sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O “mal” como parte da natureza humana


Historicamente, tentamos eliminar ou moralizar tudo o que consideramos “mal”: violência, egoísmo, ódio, fanatismo. Mas essas tendências não são defeitos acidentais, são parte do instinto de sobrevivência, competição e organização social. Negar isso gera ilusões de utopia. Pessoas que acreditam que as sociedades podem ser perfeitas, sem conflito ou sofrimento, acabam por rapidamente chocar com a realidade. Quando tentamos aplicar compaixão de forma absoluta ou indiscriminada, sem reconhecer os riscos do mal, tornamo-nos vulneráveis à manipulação e alvo de abuso. O que parecia “bondade” transforma-se em legitimação involuntária do mal. O mundo não é um tabuleiro moral limpo; é uma rede complexa de forças, algumas construtivas, outras destrutivas.

A humanidade tende a subestimar ou negar o mal, e quando menos se espera os conflitos instalam-se, a discórdia torna-se insanável, e instala-se a guerra. Reconhecer o mal como parte da vida não significa resignação, mas agir com consciência das consequências reais, equilibrando compaixão e rigor. O problema não é a maldade em si, mas a ilusão de que podemos eliminá-la completamente. A vida exige uma espécie de pragmatismo moral: ser compassivo, mas sem cegar-se para a dureza da existência e os riscos do fanatismo ou da violência. A verdadeira ética de sobrevivência humana exige compaixão informada, realismo estratégico e consciência da maldade inerente. Evita o pecado original da esquerda idealista: romantizar causas sem avaliar consequências concretas. Quanto mais equilibrado entre compaixão, realismo e reconhecimento do mal, mais eficaz e ético é o ato humano. Quanto mais deslocado em algum eixo, maior o risco de ingenuidade, legitimação indireta do mal ou cinismo.

Israel está sob ameaça permanente de extinção. Desde 1948, no momento da sua criação, Israel enfrenta invasões sucessivas (1948, 1967, 1973) e uma retórica constante de eliminação por parte de vizinhos árabes e grupos islamistas. O Hamas, no seu estatuto fundador, é explícito: o objetivo não é a paz com Israel, mas a sua destruição. Mesmo quando Israel recua (como em Gaza, 2005), o resultado não foi paz, mas o fortalecimento de grupos armados que querem a sua erradicação. Ou seja, Israel vive num estado de ansiedade existencial que nenhuma democracia europeia conhece. Israel, apesar das tensões internas, é uma democracia funcional, com nível de desenvolvimento tecnológico, científico e cultural comparável ao europeu. É uma economia de inovação (startups, biotecnologia, software, agricultura avançada). Tem direitos de cidadania reconhecidos a mulheres, minorias sexuais e até cidadãos árabes israelitas. Ao passo que no mundo árabe em redor, grande parte dos países caiu em regimes autoritários, religiosos ou militares. Muitos receberam enormes recursos financeiros (petróleo, ajuda externa, fundos europeus e internacionais), mas não conseguiram criar sociedades abertas, democráticas ou economicamente diversificadas. A exceção relativa é alguns países do Golfo, que modernizaram cidades, mas sem democratização. É legítimo sentir frustração: como é possível, com tantos recursos, os vizinhos de Israel estarem tão atrás em termos de liberdade, prosperidade e tolerância?

Khomeini, depois de ter chegado ao poder no Irão, em 1979, teve um papel decisivo no alastrar do fanatismo islâmico em todo o mundo islâmico. A revolução iraniana liderada pelo aiatola Khomeini foi um marco. Substituiu um regime autoritário pró-Ocidente (o Xá) por uma teocracia xiita militante. Exportou a ideologia da jihad revolucionária para o Líbano (Hezbollah), Iraque, Síria e até Gaza. Desde então, o Médio Oriente ficou marcado por um crescimento do fanatismo religioso, que travou reformas democráticas e económicas. Isto agravou a radicalização contra Israel, usando-o como bode expiatório, para legitimar os seus regimes opressores, acusando Israel de ser um opressor sobre o povo palestiniano.

