domingo, 17 de março de 2024

Ideologias


A social-democracia é uma ideologia política que busca combinar princípios democráticos com políticas sociais voltadas para promover a igualdade e a justiça social. Ela defende um sistema económico misto, que inclui uma economia de mercado regulada pelo Estado para garantir o bem-estar social, acesso igualitário a serviços públicos essenciais e proteção social para os cidadãos. Mas, ser social-democrata, geralmente é considerado estar à esquerda do espectro político. Embora a social-democracia compartilhe algumas semelhanças com a ideologia de centro, como a defesa da economia de mercado, ela também enfatiza fortemente políticas sociais redistributivas e intervenção estatal para promover a igualdade e o bem-estar social, o que a coloca mais à esquerda. No entanto, é importante notar que a posição exata de um partido ou indivíduo dentro do espectro político pode variar de acordo com o contexto político e as políticas específicas defendidas.

A ideologia de esquerda se caracteriza por uma ênfase na igualdade social, justiça distributiva, defesa dos direitos das minorias, preocupação com o bem-estar social e uma visão mais favorável à intervenção do Estado na economia para promover igualdade de oportunidades. Isso pode incluir políticas como programas de assistência social, acesso universal à saúde e à educação, proteção dos direitos dos trabalhadores e uma abordagem mais progressista em questões sociais e culturais.

A ideologia de direita se caracteriza por uma ênfase na liberdade individual, na iniciativa privada, na livre empresa, na minimização da intervenção do Estado na economia e na promoção de valores tradicionais e conservadores. Isso pode incluir políticas como redução de impostos, desregulamentação económica, defesa da propriedade privada, ênfase na segurança nacional e uma abordagem mais conservadora em questões sociais e culturais.

Um partido de extrema-direita é um partido político cuja ideologia tende a ser caracterizada por uma ênfase na hierarquia social, nacionalismo étnico, conservadorismo social, autoritarismo e, em alguns casos, xenofobia e racismo. Esses partidos muitas vezes defendem políticas que visam restringir a imigração, promover valores tradicionais e fortalecer o controlo do governo sobre a economia e a sociedade. Abominam multiculturalismo e os direitos das minorias.

É importante realçar que a nossa discordância, em relação à doutrina de um partido político, não significa que tenhamos de o tratar como um inimigo, que implique resistência ou luta armada. Enquanto é aceitável a crítica e oposição às políticas de um partido de extrema-direita, tratá-lo como um inimigo, quando ele é amplamente sufragado em eleições livres e justas, é errado porque além de extremar posições e alimentar a polarização, é suscetível de acicatar o ódio e aumentar ainda mais a balbúrdia social. Em vez disso, é mais construtivo promover o diálogo e buscar entendimento mútuo, mesmo com aqueles com os quais discordamos fortemente.

Em termos políticos, geralmente não se identifica alguém como sendo simultaneamente de direita e de esquerda, pois essas ideologias têm tão diferentes visões sobre questões fundamentais, que em muitos casos são até antagónicas. Outra coisa diferente é um cidadão eleitor umas vezes escolher votar num partido de direita, e outras vezes votar num partido de direita. Ou, também possível, uma pessoa nuns setores da governação preferir políticas de direita, e noutros sectores preferir políticas de esquerda.

Em conclusão: a divisão do eleitorado em direita e esquerda ainda é uma estrutura relevante em muitos sistemas políticos ao redor do mundo. Embora as definições e as características específicas de direita e esquerda possam variar conforme o contexto cultural e histórico, essas ideologias continuam a influenciar a política, a formação de partidos políticos e as preferências dos eleitores. No entanto, é importante notar que a política contemporânea também pode ser influenciada por outras divisões, sejam elas de ordem cultural ou identitária.


sábado, 9 de março de 2024

Como todos os regimes do passado, as democracias também se desfazem



O nacionalismo - que começou por ser uma extraordinária ideia cívica e emancipadora em finais do século XVIII, e durante grande parte do século XIX - tornou-se, gradualmente, uma ideologia destrutiva. As duas grandes guerras europeias da primeira metade do século XX, as quais adquiriram dimensão mundial pela influência europeia, mostram bem isso. Hoje, com distanciamento histórico, sabemos que as sementes dessa engrenagem destrutiva estavam lá desde o início do movimento dos nacionalismos. 

