sábado, 30 de agosto de 2025

O mecanismo da “pureza ideológica” que nunca se satisfaz


Hoje as tribos esquerdistas do mundo Europa-América estão a pagar pelos erros programáticos cometidos neste primeiro quartel do século XXI. As suas ilusões acerca de uma política utópica orientada por valores morais, em contradição com o seu silêncio por conveniência em relação à falta de democracia e direitos humanos em certos "países amigos" -- China, Irão, Venezuela e tantos outros de África, Ásia e América do Sul -- foi fatal. A chamada “esquerda utópica” deixou-se embalar por princípios morais universais, mas muitas vezes aplicados de forma seletiva ou instrumentalizada.

A incoerência de exigir justiça social, direitos humanos e democracia nos países ocidentais, mas fechar os olhos ou relativizar a repressão em regimes autoritários “anti-imperialistas” ou aliados táticos não passou despercebida à opinião pública. Esse duplo padrão minou a credibilidade da esquerda moralista e tornou-a vulnerável às críticas dos setores mais cínicos ou realistas da sociedade, muitos dos quais hoje migram para opções conservadoras, populistas ou mesmo reacionárias.

É o velho dilema entre idealismo e realpolitik. Só que, neste caso, o idealismo não foi capaz de gerar resultados concretos – seja no plano da segurança interna, da integração cultural, ou da resposta às ameaças externas – e, ainda por cima, foi cúmplice ou omisso em relação a violações graves, desde que viessem dos “aliados certos”. O caso Hamas, por exemplo, é particularmente sensível: a acrítica dogmática da causa palestiniana por parte de certos setores da esquerda ignorou, ou mesmo justificou, métodos terroristas e uma ideologia profundamente reacionária, misógina e autoritária.

Essa “cegueira seletiva” foi percebida pelas populações como hipocrisia, e isso abriu espaço para o descrédito generalizado da opinião publicada progressista – aquela que antes parecia marcar o tom moral da sociedade. O pêndulo da opinião pública está a oscilar de forma abrupta, e a esquerda está agora a pagar o preço de ter subestimado os efeitos das suas próprias incoerências.

Ao tentar impor uma ética política universalista, mas com alianças e omissões que a contradiziam, as “tribos esquerdistas” perderam autoridade moral e influência sobre a narrativa dominante. E hoje enfrentam um refluxo perigoso, com o crescimento de forças que não estão minimamente interessadas em valores éticos universais. Apenas em força, ordem e identidade.

Banalizou-se a descida de pessoas às praças dos centros das cidades capitais a manifestarem-se com ativismo por causas morais que nunca mais acabam. Estes movimentos funcionam espartilhados por uma agenda de validação moral onde é preciso mostrar que se é contra a opressão dos governos. Isso leva a uma escalada incessante: hoje é a favor dos imigrantes e dos palestinos; ontem pelo colonialismo; amanhã pelo capitalismo digital da inteligência artificial. O resultado são facções que pululam e se atacam mutuamente -- ninguém é puro o suficiente. É a versão académica da Revolução Francesa a devorar os próprios jacobinos.

As discussões são sobre conceitos abstratos. E a vida concreta da maioria das pessoas mora ao lado. Como consequência, fora do campus universitário, esta retórica começa a soar a elitismo ou sectarismo. Quando investigadores mais empíricos, ou jornalistas da escola passada, expõem essas lacunas, o discurso perde credibilidade devido à sua vacuidade. A estratégia de silenciar críticos como “racistas” deixou de funcionar. É a narrativa do establishment universitário que perdeu a aura de rebeldia e que atraía jovens e intelectuais contestatários. Agora está a começar a aparecer um outro tipo de "juventude", dita de estudantes,  cuja provocação é a defesa da liberdade de expressão absoluta, criticando os próprios tabus dentro da esquerda académica.

E agora com a Administração Trump a romper de vez com o status quo académico, cortando financiamento a torto e a direito, exigindo resultados mensuráveis, o pânico instalou-se nas Faculdades de Humanidades. Áreas demasiado enclausuradas em debates internos, sem produção aplicável, começam a ver cortes orçamentais. Isto força alguns departamentos a reorientar-se para temas mais amplos e menos ideologicamente fechados. No fundo, é o ciclo natural de movimentos ideológicos em ambiente livre: crescem rapidamente quando encontram terreno fértil, radicalizam-se, depois perdem contacto com a realidade, e acabam minados pelas próprias contradições internas e pela irrelevância prática.

Se percorrermos algumas universidades americanas, por exemplo, começando por Princeton, avulta a controvérsia sobre “cancelamento” e liberdade académica. Um professor de história havia sido alvo de críticas internas por defender uma abordagem mais equilibrada de figuras históricas controversas como Thomas Jefferson. Apesar de autor da Declaração de Independência, não escapou porque tinha escravos a trabalhar para ele. Estudantes e colegas mais “radicais” tinham exigido a sua demissão com a acusação de “normalizar o racismo”. Mas, finalmente, a universidade foi obrigada a intervir para garantir a liberdade académica. Gerou-se tensão, com o corpo docente dividido.

Na Universidade de Toronto, “campus culture wars”, em várias faculdades, geraram-se acesos debates sobre políticas de diversidade, uso de linguagem inclusiva e “microagressões”. 
Professores que questionavam certas abordagens foram denunciados por “não criarem ambientes seguros”. Estudantes começaram a cansar-se do clima pesado e da vigilância constante, exigindo que o foco voltasse para o ensino e pesquisa tradicional. Surgem agora grupos contrários às políticas identitárias, promovendo debates abertos e defendendo a pluralidade. O caso do "Departamento de estudos de género da Universidade de Sussex (Reino Unido), em que uma docente foi criticada por publicar textos que ponderavam criticamente alguns conceitos dogmáticos da teoria queer e do feminismo pós-moderno, desencadeou alvoroço. Levou a manifestações internas e pedidos formais para que fosse retirada de certas disciplinas. A polémica ganhou repercussão nacional, e muitos viram o episódio como um sinal de que a liberdade intelectual está a ser estrangulada por ortodoxias ideológicas.