Israel, com todos os erros, defeitos e excessos militares, inegáveis, é uma sociedade que procura funcionar nos moldes europeus, com pluralismo, eleições e imprensa livre. A anos-luz de distância do Hamas, Hezbollah e regime iraniano cujas ideologias são de morte, onde o sacrifício dos próprios civis é usado como arma política. Comparar Israel e Hamas nem chega a ser equilibrado – é comparar uma democracia imperfeita com movimentos ou regimes teocráticos e fanáticos. Desde Khomeini, o fanatismo religioso foi uma das maiores travagens ao desenvolvimento do Médio Oriente. E isso não se pode ignorar. Muitos intelectuais celebraram Khomeini. Um deles foi Michel Foucault, a dar loas a quem ia deitar abaixo o capitalismo através da revolução do espírito. É histórico: Michel Foucault, em 1979, escreveu artigos elogiando a revolução iraniana. O que ele admirava não era o fundamentalismo religioso em si, mas a rotura radical contra o poder estabelecido e a ideia de que uma “revolução do espírito” poderia transformar a sociedade. Foucault não previu ou subestimou a violência, a repressão e a ideologia de morte que emergiu com o regime xiita. Resultado: um exemplo clássico de intelectual fascinado pelo simbolismo da revolução, mas que ignorou consequências humanas reais. Moral: os intelectuais podem ser cegos às consequências concretas quando encantados por ideias “puras” ou radicais. Como Foucault, tantos outros se deixam levar apenas pelo símbolo da luta humanitária ou anticolonial, ficando cegos para os efeitos indiretos.

A confiança cega na moralidade das causas, acreditando que lutar contra a opressão automaticamente coloca a pessoa ou movimento “do lado certo da história”, tem sido o maior erro de toda a esquerda desde sempre. Cegueira aos meios e consequências: a obsessão por justiça social e crítica decolonial, faz ignorar que alguns aliados ou instrumentos podem ser moralmente repugnantes (terrorismo, teocracia, violência). Ou seja, é a exaltação da narrativa simbólica que dá mais atenção ao “ato heroico” e à solidariedade performativa do que ao impacto concreto da ação. Mortágua encarna isso no contexto português atual. Defende causas humanitárias e anticoloniais, mas o faz de forma que pode legitimar indiretamente regimes ou grupos extremistas, mesmo sem intenção. Usa retórica poderosa e simbólica – flotilhas, campanhas, declarações de solidariedade – que engana emocionalmente o público, dando impressão de moralidade absoluta. É admirada por muitos como paladino da justiça, mas a análise crítica mostra que há uma ingenuidade estratégica e ética: foca-se no ato simbólico, não nas consequências reais. Este “erro” da esquerda idealista não é novo: a admiração de Foucault por Khomein – admiração por revolução espiritual e rutura radical, ignorando repressão e mortes – remonta aos Estalinistas ou maoistas ocidentais quando apoiaram regimes totalitários por serem “revolucionários”, ignorando purgas e fome. Mortágua é, assim, uma versão contemporânea desse padrão: humanista e idealista, mas com cegueira ética parcial.

O “pecado original” da esquerda é confundir causa justa com aliados justos, símbolo com realidade, ou moralidade abstrata com consequência prática. Mortágua é paladino e paradigma moderno desse erro: boa intenção, retórica poderosa, mas vulnerável a legitimar involuntariamente extremismos. Portanto, o que atrapalha a humanidade é a ilusão de que se pode contrariar as forças da Natureza, em que aquilo a que nós chamamos "mal", faz parte, mas não queremos reconhecer que faz parte. E por isso a vida é uma luta em que a compaixão a mais se transforma logo em "mal". A dificuldade da humanidade não é só a maldade objetiva, mas a nossa incapacidade de reconhecer que o mal faz parte da existência.

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