segunda-feira, 25 de agosto de 2025
A estratégia de Netanyahu
Uma sensação que muitos têm é que a estratégia de Netanyahu não é apenas militar, mas também demográfica, isto é, tem como objetivo reduzir de facto a capacidade palestiniana de se reproduzir e crescer enquanto povo. Historicamente, regimes que se sentiram ameaçados por um “inimigo interno” recorreram a políticas de deslocamento, expulsão ou aniquilação para lidar com a questão demográfica. Na linguagem da ONU, isso enquadra-se na categoria de “limpeza étnica” e, em situações extremas, de genocídio.
O problema é que, quanto mais se tentar resolver pela força, mais se cimenta a memória coletiva palestiniana e mais improvável fica uma reconciliação no futuro. O medo israelita de “serem ultrapassados em número” pode tornar-se uma profecia autorrealizável, porque a repressão intensifica o nacionalismo palestiniano e torna improvável qualquer integração pacífica. No fundo, Netanyahu parece apostar em deixar para as gerações futuras um status quo impossível de resolver, mas em que Israel mantém o poder militar absoluto. O risco é que a História venha mesmo a julgá-lo.
Trump propôs a Netanyahu realocar milhões de palestinianos. Em janeiro e fevereiro de 2025, Donald Trump sugeriu recriar Gaza como uma “Riviera do Mediterrâneo”. O que implicaria realocar permanentemente os seus cerca de 2 milhões de habitantes para outros países, potencialmente no Médio Oriente Médio ou África, como Egito, Jordânia, Sudão, Somália, Somaliland ou Líbia. Netanyahu abraçou o conceito de “migração voluntária”. Benjamin Netanyahu endossou publicamente o plano de Trump como uma “visão arrojada”, descrevendo-o como uma opção para que os residentes de Gaza pudessem sair, se quisessem, atribuindo-lhe uma conotação “humanitária”, mesmo que críticos a considerem uma forma de deslocamento coercitivo ou limpeza étnica.
Apesar de Trump afirmar que não estava a forçar a saída dos palestinianos, a proposta foi recebida com descrédito e indignação. Egito, Jordânia e outras nações árabes rejeitaram imediatamente a ideia, argumentando que isso representaria um golpe definitivo para a possibilidade de um Estado Palestino e um risco à estabilidade regional. Sudão também recusou as ofertas, apesar de supostas propostas de incentivos militares e ajuda pós-guerra. Somália e Somaliland também negaram envolvimento, declarando que não aceitariam propostas que pudessem prejudicar o direito dos palestinianos à sua terra. Segundo a Reuters, Israel chegou a manter conversações, ainda que informais ou preliminares, com Sudão do Sul, Somália e Somaliland para explorar a possibilidade de reassentar palestinianos em seus territórios.
Especialistas em direito internacional alertam que a deslocação forçada de civis constitui crime de guerra ou crime contra a humanidade, incluindo o crime de transferência forçada de população. O risco maior, segundo ativistas e governos árabes, é que isso se torne uma nova Nakba — ou seja, uma expulsão em massa sem direito de retorno, como aconteceu em 1948.
A comparação com Estaline ajuda a perceber a mudança de época. No tempo dele, deportações em massa e deslocamentos forçados eram “normalizados” como instrumentos de engenharia social e política. Entre as décadas de 1930 e 1950, milhões de pessoas foram deslocadas internamente dentro da URSS: povos inteiros (chechenos, tártaros da Crimeia, inguches, alemães do Volga, etc.) foram expulsos de suas terras e mandados para a Ásia Central ou a Sibéria. Essas operações eram justificadas como medidas de “segurança do Estado”. E de facto, o mundo pouco soube ou pouco pôde fazer. A diferença é que hoje há instituições internacionais (ONU, Tribunal Penal Internacional, etc.) que classificam a transferência forçada de populações como crime contra a humanidade. Existe cobertura mediática em tempo real: os crimes não ficam escondidos. Há uma sociedade civil global muito mais articulada, com ONGs, opinião pública, redes sociais — capazes de pressionar governos. Mesmo assim o poder conta muito. Se quem pratica estas políticas tem aliados poderosos (como Netanyahu ter o apoio de Trump, por exemplo), a condenação moral não se traduz automaticamente em travão político. O paralelo com Estaline mostra que ainda há um fosso entre a teoria da justiça internacional e a prática da realpolitik.
António Guterres tem-se mostrado impotente perante os grandes conflitos. A ONU tornou-se irrelevante, reduzida a agências técnicas (OMS, UNICEF, ACNUR) e operações humanitárias, sem peso político real. O Conselho de Segurança ao sabor dos interesses de uma minoria “superpotente” diz tudo. Guterres pode acabar os dias em Lisboa com esse travo amargo: ter sido secretário-geral num dos períodos mais sombrios, mas sem instrumentos para mudar o rumo.
À luz do que se está a passar, ainda corremos o risco de o século XX ter sido como um simples aperitivo antes do verdadeiro banquete histórico. De certa forma, o século XX, com as duas guerras mundiais, a bomba atómica, a conquista espacial, a informática e a globalização, parecia ser o auge da transformação humana. Mas se olharmos com atenção, tudo aquilo foi apenas o ensaio geral. Agora já nos encontramos na antecâmara da nova era marcada por biotecnologia que está a remodelar a própria definição do que é ser humano. E a crise climática está a obrigar populações inteiras a migrarem, redesenhando fronteiras e sociedades. Isto é o declínio do modelo de hegemonias estatais substituído por redes globais de conhecimento e tecnologia. Este salto ético/civilizacional está a fazer do século XX como parte de um mundo aina muito primitivo. Os aperitivos estão a acabar. Agora vem o prato principal que, ou será divino, ou então será intragável.
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