A ideia de nação no início foi boa, pois foi libertadora da opressão do Antigo Regime. Pertencer à nação, ser um cidadão nacional, significava ter direitos fundamentais, poder escolher os seus governantes, não ser propriedade de um monarca absoluto, nem estar sujeito à total arbitrariedade de quem governava. Foi assim que o Império da Áustria, mais tarde Austro-Húngaro, e o Império Otomano, desapareceram. Foi assim que em Portugal se depôs a monarquia. Quanto ao Império, o seu desaparecimento só aconteceu muito mais tarde depois de 13 anos de guerra em África desencadeada pelos movimentos de libertação. Agora não é a nação, nem o nacionalismo radical, ao contrário do que muitos julgam, que está a minar a democracia. O que não significa que não persistam movimentos nacionalistas radicais importantes. Há múltiplas instituições e vários mecanismos criados contra o seu ressurgimento, desde logo a União Europeia.

A questão é saber se a ideia de identidade promovida por movimentos de certa intelectualidade académica - à semelhança do que aconteceu no passado com a ideia de nação, originalmente libertadora e emancipadora, a qual se transformou em nacionalismo agressivo - não estará a transformar-se num movimento radical e destrutivo. 
Em termos de movimentos, a teoria pós-colonial abrange o estudo e a análise das obras produzidas tanto em países que foram colonizadores como colonizados. É o exemplo de Edward Said e a sua análise de Joseph Conrad no âmbito das relações entre ingleses e africanos no século XIX.

Há hoje uma ideologia identitária que corre numa grande vaga pelo mundo a partir da América, onde foi criada. É uma ideologia que exacerba uma determinada identidade social e de grupo. Hoje há uma fratura na direita, espaço ideológico onde trava uma verdadeira luta pelo poder. A tradicional fratura ideológica esquerda/direita está a diluir-se para uma coisa diferente, chamemos-lhes de um lado partidos identitários tribais e do outro partidos de causas emergentes. Está a emergir um novo padrão político no qual a esquerda e a direita se confrontam cada vez menos segundo linhas ideológicas clássicas, normais numa democracia pluralista.

As implicações sociais e políticas são vastas e potencialmente destrutivas da coesão social. Há, assim, demasiados sinais que apontam para que a ênfase na identidade, ideia originalmente emancipadora e libertadora da discriminação social e racial, esteja, gradualmente, a transformar-se numa ideologia destrutiva. A democracia que se estruturou a partir da Revolução Francesa, a qual pressupõe uma identidade nacional partilhada, sem tribalismos identitários, está em crise.


quarta-feira, 6 de março de 2024

A Espanha 1931/36 antes da Guerra Civil 1936/39





A Segunda República na Espanha era de fundação recentíssima, pois datava apenas de abril de 1931. Tinha sido obra da esquerda e era fundamentalmente rejeitada por quase toda a direita, cada vez mais extremada contra o socialismo, visceral e generalizado. A aversão à esquerda se inseria com facilidade na trama de valores católicos ferrenhos que caracterizavam grande parte da Espanha provinciana e que a direita tinha incorporado à sua imagem da nação espanhola. Essa hostilidade era secundada, naturalmente, pelos membros das tradicionais elites dominantes, os que mais tinham a perder no caso da ascensão do temido regime socialista — os proprietários de terras, os grandes industriais, a Igreja católica e, em especial, setores significativos da oficialidade do Exército. O poder dessas elites vinha caindo, mas ainda se mantinha intacto. Derrubar a república usando de força era uma opção. Afinal, a ditadura de Primo de Rivera só acabara alguns anos antes, em janeiro de 1930, e o golpe militar há muito que ocupava o seu lugar na política espanhola. Em março de 1936, os generais espanhóis conspiravam para tentar outra vez derrubar um governo eleito.

