A incoerência de exigir justiça social, direitos humanos e democracia nos países ocidentais, mas fechar os olhos ou relativizar a repressão em regimes autoritários “anti-imperialistas” ou aliados táticos não passou despercebida à opinião pública. Esse duplo padrão minou a credibilidade da esquerda moralista e tornou-a vulnerável às críticas dos setores mais cínicos ou realistas da sociedade, muitos dos quais hoje migram para opções conservadoras, populistas ou mesmo reacionárias.
É o velho dilema entre idealismo e realpolitik. Só que, neste caso, o idealismo não foi capaz de gerar resultados concretos – seja no plano da segurança interna, da integração cultural, ou da resposta às ameaças externas – e, ainda por cima, foi cúmplice ou omisso em relação a violações graves, desde que viessem dos “aliados certos”. O caso Hamas, por exemplo, é particularmente sensível: a acrítica dogmática da causa palestiniana por parte de certos setores da esquerda ignorou, ou mesmo justificou, métodos terroristas e uma ideologia profundamente reacionária, misógina e autoritária.
Essa “cegueira seletiva” foi percebida pelas populações como hipocrisia, e isso abriu espaço para o descrédito generalizado da opinião publicada progressista – aquela que antes parecia marcar o tom moral da sociedade. O pêndulo da opinião pública está a oscilar de forma abrupta, e a esquerda está agora a pagar o preço de ter subestimado os efeitos das suas próprias incoerências.
Ao tentar impor uma ética política universalista, mas com alianças e omissões que a contradiziam, as “tribos esquerdistas” perderam autoridade moral e influência sobre a narrativa dominante. E hoje enfrentam um refluxo perigoso, com o crescimento de forças que não estão minimamente interessadas em valores éticos universais. Apenas em força, ordem e identidade.
Banalizou-se a descida de pessoas às praças dos centros das cidades capitais a manifestarem-se com ativismo por causas morais que nunca mais acabam. Estes movimentos funcionam espartilhados por uma agenda de validação moral onde é preciso mostrar que se é contra a opressão dos governos. Isso leva a uma escalada incessante: hoje é a favor dos imigrantes e dos palestinos; ontem pelo colonialismo; amanhã pelo capitalismo digital da inteligência artificial. O resultado são facções que pululam e se atacam mutuamente -- ninguém é puro o suficiente. É a versão académica da Revolução Francesa a devorar os próprios jacobinos.
As discussões são sobre conceitos abstratos. E a vida concreta da maioria das pessoas mora ao lado. Como consequência, fora do campus universitário, esta retórica começa a soar a elitismo ou sectarismo. Quando investigadores mais empíricos, ou jornalistas da escola passada, expõem essas lacunas, o discurso perde credibilidade devido à sua vacuidade. A estratégia de silenciar críticos como “racistas” deixou de funcionar. É a narrativa do establishment universitário que perdeu a aura de rebeldia e que atraía jovens e intelectuais contestatários. Agora está a começar a aparecer um outro tipo de "juventude", dita de estudantes, cuja provocação é a defesa da liberdade de expressão absoluta, criticando os próprios tabus dentro da esquerda académica.
E agora com a Administração Trump a romper de vez com o status quo académico, cortando financiamento a torto e a direito, exigindo resultados mensuráveis, o pânico instalou-se nas Faculdades de Humanidades. Áreas demasiado enclausuradas em debates internos, sem produção aplicável, começam a ver cortes orçamentais. Isto força alguns departamentos a reorientar-se para temas mais amplos e menos ideologicamente fechados. No fundo, é o ciclo natural de movimentos ideológicos em ambiente livre: crescem rapidamente quando encontram terreno fértil, radicalizam-se, depois perdem contacto com a realidade, e acabam minados pelas próprias contradições internas e pela irrelevância prática.