Em vários países, cursos e programas baseados quase exclusivamente em “Teoria Crítica” começaram a perder estudantes e financiamento. Por exemplo, na Alemanha e Holanda, há relatos de departamentos de estudos pós-coloniais a reduzir pessoal e repensar currículos para incluir mais dados factuais, história comparada e perspectivas plurais. A pressão para resultados práticos, inclusive relacionados a emprego dos alunos, obriga a uma “normalização” gradual. Esses exemplos mostram como o discurso radical está a gerar divisões internas, a cansar a comunidade académica e a provocar reações externas que o forçam a adaptar-se, recuar ou, em alguns casos, desmoronar-se. É um processo complexo, mas natural numa sociedade aberta onde as questões do poder são as que mais importam.

As consequências? Uma espécie de harakiri civilizacional. Perfeito! A ideia de um harakiri civilizacional encaixa bem como metáfora para as consequências profundas e potencialmente perigosas desse fenómeno entre grupos na sociedade em que de um lado estão os “oprimidos” e do outro os “opressores”. É o fomento de emoções destrutivas para o tecido social -- o tão conhecido ressentimento -- que personaliza a culpa coletiva. Por outro lado mais minorias podem também sentir que precisam competir com outra minorias por estatuto de “vítima” para terem voz. E lá se foi a solidariedade entre grupos. A censura de pontos de vista divergentes e a pressão por conformidade ideológica geram um ambiente onde o debate aberto desaparece, e se paralisa o intelecto na assunção de uma cultura. Isso sufoca a criatividade e o progresso, porque o conhecimento depende de confronto e questionamento constante.

A demonização da “civilização ocidental” ou do “homem branco” leva à rejeição ou destruição de patrimónios culturais, obras literárias, monumentos, símbolos que sustentam a memória coletiva. Sem uma narrativa histórica partilhada, a sociedade perde a capacidade de se reconhecer enquanto comunidade com um passado comum. Essa perda de memória pode abrir caminho para narrativas revisionistas ou simplistas, abrindo portas a movimentos populistas ou autoritários. O discurso radical da esquerda identitária provoca uma reação no campo oposto -- grupos nacionalistas, racistas e populistas -- que se sentem legitimados a usar retórica agressiva, muitas vezes xenófoba e violenta. O que era para ser uma correção moral torna-se uma guerra cultural sem vencedores claros, com riscos reais de instabilidade política e social. Essa polarização pode fragmentar sociedades inteiras, enfraquecendo instituições democráticas e o Estado de Direito.

Quando o foco está centrado em debates identitários e cancelamentos, questões essenciais como desigualdade económica, alterações climáticas, saúde pública e educação ficam em segundo plano. Isso pode retardar políticas públicas eficazes e criar frustração generalizada, especialmente entre a chamada classe média que já tem consciência crítica e aspira a subir na vida. A polarização entre discursos identitários de esquerda (muito focados em raça, género e história) e a reação de direita nacionalista cria um ambiente político radicalizado. Muitos cidadãos comuns sentem-se excluídos das narrativas académicas e políticas, porque não se reconhecem nem no “vitimismo estrutural” nem no nacionalismo agressivo. Isso resulta em apatia, desconfiança nas instituições, ou apoio a líderes que prometem “quebrar o sistema”, mesmo que sejam autoritários.

Movimentos como Black Lives Matter, que começaram por denunciar violência policial e desigualdade, por vezes viram o seu discurso ser capturado por vertentes mais radicais que promovem divisões identitárias. Isso provoca reações violentas de grupos contrários, manifestações recorrentes, e uma sensação geral de “guerra civil cultural”. E a migração em massa, a fugir de guerras, pobreza e alterações climáticas, pressiona as sociedades ocidentais, que estão a tentar redefinir a sua identidade num mundo globalizado. Isso alimenta o medo do “outro”, dando força a movimentos xenófobos e nacionalistas que prometem “proteger a identidade nacional”.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O “mal” como parte da natureza humana


Historicamente, tentamos eliminar ou moralizar tudo o que consideramos “mal”: violência, egoísmo, ódio, fanatismo. Mas essas tendências não são defeitos acidentais, são parte do instinto de sobrevivência, competição e organização social. Negar isso gera ilusões de utopia. Pessoas que acreditam que as sociedades podem ser perfeitas, sem conflito ou sofrimento, acabam por rapidamente chocar com a realidade. Quando tentamos aplicar compaixão de forma absoluta ou indiscriminada, sem reconhecer os riscos do mal, tornamo-nos vulneráveis à manipulação e alvo de abuso. O que parecia “bondade” transforma-se em legitimação involuntária do mal. O mundo não é um tabuleiro moral limpo; é uma rede complexa de forças, algumas construtivas, outras destrutivas.

A humanidade tende a subestimar ou negar o mal, e quando menos se espera os conflitos instalam-se, a discórdia torna-se insanável, e instala-se a guerra. Reconhecer o mal como parte da vida não significa resignação, mas agir com consciência das consequências reais, equilibrando compaixão e rigor. O problema não é a maldade em si, mas a ilusão de que podemos eliminá-la completamente. A vida exige uma espécie de pragmatismo moral: ser compassivo, mas sem cegar-se para a dureza da existência e os riscos do fanatismo ou da violência. A verdadeira ética de sobrevivência humana exige compaixão informada, realismo estratégico e consciência da maldade inerente. Evita o pecado original da esquerda idealista: romantizar causas sem avaliar consequências concretas. Quanto mais equilibrado entre compaixão, realismo e reconhecimento do mal, mais eficaz e ético é o ato humano. Quanto mais deslocado em algum eixo, maior o risco de ingenuidade, legitimação indireta do mal ou cinismo.

