violência os protestos no Paquistão Oriental; milhares de refugiados se instalaram na vizinha Índia. A tensão cresceu durante o ano inteiro, até dezembro, quando a guerra irrompeu entre a Índia e o Paquistão, na fronteira noroeste da Índia, após o envio pelo Paquistão de tropas numerosas para reprimir o descontentamento no Paquistão Oriental. A guerra durou algumas semanas, até que as forças paquistanesas se renderam e bateram em retirada. O Paquistão Oriental proclamou a sua independência, adotando o nome de Bangladesh, o que deixou o Paquistão derrotado, humilhado e reduzido em tamanho.

Um motivo para isso era que Kissinger, preocupado com fatores geopolíticos nos assuntos internacionais, relutava em aceitar um acordo definitivo para territórios e fronteiras na Europa. Willi Brandt escreveu que “Henry Kissinger não gostava de pensar nos europeus a falarem numa só voz. Ele preferia manipular Paris, Londres e Bonn, jogando uma contra a outra, no velho estilo”. Willi Brandt é um tanto ingénuo, no caso. Mas as suas perceções das preferências de Kissinger não soam menos exatas por causa disso. O “velho estilo”, entretanto, não foi muito eficaz. Um de seus principais resultados foi enfraquecer a aliança atlântica, reduzindo a confiança europeia em Washington. Em abril de 1973, Kissinger, num discurso desastroso e famoso voltado aos aliados europeus continentais dos Estados Unidos, declarou aquele um “ano europeu”, sem consultar um único líder.

O resultado da política de Kissinger e de seu estilo foi abrir uma brecha entre os EUA e seus únicos verdadeiros aliados internacionais — uma fenda que abriu ainda mais quando os EUA deixaram de dar aviso prévio aos aliados da NATO do alerta militar mundial de 24 de outubro de 1973 (na época da guerra do Médio Oriente). Como no caso do governo japonês, após os choques políticos e econômicos de 1971 (abertura para a China, abandono da paridade dólar-ouro, restrições às importações dos EUA), os políticos da Europa Ocidental, na sequência do embargo do petróleo, do discurso de Kissinger e da fria reação à Ostpolitik, começaram a repensar seu relacionamento com Washington. Como resultado de se comportar como se os aliados europeus dos EUA estivessem sempre dispostos a endossar automaticamente as ações dos norte-americanos, Kissinger e Nixon os livraram do hábito de agir assim. O dano causado à NATO e à aliança ocidental ainda era sentido em meados dos anos 1980.

Kissinger livrou o Médio Oriente do volátil atoleiro que se seguiu à Guerra do Yom Kippur, alternando-se incansavelmente entre Golda Meir e Anwar Sadat, superando a União Soviética em termos de influência local, além de estabelecer boas relações com muitos líderes políticos importantes na região. Ao tratar com Sadat e outros, foram os argumentos de Kissinger, o vínculo pessoal que ele estabelecia, e a impressão de respeito e compreensão que transmitia, que impulsionaram as coisas para a frente.

Kissinger é um admirador de Metternich. Ele o apresenta como um modelo para emulação contemporânea: nos desdobramentos da queda do comunismo, ele escreveu: “Pode-se torcer para que algo similar ao sistema Metternich se desenvolva.” Não se trata de um comentário casual, isolado, paralelo. O sistema internacional que até aquela data mais tempo durara sem uma grande guerra vigorou a partir do congresso de Viena. Combinava legitimidade e equilíbrio, valores compartilhados e diplomacia baseada no equilíbrio entre as potências. A Áustria de 1815 era um império hereditário (embora liberal para os padrões europeus continentais do período), onde todo o poder estava nas mãos do imperador e seus ministros. Não havia restrições constitucionais, nem eleitorado para informar ou contentar, nem comités a consultar. O ministro do Exterior imperial e o chanceler respondiam apenas a seu imperador, e à visão compartilhada do interesse imperial. Metternich, que tinha alguma noção dos problemas internos iminentes no império centro-europeu multiétnico em expansão, podia concentrar a sua atenção unicamente nas questões estrangeiras e diplomáticas. Em suas próprias palavras: “Eu governei a Europa algumas vezes, mas nunca governei a Áustria.”

Kissinger se relacionava com Nixon tanto quanto Metternich com o imperador Francisco II. Um cortesão inteligente e ambicioso com acesso a um governante absoluto está em posição de influência única, especialmente se estiver livre de responsabilidade pelos assuntos domésticos — isso pelo menos a história nos ensina. Além do mais, embora o cortesão corra óbvios riscos se cair em desgraça com o governante, é o próprio governante quem está verdadeiramente vulnerável numa crise. Os cortesãos mais inteligentes — Talleyrand seria um exemplo — sobrevivem à queda de seus senhores, graças a alguns movimentos rápidos e à reelaboração do arquivo histórico; e Kissinger destacava-se entre os mais espertos de todos eles.

Henry Kissinger sabia perfeitamente bem que seu mundo não era o mesmo de Metternich, ou até de Woodrow Wilson — estadistas do passado nunca foram, segundo ele, obrigados a conduzir a diplomacia num ambiente onde os eventos podem ser instantânea e simultaneamente percebidos pelos líderes e seus públicos. Um certo grau de segredo e cálculo estratégico é condição básica para se fazer boa diplomacia em qualquer sistema político; porém, numa democracia liberal, reconhecer seus limites é uma demonstração básica de sabedoria.

Kissinger acreditava que países pequenos (como o Chile) em regiões sem importância (como a América Latina) exigiam pouca atenção e respeito enquanto mantivessem a linha. Ele acreditava, como foi visto, em “vínculos” — a noção de que as negociações dos EUA com outros países e regiões deveriam fazer sempre parte de um conjunto de políticas globais, em vez de serem respostas a situações locais em bases individualizadas. E ele acreditava no “equilíbrio do poder”. Por vezes Kissinger seguia a linha “geopolítica”, como nos entendimentos com a China; por vezes não, como na abordagem baseada nos vínculos internacionais dos comunistas e sua influência no Vietname ou no Camboja. O que Kissinger chamava de “diplomacia triangular” entre as grandes potências, gerou mais relações recíprocas com a China e a União Soviética. Mas isso nunca convenceu a China ou a União Soviética a moderar ou conter seus “clientes” na Ásia ou na África — a coisa que Nixon e Kissinger buscavam acima de tudo. O “vínculo” não garantia nada que não pudesse ser obtido pelos esforços convencionais de negociação diplomática. E o objetivo geral — garantia dos interesses permanentes dos Estados Unidos — estava provavelmente mais distante de ser atingido no final da era Nixon-Kissinger do que em seu início.

Nixon e Kissinger nunca deram ao Chile a atenção exigida por seu próprio sistema de tomada de decisões, e agiram impulsivamente, com reflexão inadequada. Suas ações não foram apenas moralmente repugnantes, como correram graves riscos com o desmascaramento que prejudicou os Estados Unidos aos olhos latino-americanos. Este é o problema do realismo geopolítico na política externa, especialmente quando praticada com desprezo pelas restrições internas.

Richard Nixon foi em certo aspeto um sujeito de sorte. Derrubado por Watergate, ele ressurgiu em certas áreas como um improvável herói trágico. Henry Kissinger beneficiou-se duas vezes com esta estranha beatificação — as falhas são de Nixon, mas a política externa era de Kissinger, e seus fracassos podiam ser atribuídos aos problemas domésticos de Nixon. Qualquer um tentado a dar crédito a essas alegações não antecipa o que se espera ser o julgamento da história sobre um homem atormentado numa época problemática da vida norte-americana.

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