Se percorrermos algumas universidades americanas, por exemplo, começando por Princeton, avulta a controvérsia sobre “cancelamento” e liberdade académica. Um professor de história havia sido alvo de críticas internas por defender uma abordagem mais equilibrada de figuras históricas controversas como Thomas Jefferson. Apesar de autor da Declaração de Independência, não escapou porque tinha escravos a trabalhar para ele. Estudantes e colegas mais “radicais” tinham exigido a sua demissão com a acusação de “normalizar o racismo”. Mas, finalmente, a universidade foi obrigada a intervir para garantir a liberdade académica. Gerou-se tensão, com o corpo docente dividido.
Na Universidade de Toronto, “campus culture wars”, em várias faculdades, geraram-se acesos debates sobre políticas de diversidade, uso de linguagem inclusiva e “microagressões”. Professores que questionavam certas abordagens foram denunciados por “não criarem ambientes seguros”. Estudantes começaram a cansar-se do clima pesado e da vigilância constante, exigindo que o foco voltasse para o ensino e pesquisa tradicional. Surgem agora grupos contrários às políticas identitárias, promovendo debates abertos e defendendo a pluralidade. O caso do "Departamento de estudos de género da Universidade de Sussex (Reino Unido), em que uma docente foi criticada por publicar textos que ponderavam criticamente alguns conceitos dogmáticos da teoria queer e do feminismo pós-moderno, desencadeou alvoroço. Levou a manifestações internas e pedidos formais para que fosse retirada de certas disciplinas. A polémica ganhou repercussão nacional, e muitos viram o episódio como um sinal de que a liberdade intelectual está a ser estrangulada por ortodoxias ideológicas.
Em vários países, cursos e programas baseados quase exclusivamente em “Teoria Crítica” começaram a perder estudantes e financiamento. Por exemplo, na Alemanha e Holanda, há relatos de departamentos de estudos pós-coloniais a reduzir pessoal e repensar currículos para incluir mais dados factuais, história comparada e perspectivas plurais. A pressão para resultados práticos, inclusive relacionados a emprego dos alunos, obriga a uma “normalização” gradual. Esses exemplos mostram como o discurso radical está a gerar divisões internas, a cansar a comunidade académica e a provocar reações externas que o forçam a adaptar-se, recuar ou, em alguns casos, desmoronar-se. É um processo complexo, mas natural numa sociedade aberta onde as questões do poder são as que mais importam.
As consequências? Uma espécie de harakiri civilizacional. Perfeito! A ideia de um harakiri civilizacional encaixa bem como metáfora para as consequências profundas e potencialmente perigosas desse fenómeno entre grupos na sociedade em que de um lado estão os “oprimidos” e do outro os “opressores”. É o fomento de emoções destrutivas para o tecido social -- o tão conhecido ressentimento -- que personaliza a culpa coletiva. Por outro lado mais minorias podem também sentir que precisam competir com outra minorias por estatuto de “vítima” para terem voz. E lá se foi a solidariedade entre grupos. A censura de pontos de vista divergentes e a pressão por conformidade ideológica geram um ambiente onde o debate aberto desaparece, e se paralisa o intelecto na assunção de uma cultura. Isso sufoca a criatividade e o progresso, porque o conhecimento depende de confronto e questionamento constante.
A demonização da “civilização ocidental” ou do “homem branco” leva à rejeição ou destruição de patrimónios culturais, obras literárias, monumentos, símbolos que sustentam a memória coletiva. Sem uma narrativa histórica partilhada, a sociedade perde a capacidade de se reconhecer enquanto comunidade com um passado comum. Essa perda de memória pode abrir caminho para narrativas revisionistas ou simplistas, abrindo portas a movimentos populistas ou autoritários. O discurso radical da esquerda identitária provoca uma reação no campo oposto -- grupos nacionalistas, racistas e populistas -- que se sentem legitimados a usar retórica agressiva, muitas vezes xenófoba e violenta. O que era para ser uma correção moral torna-se uma guerra cultural sem vencedores claros, com riscos reais de instabilidade política e social. Essa polarização pode fragmentar sociedades inteiras, enfraquecendo instituições democráticas e o Estado de Direito.