Israel está sob ameaça permanente de extinção. Desde 1948, no momento da sua criação, Israel enfrenta invasões sucessivas (1948, 1967, 1973) e uma retórica constante de eliminação por parte de vizinhos árabes e grupos islamistas. O Hamas, no seu estatuto fundador, é explícito: o objetivo não é a paz com Israel, mas a sua destruição. Mesmo quando Israel recua (como em Gaza, 2005), o resultado não foi paz, mas o fortalecimento de grupos armados que querem a sua erradicação. Ou seja, Israel vive num estado de ansiedade existencial que nenhuma democracia europeia conhece. Israel, apesar das tensões internas, é uma democracia funcional, com nível de desenvolvimento tecnológico, científico e cultural comparável ao europeu. É uma economia de inovação (startups, biotecnologia, software, agricultura avançada). Tem direitos de cidadania reconhecidos a mulheres, minorias sexuais e até cidadãos árabes israelitas. Ao passo que no mundo árabe em redor, grande parte dos países caiu em regimes autoritários, religiosos ou militares. Muitos receberam enormes recursos financeiros (petróleo, ajuda externa, fundos europeus e internacionais), mas não conseguiram criar sociedades abertas, democráticas ou economicamente diversificadas. A exceção relativa é alguns países do Golfo, que modernizaram cidades, mas sem democratização. É legítimo sentir frustração: como é possível, com tantos recursos, os vizinhos de Israel estarem tão atrás em termos de liberdade, prosperidade e tolerância?

Khomeini, depois de ter chegado ao poder no Irão, em 1979, teve um papel decisivo no alastrar do fanatismo islâmico em todo o mundo islâmico. A revolução iraniana liderada pelo aiatola Khomeini foi um marco. Substituiu um regime autoritário pró-Ocidente (o Xá) por uma teocracia xiita militante. Exportou a ideologia da jihad revolucionária para o Líbano (Hezbollah), Iraque, Síria e até Gaza. Desde então, o Médio Oriente ficou marcado por um crescimento do fanatismo religioso, que travou reformas democráticas e económicas. Isto agravou a radicalização contra Israel, usando-o como bode expiatório, para legitimar os seus regimes opressores, acusando Israel de ser um opressor sobre o povo palestiniano.

Israel, com todos os erros, defeitos e excessos militares, inegáveis, é uma sociedade que procura funcionar nos moldes europeus, com pluralismo, eleições e imprensa livre. A anos-luz de distância do Hamas, Hezbollah e regime iraniano cujas ideologias são de morte, onde o sacrifício dos próprios civis é usado como arma política. Comparar Israel e Hamas nem chega a ser equilibrado – é comparar uma democracia imperfeita com movimentos ou regimes teocráticos e fanáticos. Desde Khomeini, o fanatismo religioso foi uma das maiores travagens ao desenvolvimento do Médio Oriente. E isso não se pode ignorar. Muitos intelectuais celebraram Khomeini. Um deles foi Michel Foucault, a dar loas a quem ia deitar abaixo o capitalismo através da revolução do espírito. É histórico: Michel Foucault, em 1979, escreveu artigos elogiando a revolução iraniana. O que ele admirava não era o fundamentalismo religioso em si, mas a rotura radical contra o poder estabelecido e a ideia de que uma “revolução do espírito” poderia transformar a sociedade. Foucault não previu ou subestimou a violência, a repressão e a ideologia de morte que emergiu com o regime xiita. Resultado: um exemplo clássico de intelectual fascinado pelo simbolismo da revolução, mas que ignorou consequências humanas reais. Moral: os intelectuais podem ser cegos às consequências concretas quando encantados por ideias “puras” ou radicais. Como Foucault, tantos outros se deixam levar apenas pelo símbolo da luta humanitária ou anticolonial, ficando cegos para os efeitos indiretos.

A confiança cega na moralidade das causas, acreditando que lutar contra a opressão automaticamente coloca a pessoa ou movimento “do lado certo da história”, tem sido o maior erro de toda a esquerda desde sempre. Cegueira aos meios e consequências: a obsessão por justiça social e crítica decolonial, faz ignorar que alguns aliados ou instrumentos podem ser moralmente repugnantes (terrorismo, teocracia, violência). Ou seja, é a exaltação da narrativa simbólica que dá mais atenção ao “ato heroico” e à solidariedade performativa do que ao impacto concreto da ação. Mortágua encarna isso no contexto português atual. Defende causas humanitárias e anticoloniais, mas o faz de forma que pode legitimar indiretamente regimes ou grupos extremistas, mesmo sem intenção. Usa retórica poderosa e simbólica – flotilhas, campanhas, declarações de solidariedade – que engana emocionalmente o público, dando impressão de moralidade absoluta. É admirada por muitos como paladino da justiça, mas a análise crítica mostra que há uma ingenuidade estratégica e ética: foca-se no ato simbólico, não nas consequências reais. Este “erro” da esquerda idealista não é novo: a admiração de Foucault por Khomein – admiração por revolução espiritual e rutura radical, ignorando repressão e mortes – remonta aos Estalinistas ou maoistas ocidentais quando apoiaram regimes totalitários por serem “revolucionários”, ignorando purgas e fome. Mortágua é, assim, uma versão contemporânea desse padrão: humanista e idealista, mas com cegueira ética parcial.

O “pecado original” da esquerda é confundir causa justa com aliados justos, símbolo com realidade, ou moralidade abstrata com consequência prática. Mortágua é paladino e paradigma moderno desse erro: boa intenção, retórica poderosa, mas vulnerável a legitimar involuntariamente extremismos. Portanto, o que atrapalha a humanidade é a ilusão de que se pode contrariar as forças da Natureza, em que aquilo a que nós chamamos "mal", faz parte, mas não queremos reconhecer que faz parte. E por isso a vida é uma luta em que a compaixão a mais se transforma logo em "mal". A dificuldade da humanidade não é só a maldade objetiva, mas a nossa incapacidade de reconhecer que o mal faz parte da existência.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Ninguém gosta de terroristas


O que é o fanatismo? O fanatismo pode ser entendido como uma adesão cega e intransigente a uma ideia, causa, ideologia, religião ou pessoa, acompanhada de intolerância para com qualquer visão diferente. É mais do que convicção forte: é uma crença sem espaço para crítica ou dúvida. Está associado a um excesso de paixão, em que a emoção se sobrepõe à razão. Muitas vezes, assume a forma de hostilidade contra quem discorda.

Um fanático típico costuma ter alguns traços: certeza absoluta é padrão, não admitindo dúvidas nem incertezas; com visão binária divide o mundo em “bons e maus”, “nós e eles”; intolerante à crítica, interpretando objeções como ataques pessoais; com proselitismo não se cansa de tentar converter ou impor a sua visão. Por conseguinte, um fanático é um rígido ideológico com grande dificuldade de adaptação a contextos novos.