O fracasso da esquerda na França começou a ser eclipsado pela tragédia muito maior, que foi a derrota da esquerda na Espanha. Com muito apoio popular e os recursos do Estado à sua disposição, a esquerda espanhola se dispunha a lutar para defender o regime republicano. No entanto, estava seriamente debilitada por terríveis divisões faccionais, conflitos destrutivos e dissensões ideológicas, a que se sobrepunham separatismos regionais mais vigorosos do que em qualquer outra parte da Europa Ocidental (sobretudo na Catalunha e no País Basco, regiões relativamente desenvolvidas do ponto de vista económico). Ainda mais lesiva para a esquerda era a antiga e profunda polarização da sociedade espanhola. Muito mais do que na França, um abismo separava os agrupamentos ideológicos da esquerda e da direita na Espanha. As lealdades republicanas não eram tão arraigadas como na França.

O triunfo da esquerda socialista e republicana nas eleições de 1931 foi um fenómeno efémero. Em novembro de 1933, quando houve novas eleições, a direita tinha recuperado as forças. A esquerda sofreu uma derrota para uma coligação de direita liderada por Alejandro Lerroux, que se tornou primeiro-ministro. Os dois anos seguintes puseram fim, e em muitos casos subverteram, os modestos avanços sociais feitos desde a fundação da república. Para a esquerda, esse período foi o biénio negro, de crescente ameaça fascista e forte repressão.

Desmantelada a coligação de direita governante, derrubada por escândalos financeiros e discórdias políticas, novas eleições foram convocadas para fevereiro de 1936. Nesse intervalo, a esquerda formara uma Frente Popular, coligação eleitoral de republicanos (cujos eleitores pertenciam basicamente à classe média) e socialistas — as duas maiores forças —, apoiada, com graus variados de entusiasmo, por comunistas, separatistas catalães e sindicatos socialistas e anarquistas.

Apuradas as urnas, a Frente Popular obteve uma vitória histórica. O governo, formado apenas por republicanos, era fraco desde o começo. Os socialistas, eles mesmos desunidos, recusaram-se a participar. O partido estava dividido entre sua ala reformista, chefiada pelo moderado Indalecio Prieto, e a Unión General de Trabajadores, cada vez mais revolucionária, liderada por Francisco Largo Caballero, que adorava ser chamado de “o Lenine espanhol”, designação que lhe foi dada pela imprensa soviética. O Movimento Juventude Socialista, assim como a organização sindicalista, também viam o futuro em termos de uma revolução em grande escala, e não de reformismo fragmentário. Eram evidentes os atrativos do Partido Comunista, que ainda era pequeno, mas crescia depressa.

O governo começou a restaurar as mudanças sociais e económicas, libertou presos políticos, expropriou latifúndios e devolveu a autonomia à Catalunha (prometendo o mesmo aos bascos). Entretanto, o controlo do país ia escapando. Camponeses pobres e trabalhadores agrícolas ocuparam grandes propriedades no sul da Espanha. Ocorreram greves em centros urbanos. Os incêndios de igrejas — símbolos da mão opressora da Igreja Católica — tornaram-se mais comuns do que em 1931 e alimentaram a propaganda da direita. Foram numerosos os assassinatos, cometidos tanto pela esquerda como pela direita. As posições iam-se extremando dos dois lados. A Falange, antes uma pequena facção da direita, viu-se de repente ganhando novos filiados, muitos deles pertencentes ao movimento de juventude da Confederação Espanhola da Direita Autónoma (CEDA), que apoiava uma posição antirrepublicana mais agressiva do que a defendida por muitos membros mais velhos do partido. Enquanto isso, sem que o governo percebesse, a conspiração fermentava.