Quando o foco está centrado em debates identitários e cancelamentos, questões essenciais como desigualdade económica, alterações climáticas, saúde pública e educação ficam em segundo plano. Isso pode retardar políticas públicas eficazes e criar frustração generalizada, especialmente entre a chamada classe média que já tem consciência crítica e aspira a subir na vida. A polarização entre discursos identitários de esquerda (muito focados em raça, género e história) e a reação de direita nacionalista cria um ambiente político radicalizado. Muitos cidadãos comuns sentem-se excluídos das narrativas académicas e políticas, porque não se reconhecem nem no “vitimismo estrutural” nem no nacionalismo agressivo. Isso resulta em apatia, desconfiança nas instituições, ou apoio a líderes que prometem “quebrar o sistema”, mesmo que sejam autoritários.
Movimentos como Black Lives Matter, que começaram por denunciar violência policial e desigualdade, por vezes viram o seu discurso ser capturado por vertentes mais radicais que promovem divisões identitárias. Isso provoca reações violentas de grupos contrários, manifestações recorrentes, e uma sensação geral de “guerra civil cultural”. E a migração em massa, a fugir de guerras, pobreza e alterações climáticas, pressiona as sociedades ocidentais, que estão a tentar redefinir a sua identidade num mundo globalizado. Isso alimenta o medo do “outro”, dando força a movimentos xenófobos e nacionalistas que prometem “proteger a identidade nacional”.
As discussões são sobre conceitos abstratos. E a vida concreta da maioria das pessoas mora ao lado. Como consequência, fora do campus universitário, esta retórica começa a soar a elitismo ou sectarismo. Quando investigadores mais empíricos, ou jornalistas da escola passada, expõem essas lacunas, o discurso perde credibilidade devido à sua vacuidade. A estratégia de silenciar críticos como “racistas” deixou de funcionar. É a narrativa do establishment universitário que perdeu a aura de rebeldia e que atraía jovens e intelectuais contestatários. Agora está a começar a aparecer um outro tipo de "juventude", dita de estudantes, cuja provocação é a defesa da liberdade de expressão absoluta, criticando os próprios tabus dentro da esquerda académica.
E agora com a Administração Trump a romper de vez com o status quo académico, cortando financiamento a torto e a direito, exigindo resultados mensuráveis, o pânico instalou-se nas Faculdades de Humanidades. Áreas demasiado enclausuradas em debates internos, sem produção aplicável, começam a ver cortes orçamentais. Isto força alguns departamentos a reorientar-se para temas mais amplos e menos ideologicamente fechados. No fundo, é o ciclo natural de movimentos ideológicos em ambiente livre: crescem rapidamente quando encontram terreno fértil, radicalizam-se, depois perdem contacto com a realidade, e acabam minados pelas próprias contradições internas e pela irrelevância prática.
Se percorrermos algumas universidades americanas, por exemplo, começando por Princeton, avulta a controvérsia sobre “cancelamento” e liberdade académica. Um professor de história havia sido alvo de críticas internas por defender uma abordagem mais equilibrada de figuras históricas controversas como Thomas Jefferson. Apesar de autor da Declaração de Independência, não escapou porque tinha escravos a trabalhar para ele. Estudantes e colegas mais “radicais” tinham exigido a sua demissão com a acusação de “normalizar o racismo”. Mas, finalmente, a universidade foi obrigada a intervir para garantir a liberdade académica. Gerou-se tensão, com o corpo docente dividido.
Na Universidade de Toronto, “campus culture wars”, em várias faculdades, geraram-se acesos debates sobre políticas de diversidade, uso de linguagem inclusiva e “microagressões”. Professores que questionavam certas abordagens foram denunciados por “não criarem ambientes seguros”. Estudantes começaram a cansar-se do clima pesado e da vigilância constante, exigindo que o foco voltasse para o ensino e pesquisa tradicional. Surgem agora grupos contrários às políticas identitárias, promovendo debates abertos e defendendo a pluralidade. O caso do "Departamento de estudos de género da Universidade de Sussex (Reino Unido), em que uma docente foi criticada por publicar textos que ponderavam criticamente alguns conceitos dogmáticos da teoria queer e do feminismo pós-moderno, desencadeou alvoroço. Levou a manifestações internas e pedidos formais para que fosse retirada de certas disciplinas. A polémica ganhou repercussão nacional, e muitos viram o episódio como um sinal de que a liberdade intelectual está a ser estrangulada por ortodoxias ideológicas.