Mariana Mortágua encaixa-se nesse perfil? Mariana Mortágua é uma figura política portuguesa, deputada do Bloco de Esquerda, bastante ativa no discurso público. O discurso dela por vezes parece enquadrar em “ricos vs. pobres”, “opressores vs. oprimidos”. Isso é um traço que pode resvalar para o maniqueísmo, que alimenta fanatismo. Mariana Mortágua encaixa-se no lado da convicção forte.

A flotilha conta com centenas de barcos de diversos países, com a presença de ativistas, deputados e jornalistas, numa tentativa de pressionar pela abertura de um corredor humanitário para Gaza. Mortágua condena explicitamente tanto os atos de terror cometidos pelo Hamas quanto os crimes de guerra praticados por Israel, denunciando o que considera ser uma política genocida em Gaza.

É importante separar bem as coisas, porque houve reações muito diferentes à esquerda logo após o 7 de outubro de 2023. Em várias cidades do mundo (Nova Iorque, Londres, Paris, Berlim, Lisboa) houve manifestações imediatas contra Israel e em apoio à “resistência palestiniana”. Nesses atos, alguns grupos foram explícitos a celebrar ou justificar os ataques do Hamas, apresentando-os como resistência legítima à ocupação. Isto gerou enorme controvérsia, porque para a maioria do público global ainda estava fresco o massacre brutal de civis israelitas (incluindo mulheres, crianças e idosos).

Setores mais radicais da esquerda internacional (ex.: certas alas universitárias americanas, grupos trotskistas, movimentos antissionistas radicais) tenderam a romantizar o Hamas como “resistência”. Partidos de esquerda democrática, como o Bloco de Esquerda (onde está Mariana Mortágua), o Podemos em Espanha, ou partidos verdes europeus, foram mais cautelosos: Primeiro, alguns caíram na crítica apenas a Israel, omitindo condenar o Hamas. Mas rapidamente ajustaram o discurso para condenar tanto os crimes do Hamas como os de Israel (o BE fez isso de forma explícita, ainda em outubro de 2023).

O que Mortágua disse em 11 de outubro de 2023 (quatro dias depois do massacre) foi: “Condenamos os crimes de guerra cometidos pelo Hamas e por Israel” (Expresso). Ou seja, fez uma dupla condenação. Ainda que, se possa considerar, que Mortágua colocou no mesmo plano o Hamas (um grupo terrorista fundamentalista) e Israel (um Estado). Este pode ser o erro. 
Mariana Mortágua entra claramente no grupo da Esquerda anticolonial crítica. Condena o Hamas, mas centra o foco na ocupação israelita. Usa a grelha de leitura de colonialismo/apartheid, muito comum nesse campo. Há a sublinhar que ela nunca se dispõe a iniciativas de solidariedade para com Israel – um Estado democrático, plural e com instituições fortes. As ações simbólicas (como flotilhas, vigílias, campanhas) são sempre em defesa da causa palestiniana. Isso gera a perceção (e até um efeito político prático) de que o terrorismo do Hamas é relativizado, porque a ênfase recai sempre sobre Israel como culpado maior. Participa em ações humanitárias como a flotilha, mas não legitima o Hamas. Em Nova Iorque e noutros sítios, manifestações de grupos radicais chegaram a justificar ou mesmo a apoiar o Hamas.

Israel é apontado como potência ocupante, praticando políticas de apartheid e violência desproporcionada. Mas raramente a esquerda reconhece com igual intensidade que Israel é uma democracia, com parlamento pluralista, tribunais independentes, imprensa livre e forte diversidade interna (incluindo cidadãos árabes israelitas com assento no Knesset). O Hamas é formalmente condenado, mas muitas vezes retratado de forma indireta como “resistência armada”. Ora, na prática, o Hamas é uma teocracia autoritária, que persegue opositores, reprime mulheres e minorias, e cujo programa político inclui explicitamente a destruição de Israel.

A consequência é que, enquanto o sofrimento palestiniano merece mobilização internacional organizada, o sofrimento israelita é um dado colateral da guerra. Isso, mesmo sem intenção, acaba por alimentar a propaganda do Hamas, porque reforça a narrativa de que a sua violência seria “resistência legítima”. Ainda que nada tenha a ver com o que se viu 
em Nova Iorque, realmente um segmento mais radical da esquerda internacional, com menos pudor em chamar o Hamas de resistência legítima, Mortágua, ainda assim, apesar de se situar no campo do humanitarismo anticolonial, condenando Israel como potência ocupante, erra ao validar indiretamente, ainda que sem intenção, o terrorismo do Hamas.

É esse o ponto incómodo que geralmente ninguém de esquerda tem coragem de falar: Hamas pratica uma ideologia de morte (não só contra Israel, mas contra os próprios palestinianos de Gaza que não se alinham com ele). Quando não é salientada a diferença em relação a Israel, que é uma democracia, ainda que imperfeita, com a mesma força que é salientada a “Resistência”, cria-se um desequilíbrio moral. Portanto, mesmo sem querer, Mortágua e outros, ao só enfatizarem o lado palestiniano, acabam por legitimar indiretamente o Hamas. A escolha de causas simbólicas tem peso político e moral. O erro da esquerda anticolonial é ignorar que o apoio ao povo palestiniano acaba por dar munição discursiva ao Hamas.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

As futuras “guerras da água” no centro da Ásia


As chamadas “guerras da água” referem-se a conflitos, tensões ou rivalidades causadas pelo acesso escasso e desigual aos recursos hídricos, especialmente em regiões áridas ou semiáridas. Na Ásia há por assim dizer dois grandes focos: um, na Ásia Central – que inclui países como o Cazaquistão, Uzbequistão, Turquemenistão, Quirguistão e Tajiquistão, um dos epicentros potenciais desses conflitos futuros devido a fatores geográficos, políticos e climáticos; o outro tem a ver com a China que tem planos ambiciosos para construir uma super barragem no rio Yarlung Tsangpo, no Tibete, que ao cruzar para a Índia passa a chamar-se Brahmaputra -- um dos rios mais importantes para o nordeste indiano e para o Bangladesh.