Alguns comandantes do Exército, entre eles Franco, tinham aventado um golpe logo depois da eleição. Entretanto, o momento não era propício, e eles preferiram observar e esperar. Na tentativa de neutralizar possíveis problemas causados pelos militares, o governo afastou Franco da chefia do Estado-Maior e deu-lhe um comando nas ilhas Canárias. O general Emilio Mola, sabidamente hostil à república (e, na verdade, o principal instigador do golpe planeado), também foi posto fora de cena. Surpreendentemente, porém, Mola foi trazido de volta de um comando no Marrocos espanhol e posto à frente de uma guarnição em Pamplona, no norte da Espanha — de onde poderia forjar vínculos fortes com figuras que apoiavam o golpe de forma clandestina. Alguns falangistas foram presos, mas teriam sido capazes de levar adiante seus planos mesmo na cadeia. Mas o governo, em sua fraqueza, tomou poucas medidas além dessa para evitar problemas.

O putsch teve início no Marrocos espanhol e nas Canárias, em 17 de julho de 1936, e se espalhou para o território continental da Espanha nos dois dias seguintes. Os conspiradores contavam com um golpe rápido e a imediata tomada do poder pelos militares, mas logo ficou evidente que isso não iria acontecer. Em algumas áreas, unidades militares e grande parte da população apoiaram os rebeldes. A nomeação de três primeiros-ministros em dois dias foi um sinal claro de que o governo estava em pânico. Mola sentiu-se confiante o suficiente para rejeitar um pedido de trégua. Em outros lugares, porém, o Exército e a polícia se mantiveram leais à república, embora com frequência fizessem jogo duplo. Em Madrid, Barcelona e San Sebastián, no País Basco, trabalhadores pegaram em armas. Em questão de dias, a Espanha estava completamente dividida, tanto quanto estivera na eleição de fevereiro.


O leste e o sul do país mantiveram-se, de modo geral, ao lado dos republicanos. Entretanto, os rebeldes conseguiram avanços rápidos no Sudoeste, no Oeste e em grande parte da área central do país. Do ponto de vista militar, as forças da república e as dos rebeldes eram bastante equivalentes; as mais importantes áreas industriais ainda estavam nas mãos do governo. Até mesmo nas aldeias as pessoas tomavam partido: esquerda ou direita, a república ou o fascismo. A espiral de violência não parava de crescer. Já nos primeiros dias, registaram-se atrocidades infames dos dois lados. Nas áreas que dominaram, os rebeldes mataram ou executaram sumariamente grande número de pessoas. Não há como determinar a quantidade exata de mortes, mas com certeza chegaram a milhares. Do lado republicano foram comuns atos de violência contra partidários da sublevação ou inimigos de classe. Houve acerto de contas. A aplicação da “justiça revolucionária” em tribunais improvisados levou a numerosas execuções. O clero foi alvo de violências hediondas. Mais de 6 mil religiosos — sacerdotes, monges e freiras — foram assassinados, enquanto se queimavam igrejas e se destruíam imagens religiosas. O golpe já se estava transformando numa guerra civil em grande escala, embora não houvesse um vencedor claro à vista.

segunda-feira, 4 de março de 2024

A questão da historicidade bíblica





Do ponto de vista histórico, a historicidade da Bíblia é encarada de um modo diferente das pessoas que, de um ponto de vista religioso, a tomam como uma narrativa verdadeira tal como se se tratasse de um livro histórico. A História 
é uma disciplina que lida com o estudo de vestígios e documentos de épocas pretéritas tendo por vista pensar, interpretar e reconstruir o passado. A Bíblia é um livro considerado sagrado por diversas denominações religiosas. Por séculos foi vista como um documento derivado diretamente da inspiração divina, e por isso o que ela narrava era tido como verdade inquestionável, e mesmo suas narrativas puramente "históricas" eram consideradas relatos fidedignos do que acontecera no passado. Não importava, então, o contexto cultural, político e social em que havia sido escrita, uma vez que o estudo deste livro estava limitado ao debate teológico, moral e doutrinal.