Em vários países, cursos e programas baseados quase exclusivamente em “Teoria Crítica” começaram a perder estudantes e financiamento. Por exemplo, na Alemanha e Holanda, há relatos de departamentos de estudos pós-coloniais a reduzir pessoal e repensar currículos para incluir mais dados factuais, história comparada e perspectivas plurais. A pressão para resultados práticos, inclusive relacionados a emprego dos alunos, obriga a uma “normalização” gradual. Esses exemplos mostram como o discurso radical está a gerar divisões internas, a cansar a comunidade académica e a provocar reações externas que o forçam a adaptar-se, recuar ou, em alguns casos, desmoronar-se. É um processo complexo, mas natural numa sociedade aberta onde as questões do poder são as que mais importam.
As consequências? Uma espécie de harakiri civilizacional. Perfeito! A ideia de um harakiri civilizacional encaixa bem como metáfora para as consequências profundas e potencialmente perigosas desse fenómeno entre grupos na sociedade em que de um lado estão os “oprimidos” e do outro os “opressores”. É o fomento de emoções destrutivas para o tecido social -- o tão conhecido ressentimento -- que personaliza a culpa coletiva. Por outro lado mais minorias podem também sentir que precisam competir com outra minorias por estatuto de “vítima” para terem voz. E lá se foi a solidariedade entre grupos. A censura de pontos de vista divergentes e a pressão por conformidade ideológica geram um ambiente onde o debate aberto desaparece, e se paralisa o intelecto na assunção de uma cultura. Isso sufoca a criatividade e o progresso, porque o conhecimento depende de confronto e questionamento constante.
A demonização da “civilização ocidental” ou do “homem branco” leva à rejeição ou destruição de patrimónios culturais, obras literárias, monumentos, símbolos que sustentam a memória coletiva. Sem uma narrativa histórica partilhada, a sociedade perde a capacidade de se reconhecer enquanto comunidade com um passado comum. Essa perda de memória pode abrir caminho para narrativas revisionistas ou simplistas, abrindo portas a movimentos populistas ou autoritários. O discurso radical da esquerda identitária provoca uma reação no campo oposto -- grupos nacionalistas, racistas e populistas -- que se sentem legitimados a usar retórica agressiva, muitas vezes xenófoba e violenta. O que era para ser uma correção moral torna-se uma guerra cultural sem vencedores claros, com riscos reais de instabilidade política e social. Essa polarização pode fragmentar sociedades inteiras, enfraquecendo instituições democráticas e o Estado de Direito.
Quando o foco está centrado em debates identitários e cancelamentos, questões essenciais como desigualdade económica, alterações climáticas, saúde pública e educação ficam em segundo plano. Isso pode retardar políticas públicas eficazes e criar frustração generalizada, especialmente entre a chamada classe média que já tem consciência crítica e aspira a subir na vida. A polarização entre discursos identitários de esquerda (muito focados em raça, género e história) e a reação de direita nacionalista cria um ambiente político radicalizado. Muitos cidadãos comuns sentem-se excluídos das narrativas académicas e políticas, porque não se reconhecem nem no “vitimismo estrutural” nem no nacionalismo agressivo. Isso resulta em apatia, desconfiança nas instituições, ou apoio a líderes que prometem “quebrar o sistema”, mesmo que sejam autoritários.
Movimentos como Black Lives Matter, que começaram por denunciar violência policial e desigualdade, por vezes viram o seu discurso ser capturado por vertentes mais radicais que promovem divisões identitárias. Isso provoca reações violentas de grupos contrários, manifestações recorrentes, e uma sensação geral de “guerra civil cultural”. E a migração em massa, a fugir de guerras, pobreza e alterações climáticas, pressiona as sociedades ocidentais, que estão a tentar redefinir a sua identidade num mundo globalizado. Isso alimenta o medo do “outro”, dando força a movimentos xenófobos e nacionalistas que prometem “proteger a identidade nacional”.
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