A Ásia Central é dominada por regiões áridas e semiáridas, onde a água é um recurso vital e limitado. Dois dos principais rios – o Amu Dária e o Sir Dária – nascem em áreas montanhosas do Quirguistão e do Tajiquistão (montanhas Pamir e Tian Shan) e fluem para os países mais baixos, como Uzbequistão, Turquemenistão e Cazaquistão. Essa geografia cria um desequilíbrio estrutural: Países a montante (Tajiquistão e Quirguistão) controlam a nascente dos rios. Países a jusante (Uzbequistão, Cazaquistão e Turquemenistão) dependem desse fluxo para irrigação e agricultura. Durante a era soviética, Moscovo geria esse sistema com uma lógica de “troca” energética: os países a montante forneciam água no verão e recebiam gás ou eletricidade no inverno. Após a independência das repúblicas, essa coordenação colapsou, e as tensões aumentaram.

Países a montante priorizam produção de energia hidroelétrica (armazenando água no inverno). Países a jusante precisam de água no verão para irrigar plantações de algodão, arroz e trigo. Este conflito de calendários provoca fricções cíclicas e até ameaças diplomáticas. A mudança climática está a reduzir o volume de gelo nas montanhas (glaciares), o que ameaça a regularidade e volume dos caudais fluviais. Períodos de seca mais frequentes agravam a competição e podem incentivar conflitos locais e transfronteiriços. O Tajiquistão construiu a Barragem Rogun, uma das maiores da Ásia Central. Quirguistão também investe em represas para hidroeletricidade. Os países a jusante temem que estes projetos restrinjam o fluxo de água, com impactos devastadores nas suas economias agrícolas.

Uma das maiores catástrofes ecológicas da era moderna foi o desvio dos rios Amu Dária e Sir Dária para irrigação (sobretudo na era soviética) quase secou o Mar de Aral. Consequência: degradação ecológica, salinização de solos, problemas de saúde pública e deslocações populacionais. As tensões podem escalar por vários fatores. Pressão demográfica: crescimento populacional exige mais água para consumo e alimentação. Falta de tratados vinculativos: não existe uma estrutura jurídica regional efetiva para gerir os recursos hídricos compartilhados. Influência externa: potências como China, Rússia e Turquia têm interesses estratégicos na região. A água pode tornar-se um fator de geopolítica e de alinhamento. Pode emergir uma narrativa de que “o outro está a roubar água”, o que é perigoso em regimes autoritários ou instáveis. A Comissão Interestatal para a Água da Ásia Central tenta coordenar a gestão regional dos recursos. A ONU, o Banco Mundial e outras entidades tentam mediar acordos multilaterais. Iniciativas de “diplomacia da água” promovem partilha de dados, construção de confiança e coordenação técnica entre países.

Na China – o que se sabe acerca da Barragem do Yarlung Tsangpo? Localização: no desfiladeiro de Medog, uma zona geologicamente instável, mas com enorme potencial hidroelétrico. Capacidade estimada: mais de 60 GW – superando a barragem das Três Gargantas (22,5 GW), hoje a maior do mundo. Justificação oficial: geração de energia limpa e apoio ao desenvolvimento do Tibete. Potenciais problemas: Impacto ecológico colossal: alteração dos fluxos naturais e destruição de ecossistemas únicos no Himalaia. Segurança sísmica: a região é propensa a terramotos e deslizamentos de terra. Gestão unilateral da água: Pequim tomaria controlo sobre o fluxo inicial do Brahmaputra, o que afeta a Índia, em especial o estado de Assam (agrícola e etnicamente sensível). O Bangladesh, um dos países mais vulneráveis às alterações de nível e qualidade da água.

O conflito geopolítico, por esse facto, está em ascensão entre China e Índia. A barragem é vista por Nova Deli como uma ameaça estratégica direta. A Índia teme que a China possa usar o controle da água como arma geopolítica, reduzindo ou alterando o fluxo em tempos de tensão. A construção ocorre numa zona contestada (região de Arunachal Pradesh, que a China reclama como “Sul do Tibete”). Já há escaramuças militares nas áreas fronteiriças montanhosas (ex: Galwan em 2020). A água torna-se mais do que um recurso: é uma alavanca estratégica. Um eventual conflito armado sino/indiano pode não começar por armas, mas por fluxos de água interrompidos.


Uma barragem com capacidade de regular o fluxo para 130 milhões de pessoas torna-se o novo botão nuclear silencioso. Pequim, em desacordo com a Índia num conflito tecnológico no Índico, decide reduzir temporariamente o fluxo do Yarlung Tsangpo. A seca que se instala no nordeste indiano causa movimentos de protesto, crises alimentares e apelos à intervenção militar. A ONU é forçada a mediar um tratado multilateral sobre os rios transfronteiriços dos Himalaias. Mas já é tarde demais para o Bangladesh, cujos campos de arroz colapsaram em três estações sucessivas.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

A estratégia de Netanyahu


Uma sensação que muitos têm é que a estratégia de Netanyahu não é apenas militar, mas também demográfica, isto é, tem como objetivo reduzir de facto a capacidade palestiniana de se reproduzir e crescer enquanto povo. Historicamente, regimes que se sentiram ameaçados por um “inimigo interno” recorreram a políticas de deslocamento, expulsão ou aniquilação para lidar com a questão demográfica. Na linguagem da ONU, isso enquadra-se na categoria de “limpeza étnica” e, em situações extremas, de genocídio.

O problema é que, quanto mais se tentar resolver pela força, mais se cimenta a memória coletiva palestiniana e mais improvável fica uma reconciliação no futuro. O medo israelita de “serem ultrapassados em número” pode tornar-se uma profecia autorrealizável, porque a repressão intensifica o nacionalismo palestiniano e torna improvável qualquer integração pacífica. No fundo, Netanyahu parece apostar em deixar para as gerações futuras um status quo impossível de resolver, mas em que Israel mantém o poder militar absoluto. O risco é que a História venha mesmo a julgá-lo.

