terça-feira, 12 de agosto de 2025

O Tempo, esse grande escultor de Gaia que os Antigos sabiam


Este apontamento é uma tentativa de escuta. Escuta dos sinais da Terra, dos ecos do tempo, das vozes esquecidas do mito. Não se pretende aqui explicar o mundo com gráficos ou jargões. Pretende-se lembrar: que o tempo não é um inimigo, mas um escultor; que os elementos não são recursos, mas presenças; que os desastres são, muitas vezes, respostas a perguntas que já não fazemos. A modernidade afastou o Homem dos mitos – e com isso, afastou-o de si mesmo.


Cada vez mais, não há dia que passe sem que o écran da televisão nos mostre dois cenários que se tornaram quase irmãos siameses da nossa era: incêndios devastadores de um lado, inundações apocalípticas do outro. A Terra fala, e tem falado com uma clareza terrível. Sempre achei que há nisto uma ironia cósmica em que os dois elementos básicos da Antiguidade – o fogo e a água – são agora os instrumentos do castigo. A água deu-nos a vida. O fogo, a civilização. Foram as dádivas primordiais da Terra ao Homem. Mas a mesma mão que dá é também a que tira. Quando Gaia se enfurece – e talvez com razão – ela recorre aos seus velhos aliados para se defender daquilo que o Criador, em momento de excesso ou ironia, lhe deixou: o Homem, essa “besta” racional, como diziam alguns antigos.

Os antigos gregos sabiam que a Terra, a que chamavam Gaia em vocabulário mitológico, não era um cenário passivo, mas uma entidade viva, pulsante, sensível às agressões. Os mitos eram a linguagem dos deuses. A deusa Gaia, os gregos diziam-na viva. Mas em todo o lado também os xamãs pediam-lhe permissão antes de a pisar. Sabiam que o Tempo – lento, implacável, misterioso – esculpe não apenas montanhas e vales, mas também consciências. Cronos como escultor de Gaia espelha no nosso corpo o trato que temos com ela.

Os modernos, porém, esqueceram-se. Julgam-se fora da Terra. Mais, convenceram-se que eram os donos do Mundo. Arrancaram florestas, barraram os rios com represas, cavaram a Terra como se ela fosse um cadáver sem alma. E agora, ela responde. Não com palavras, mas com símbolos antigos: trombas de água e labaredas. Não como punição mitológica, mas como consequência física. O que nos resta, então? Continuar a ignorar os sinais, ou escutar os ecos do Tempo? Talvez seja hora de reaprender a humildade dos antigos. Reconhecer que não há tecnologia que substitua o respeito pela Terra. Que os incêndios e as inundações não são apenas fenómenos meteorológicos, mas avisos civilizacionais. Talvez o tempo ainda nos esculpa – não como monstros, mas como seres dignos da dádiva de viver em Gaia.


A água foi-nos dada primeiro. Nasceu conosco, lavou-nos o corpo e a história, escavou os vales por onde os rios correram até ao mar do nosso pensamento. Depois veio o fogo – que não nasceu conosco, mas nos quis. Trouxe a luz à caverna, o pão ao estômago, o ferro à mão. Com ele, acendemos a cidade. A água, mãe. O fogo, pai. Ambos, irmãos do silêncio da Terra. Mas quem cuida dos deuses, quando os homens se esquecem de ser filhos? A Terra não é cenário. Não é palco de ambições, nem depósito de recursos. É corpo. É ventre. É um grande organismo que respira em ciclos, pulsa em eras, escreve em tempo o que nós riscamos com pressa.

Mas os modernos esquecem. Fazem furos no solo como quem fura a carne de um boi morto. Constroem onde os rios antes dormiam. Cortam árvores como quem desliga a memória de um povo. E depois admiram-se: porque nos queima o fogo? Porque nos afoga a água?

Na aurora do mundo, quando os deuses ainda caminhavam sobre a Terra, dois irmãos disputavam os favores de Gaia: Poseidon, senhor das águas profundas, e Hefesto, o mestre do fogo escondido. Ambos amavam a Terra, mas com mãos diferentes: um afagava-a com chuvas, marés e abalos, o outro modelava-lhe as entranhas com lava, metal e luz. Hoje, é por eles que Gaia se faz ouvir. Quando o Homem a fere, ela chama os seus filhos antigos – o mar ergue-se como um cavalo indomado, o fogo alastra como um cão ferido. E nós assistimos, perdidos entre os elementos, como se fosse nova a fúria dos deuses.

E agora, quando o Homem se julga deus, quando substitui o mito pela técnica e a prece pelo algoritmo, Gaia retoma a linguagem dos antigos. As inundações não são apenas fenómenos meteorológicos. Os incêndios não são apenas acidentes de Verão. São liturgias. São mitos que regressam pela porta do real. O tempo – esse escultor de rostos, de montanhas e de impérios – não tem pressa. Mas também não tem piedade. Escreve com fogo e apaga com água. Molda-nos como Hefesto moldava armaduras para deuses que iriam à guerra. E lava-nos como Poseidon destruiu Atlântida – para que a memória sirva de aviso. O Homem, essa criatura de Prometeu e de orgulho, não percebe que não herdou a Terra. Apenas a ocupa. E se não voltar a escutar os mitos, será apagado como um nome que se inscreve na areia diante das marés. Poseidon, senhor das águas profundas e das cóleras súbitas, Hefesto, artífice das forjas invisíveis, mestre do fogo civilizador. Ambos são escultores – não com cinzel, mas com abalo e combustão. Ambos escrevem no corpo da Terra, e também no do Homem.

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