Mas à medida que a civilização ocidental foi caminhando com o desenvolvimento do método científico para se aproximar da verdade de um modo mais fidedigno, certas passagens dos textos, designados como canónicos, a sua veracidade passou a ser questionada. A crítica historiográfica baseada na abordagem científica ganhou força quando uma série de descobertas, entre elas o deciframento da escrita hieroglífica egípcia, em 1822, e o deciframento da escrita cuneiforme acadiana, em 1857, complementado pelas pesquisas sistematizadas dos arqueólogos, passou a vir à luz do dia muta informação que até aí estava escondida do conhecimento moderno. E foi assim que a Bíblia deixou de ser um documento exclusivo das exegeses teológicas para passar a ser estudada segundo o método da ciência histórica das universidades.

Desde então, muito do seu conteúdo histórico passou a ser encarado como fazendo parte do domínio do mito, lenda e alegoria. Além disso, há muitas contradições internas e larga porção está baseada em alegações de milagres e intervenções divinas, aspeto que não tem nada de científico.  Hoje os livros da Bíblia são tratados como documentos iguais a quaisquer outros, devendo ser lidos criticamente e comparados com outras fontes (textuais, arqueológicas, epigráficas, etc.), para distinguir-se o que têm de informação valiosa para elucidar alguns factos e eventos e entender como a tradição religiosa e cultural da região se articulou e desenvolveu, e o que não é confiável, possuindo elementos fantasiosos, tendenciosos e de redação tardia em relação aos factos narrados.

É claro que toda esta abordagem tem implicações mais amplas do que o mero exercício erudito, se considerarmos o que ainda hoje se passa no Médio Oriente por causa das reivindicações que os fundamentalistas religiosos fazem em Israel pela posse de terra na Palestina. Hoje, a história antiga, tem de ser feita com os contributos da crítica textual, dos registos arqueológicos e a comparação de fontes diferentes para a sua reconstrução. Philip Davies, por exemplo, entende que os textos bíblicos são necessários para se reconstruir uma história do pensamento israelita. William G. Dever, Israel Finkelstein e Amihai Mazar fornecem análises sobre os interesses ideológicos e o contexto social, cultural e político que influíram na redação. Para Mario Liverani a história de Israel se divide entre uma história "normal", construída a partir de uma diversidade de fontes, entre elas as arqueológicas, e uma história "inventada", a forma como os redatores bíblicos reinterpretaram o passado.

Por conseguinte, a questão de considerar a Bíblia como um documento histórico é complexa e frequentemente discutida. A Bíblia é certamente um texto antigo que contém relatos de eventos e figuras históricas, mas a sua historicidade varia de acordo com diferentes contextos e relatos. A Bíblia menciona várias figuras e eventos que são corroborados por evidências históricas fora das Escrituras. Por exemplo, figuras como os reis David e Salomão, bem como eventos como o cativeiro da Babilónia, têm confirmação histórica em registros arqueológicos e escritos de outras fontes antigas.
Por seu turno, a interpretação da historicidade bíblica muitas vezes depende do contexto em que os eventos são colocados e das interpretações dos estudiosos. Alguns eventos podem ser interpretados literalmente como históricos, enquanto outros podem ser vistos como mitos, lendas ou parábolas com significados simbólicos.

A Bíblia foi escrita por várias pessoas ao longo de séculos, com diferentes propósitos e perspectivas. Isso pode influenciar a forma como os eventos são relatados e interpretados. Alguns autores podem ter usado linguagem figurativa ou simbólica para transmitir mensagens espirituais ou teológicas, mesmo ao descrever eventos históricos. Ao longo dos séculos, a Bíblia passou por várias edições e traduções, o que pode introduzir variações nos relatos históricos. Erros de tradução ou interpolações podem afetar a precisão histórica de certos textos. Certos eventos e personagens bíblicos é apoiada por evidências arqueológicas e fontes históricas externas, mas nem todos os eventos bíblicos têm confirmação externa.
Ainda que a Bíblia contenha narrativas que envolva figuras que realmente existiram, e eventos históricos que tenham acontecido, a sua historicidade carece sempre de confronto com outros elementos externos que os contextualizem.