Trump propôs a Netanyahu realocar milhões de palestinianos. Em janeiro e fevereiro de 2025, Donald Trump sugeriu recriar Gaza como uma “Riviera do Mediterrâneo”. O que implicaria realocar permanentemente os seus cerca de 2 milhões de habitantes para outros países, potencialmente no Médio Oriente Médio ou África, como Egito, Jordânia, Sudão, Somália, Somaliland ou Líbia. Netanyahu abraçou o conceito de “migração voluntária”. Benjamin Netanyahu endossou publicamente o plano de Trump como uma “visão arrojada”, descrevendo-o como uma opção para que os residentes de Gaza pudessem sair, se quisessem, atribuindo-lhe uma conotação “humanitária”, mesmo que críticos a considerem uma forma de deslocamento coercitivo ou limpeza étnica.

Apesar de Trump afirmar que não estava a forçar a saída dos palestinianos, a proposta foi recebida com descrédito e indignação. Egito, Jordânia e outras nações árabes rejeitaram imediatamente a ideia, argumentando que isso representaria um golpe definitivo para a possibilidade de um Estado Palestino e um risco à estabilidade regional. Sudão também recusou as ofertas, apesar de supostas propostas de incentivos militares e ajuda pós-guerra. Somália e Somaliland também negaram envolvimento, declarando que não aceitariam propostas que pudessem prejudicar o direito dos palestinianos à sua terra. Segundo a Reuters, Israel chegou a manter conversações, ainda que informais ou preliminares, com Sudão do Sul, Somália e Somaliland para explorar a possibilidade de reassentar palestinianos em seus territórios.

Especialistas em direito internacional alertam que a deslocação forçada de civis constitui crime de guerra ou crime contra a humanidade, incluindo o crime de transferência forçada de população. O risco maior, segundo ativistas e governos árabes, é que isso se torne uma nova Nakba — ou seja, uma expulsão em massa sem direito de retorno, como aconteceu em 1948.

A comparação com Estaline ajuda a perceber a mudança de época. No tempo dele, deportações em massa e deslocamentos forçados eram “normalizados” como instrumentos de engenharia social e política. Entre as décadas de 1930 e 1950, milhões de pessoas foram deslocadas internamente dentro da URSS: povos inteiros (chechenos, tártaros da Crimeia, inguches, alemães do Volga, etc.) foram expulsos de suas terras e mandados para a Ásia Central ou a Sibéria. Essas operações eram justificadas como medidas de “segurança do Estado”. E de facto, o mundo pouco soube ou pouco pôde fazer. A diferença é que hoje há instituições internacionais (ONU, Tribunal Penal Internacional, etc.) que classificam a transferência forçada de populações como crime contra a humanidade. Existe cobertura mediática em tempo real: os crimes não ficam escondidos. Há uma sociedade civil global muito mais articulada, com ONGs, opinião pública, redes sociais — capazes de pressionar governos. Mesmo assim o poder conta muito. Se quem pratica estas políticas tem aliados poderosos (como Netanyahu ter o apoio de Trump, por exemplo), a condenação moral não se traduz automaticamente em travão político. O paralelo com Estaline mostra que ainda há um fosso entre a teoria da justiça internacional e a prática da realpolitik.

António Guterres tem-se mostrado impotente perante os grandes conflitos. A ONU tornou-se irrelevante, reduzida a agências técnicas (OMS, UNICEF, ACNUR) e operações humanitárias, sem peso político real. O Conselho de Segurança ao sabor dos interesses de uma minoria “superpotente” diz tudo. Guterres pode acabar os dias em Lisboa com esse travo amargo: ter sido secretário-geral num dos períodos mais sombrios, mas sem instrumentos para mudar o rumo.

À luz do que se está a passar, ainda corremos o risco de o século XX ter sido como um simples aperitivo antes do verdadeiro banquete histórico. De certa forma, o século XX, com as duas guerras mundiais, a bomba atómica, a conquista espacial, a informática e a globalização, parecia ser o auge da transformação humana. Mas se olharmos com atenção, tudo aquilo foi apenas o ensaio geral. Agora já nos encontramos na antecâmara da nova era marcada por biotecnologia que está a remodelar a própria definição do que é ser humano. E a crise climática está a obrigar populações inteiras a migrarem, redesenhando fronteiras e sociedades. Isto é o declínio do modelo de hegemonias estatais substituído por redes globais de conhecimento e tecnologia. Este salto ético/civilizacional está a fazer do século XX como parte de um mundo aina muito primitivo. Os aperitivos estão a acabar. Agora vem o prato principal que, ou será divino, ou então será intragável.

domingo, 24 de agosto de 2025

O conflito israelo-palestiniano


Durante séculos a Palestina fez parte dos domínios do Império Otomano. Mas nesse contexto geopolítico não havia ainda uma identidade distinta de palestinianos. O habitat era um mosaico formado por uma mistura de árabes muçulmanos, cristãos e judeus que se viam sobretudo como súbditos otomanos. A partir das últimas décadas do século XIX, começam as primeiras vagas de imigração judaica (Aliyot) vindas da Europa. Compravam terras (legalmente) de grandes proprietários otomanos ausentes e instalavam colónias agrícolas. 

Os árabes locais, muitos deles camponeses expulsos ou desapossados, começaram a sentir-se ameaçados. Até que veio a Primeira Guerra Mundial e começou a disputa de promessas. Os britânicos, que derrotaram os turcos otomanos, fizeram promessas contraditórias: aos árabes, prometeram independência se ajudassem na guerra contra os turcos; aos judeus, prometeram uma “casa nacional” na Palestina. Foi a Declaração Balfour, em 1917. Resultado: conflito inevitável, porque duas comunidades começaram a pensar-se como nações rivais, sobre o mesmo território.

É no período do Mandato Britânico (1920-1948) que surge verdadeiramente uma identidade palestiniana clara. Foi uma resposta direta ao sionismo e à imigração judaica em massa. Líderes como Haj Amin al-Husseini (o mufti de Jerusalém) começaram a falar não só em defesa do Islão ou dos árabes em geral, mas da Palestina como pátria. De modo que a colisão de 1947-1948 tornou-se inevitável. A ONU propôs a partilha da Palestina em dois Estados: um Estado Judaico e um Estado Árabe. Os judeus aceitaram (embora a contragosto, porque queriam mais território). Os árabes recusaram (porque viam a partilha como uma injustiça, dado que eram a maioria populacional na altura). Quando Israel declarou independência em 1948, deu-se a Nakba (“catástrofe”): mais de 700 mil palestinianos fugiram ou foram expulsos. E desde essa altura que se criou o problema dos refugiados palestinos, que ainda hoje perdura e continua um quebra-cabeças demográfico para os países da região.
A média atual de filhos por mulher (ou "taxa total de fecundidade") na Faixa de Gaza está em torno de 3,4 nascimentos por mulher, com base em dados recentes (2023). Em 1991, a taxa era extremamente alta — 8,3 filhos por mulher, sendo uma das maiores globalmente. Em 2013, já havia caído para 4,4. Em 2023, os dados do Palestinian Central Bureau of Statistics (PCBS) apontam uma taxa de 3,4 filhos por mulher especificamente na Faixa de Gaza.

A média de 3,3–3,4 filhos por mulher já é bastante alta em termos globais — sobretudo se compararmos com a Europa (1,3–1,6) ou Israel (cerca de 3,0, a mais alta do mundo desenvolvido). Mas a média esconde a dispersão. Em Gaza, por fatores culturais, religiosos, sociais e até de sobrevivência, ainda é relativamente comum famílias numerosas, com 8, 10 ou mais filhos. Isso puxa a média para cima, embora nem todas as mulheres tenham tantos. Do ponto de vista israelita, quando olham para o crescimento demográfico palestiniano, a matemática assusta: Israel tem hoje ~9,8 milhões de habitantes. A população palestiniana (Cisjordânia + Gaza) ronda ~5,3 milhões. Mas a taxa de crescimento em Gaza é muito maior: cada geração substitui-se com grande acréscimo, enquanto em Israel a natalidade, embora alta, é mais estável. Isso alimenta o chamado “medo demográfico”, muito discutido em Israel: a ideia de que, mesmo sem guerra, os palestinianos podem vir a ser maioria entre o rio Jordão e o Mediterrâneo, só pelo número de nascimentos.
Os judeus dizem: “Depois de dois mil anos de perseguições, finalmente voltámos à nossa terra ancestral.” Os palestinianos dizem: “Mas nós já vivíamos cá há séculos, e agora fomos transformados em refugiados.” Ambos os lados têm uma narrativa nacional legítima, mas mutuamente exclusiva. O sionismo é a aplicação do modelo europeu de nacionalismo ao povo judeu. O nacionalismo palestiniano nasceu como resposta a esse processo. O conflito israelo-palestiniano é, na sua raiz, um choque de dois nacionalismos modernos sobre o mesmo território, com memórias históricas e religiosas a amplificarem tudo.

No dia seguinte à declaração de independência, cinco exércitos árabes invadem o território ocupado pelos judeus. Território esse que os judeus selaram como Estado de Israel independente do Mandato Britânico com a Declaração de independência proclamada às 16 horas do dia 14 de maio de 1948 no edifício que hoje abriga o Museu da Independência, em Telavive. Entretanto  
Israel sobrevive à guerra com os cinco exércitos árabes e até aumenta território face ao plano da ONU. E daqui resultou um êxodo maciço de palestinianos traduzido em mais de 700 mil refugiados e que ficou conhecido por Nakba. Para os israelitas, o nascimento de um Estado. Para os palestinianos, o início de um trauma coletivo.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O Tempo, esse grande escultor de Gaia que os Antigos sabiam


Este apontamento é uma tentativa de escuta. Escuta dos sinais da Terra, dos ecos do tempo, das vozes esquecidas do mito. Não se pretende aqui explicar o mundo com gráficos ou jargões. Pretende-se lembrar: que o tempo não é um inimigo, mas um escultor; que os elementos não são recursos, mas presenças; que os desastres são, muitas vezes, respostas a perguntas que já não fazemos. A modernidade afastou o Homem dos mitos – e com isso, afastou-o de si mesmo.


Cada vez mais, não há dia que passe sem que o écran da televisão nos mostre dois cenários que se tornaram quase irmãos siameses da nossa era: incêndios devastadores de um lado, inundações apocalípticas do outro. A Terra fala, e tem falado com uma clareza terrível. Sempre achei que há nisto uma ironia cósmica em que os dois elementos básicos da Antiguidade – o fogo e a água – são agora os instrumentos do castigo. A água deu-nos a vida. O fogo, a civilização. Foram as dádivas primordiais da Terra ao Homem. Mas a mesma mão que dá é também a que tira. Quando Gaia se enfurece – e talvez com razão – ela recorre aos seus velhos aliados para se defender daquilo que o Criador, em momento de excesso ou ironia, lhe deixou: o Homem, essa “besta” racional, como diziam alguns antigos.

Os antigos gregos sabiam que a Terra, a que chamavam Gaia em vocabulário mitológico, não era um cenário passivo, mas uma entidade viva, pulsante, sensível às agressões. Os mitos eram a linguagem dos deuses. A deusa Gaia, os gregos diziam-na viva. Mas em todo o lado também os xamãs pediam-lhe permissão antes de a pisar. Sabiam que o Tempo – lento, implacável, misterioso – esculpe não apenas montanhas e vales, mas também consciências. Cronos como escultor de Gaia espelha no nosso corpo o trato que temos com ela.

Os modernos, porém, esqueceram-se. Julgam-se fora da Terra. Mais, convenceram-se que eram os donos do Mundo. Arrancaram florestas, barraram os rios com represas, cavaram a Terra como se ela fosse um cadáver sem alma. E agora, ela responde. Não com palavras, mas com símbolos antigos: trombas de água e labaredas. Não como punição mitológica, mas como consequência física. O que nos resta, então? Continuar a ignorar os sinais, ou escutar os ecos do Tempo? Talvez seja hora de reaprender a humildade dos antigos. Reconhecer que não há tecnologia que substitua o respeito pela Terra. Que os incêndios e as inundações não são apenas fenómenos meteorológicos, mas avisos civilizacionais. Talvez o tempo ainda nos esculpa – não como monstros, mas como seres dignos da dádiva de viver em Gaia.


A água foi-nos dada primeiro. Nasceu conosco, lavou-nos o corpo e a história, escavou os vales por onde os rios correram até ao mar do nosso pensamento. Depois veio o fogo – que não nasceu conosco, mas nos quis. Trouxe a luz à caverna, o pão ao estômago, o ferro à mão. Com ele, acendemos a cidade. A água, mãe. O fogo, pai. Ambos, irmãos do silêncio da Terra. Mas quem cuida dos deuses, quando os homens se esquecem de ser filhos? A Terra não é cenário. Não é palco de ambições, nem depósito de recursos. É corpo. É ventre. É um grande organismo que respira em ciclos, pulsa em eras, escreve em tempo o que nós riscamos com pressa.

Mas os modernos esquecem. Fazem furos no solo como quem fura a carne de um boi morto. Constroem onde os rios antes dormiam. Cortam árvores como quem desliga a memória de um povo. E depois admiram-se: porque nos queima o fogo? Porque nos afoga a água?

Na aurora do mundo, quando os deuses ainda caminhavam sobre a Terra, dois irmãos disputavam os favores de Gaia: Poseidon, senhor das águas profundas, e Hefesto, o mestre do fogo escondido. Ambos amavam a Terra, mas com mãos diferentes: um afagava-a com chuvas, marés e abalos, o outro modelava-lhe as entranhas com lava, metal e luz. Hoje, é por eles que Gaia se faz ouvir. Quando o Homem a fere, ela chama os seus filhos antigos – o mar ergue-se como um cavalo indomado, o fogo alastra como um cão ferido. E nós assistimos, perdidos entre os elementos, como se fosse nova a fúria dos deuses.

E agora, quando o Homem se julga deus, quando substitui o mito pela técnica e a prece pelo algoritmo, Gaia retoma a linguagem dos antigos. As inundações não são apenas fenómenos meteorológicos. Os incêndios não são apenas acidentes de Verão. São liturgias. São mitos que regressam pela porta do real. O tempo – esse escultor de rostos, de montanhas e de impérios – não tem pressa. Mas também não tem piedade. Escreve com fogo e apaga com água. Molda-nos como Hefesto moldava armaduras para deuses que iriam à guerra. E lava-nos como Poseidon destruiu Atlântida – para que a memória sirva de aviso. O Homem, essa criatura de Prometeu e de orgulho, não percebe que não herdou a Terra. Apenas a ocupa. E se não voltar a escutar os mitos, será apagado como um nome que se inscreve na areia diante das marés. Poseidon, senhor das águas profundas e das cóleras súbitas, Hefesto, artífice das forjas invisíveis, mestre do fogo civilizador. Ambos são escultores – não com cinzel, mas com abalo e combustão. Ambos escrevem no corpo da Terra, e também no do Homem.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Criticar o multiculturalismo não é racismo


No debate atual sobre a imigração há quem negligencie ou desvalorize a diferença entre culturas. E a realidade dos factos diz-nos que para cada um, a sua cultura é, por inerência, sempre melhor do que a cultura alheia. Mas na objetividade as posições dividem-se, porque há quem não admita que na diversidade das culturas haja evidência que umas sejam objetivamente e honestamente melhores do que outras. Os alemães em 2015, quando aceitaram receber em muito pouco tempo um milhão de refugiados sírios, sentiram-se, e com razão, orgulhosos por a sua cultura alemã ser, de certa maneira, melhor do que a cultua síria.

O debate em torno deste tema não deve ser conduzido como se houvesse uma razão absoluta. Isso não significa que não se possa estabelecer uma linha que separe o bem e o mal. Trata-se de uma discussão de prós e contras na vida prática em clima democrático. É muito mais fácil um muçulmano emigrar para a Alemanha do que um cristão emigrar para a Síria. O racismo é moralmente aberrante. E cientificamente estúpido. Os biólogos, e particularmente os geneticistas, provaram de forma inequívoca que as diferenças físicas entre pessoas nativas de partes do mundo geograficamente distintas, eram irrelevantes para o carácter único que especifica o homo sapiens em qualquer canto do mundo. Tudo o que certos autores, antropólogos ou não a coberto da ciência, até aí tinham dito sobre umas raças humanas serem superiores a outras quanto ao nível de inteligência, não só foi deitado para o caixote do lixo, como veementemente repudiado por todos os cientistas a seguir à Segunda Guerra Mundial. Isso não contradizia o facto de haver diferenças significativas entre as várias culturas humanas.

Mas a dada altura, na segunda metade do século 20, surgiram os relativistas culturais a fazer o seu caminho defendendo que as diferenças culturais não implicavam que houvesse uma hierarquia valorativa que determinasse umas culturas superiores às outras. Naturalmente que todas as crenças e todas as práticas sociais devem ser comemoradas, porém, devemos nos interpelar em relação a algumas práticas culturais que legitimam: o infanticídio; a lapidação por adultério; a mutilação genital feminina; e por aí fora, entre muitas outras. Neste contexto, manifestações contra essas práticas tradicionais de algumas culturas, na verdade, devem ser classificadas de manifestações de crítica cultural, e não de manifestações racistas.

Atualmente já não deve haver desculpa nem condescendência para qualquer manifestação racista, que fique bem claro. A perda do seu fundamento leva também à perda de qualquer respeitabilidade política. Mas não dever ser a primeira hipótese quando está envolvido o agente da autoridade na sua missão de proteger os cidadãos, seja qual for a sua cor de pele. As práticas policiais seguem os melhores padrões ditados pelas instâncias internacionais alicerçados no historial da experiência passada. É claro que isto não significa que o móbil biológico se possa sobrepor à razão cultural, e tenha implicações profundas nos juízos de avaliação contaminados pelo preconceito, tanto idiossincrático como ideológico.

Antropólogos e sociólogos sentem-se muito desconfortáveis por temerem que o debate candente resvale para primarismo de todos os tempos. Não se pode negar que certas diferenças culturais ainda são objeto de grande conflito. O que está em causa são os termos e os momentos circunstanciais históricos em que vivemos. Dando um exemplo: pode não ser aceitável, mas compreensível, que um trabalhador português numa empresa na China tenha os mesmos problemas – quanto à justiça feita com a sua promoção – que um trabalhador chinês numa empresa em Portugal. Aqui o que está em causa são realidades distintas umas das outras, e que não há que levar a mal que na China o chinês passe à frente do português, e em Portugal seja o português a passar à frente do chinês numa promoção, sem que o critério tenha sido por mérito.