Seja como for, é importante notar que a discussão sobre a veracidade da narrativa bíblica é complexa e multifacetada, envolvendo interpretações teológicas, históricas, arqueológicas e científicas. As visões sobre a Bíblia variam significativamente entre diferentes tradições religiosas e indivíduos, e há um amplo espectro de opiniões sobre o assunto. Veja-se, só para dar um exemplo, o caso de Pedro. Há quem defenda que é uma lenda inventada no século III. O que é da narrativa canónica da Igreja é que Pedro, o apóstolo Pedro, viveu em Roma entre 42 e 67 desta era. Por exemplo, Ralph Woodrow, no livro Babilónia, relata que o Novo Testamento diz que ele foi para Antioquia, Samaria, Jope, Cesareia e outros lugares menos Roma. Em 42, no tempo de Herodes Agripa, esteve detido em Jerusalém. Entre 49 e 50 esteve com Paulo em Jerusalém. Pedro exerceria o apostolado entre os judeus e Paulo entre os gentios (Gálatas 2.7,9,10). Depois apareceu em Antioquia, onde Paulo lhe resistiu frontalmente (Gálatas 2.11). E no ano 55 é mencionado como "evangelista itinerante" (1Coríntios 9.5). Neste período, evangelizou o Ponto, a Galácia, a Capadócia, a Ásia, a Bitínia e Babilónia. Anos 61 a 63 - Paulo esteve preso em Roma por 2 anos, mas nunca Pedro o visitou. Na Segunda Epístola a Timóteo, escrita na prisão, no ano 63, Paulo queixou-se dos discípulos e amigos que se ausentaram: "Só Lucas está comigo". Pedro devia estar na Babilónia, de onde escreveu a sua Primeira Epístola (1Pedro 5.13). Em 67 Pedro escreveu as suas epístolas. Não há nenhum sinal da sua presença em Roma.

Por fim, faço aqui uma breve referência, de passagem, aos célebres Apócrifos da Bíblia. Os apócrifos bíblicos são uma coleção de textos religiosos que foram escritos durante o período intertestamentário, entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, e que não foram incluídos no cânone bíblico judaico ou protestante, mas que são reconhecidos por algumas denominações cristãs, como a Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa Oriental e algumas denominações protestantes. Esses textos incluem livros como Tobit, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (também conhecido como Sirácida), Baruque, 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos aos livros de Ester e Daniel, entre outros. Os apócrifos são considerados parte do cânon bíblico por algumas tradições cristãs, mas não por outras.

As razões para a exclusão dos apócrifos do cânone judaico e protestante variam, mas geralmente incluem considerações como a falta de reconhecimento pelos líderes religiosos da época, questões doutrinárias e canónicas, além de dúvidas sobre a autenticidade e autoridade desses textos. No entanto, os apócrifos são considerados valiosos por algumas denominações cristãs por sua contribuição para a compreensão da história e teologia judaico-cristãs, bem como por seu valor devocional e espiritual. A Igreja Católica, em particular, considera os apócrifos como parte do cânone bíblico e os inclui em suas versões da Bíblia. É importante notar que o reconhecimento dos apócrifos varia entre as diferentes tradições cristãs, e suas opiniões sobre esses textos podem diferir significativamente.


quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Apontamentos sobre certos intelectuais do século XX




A calamidade da Primeira Guerra Mundial intensificou a sensação de um mundo irracional, já presente no pensamento sociológico desde a década de 1890. Era como se a sociedade tivesse afundado na loucura. A civilização revelou-se fragilíssima, demasiado mórbida e doentia, à beira de um novo desastre. Esse sentimento contribuiu para o vigor cultural da década de 1920, que veio a revelar-se nada ter adiantado. A Depressão Financeira, uma crise do capitalismo de gravidade sem precedentes, foi considerado por alguns o golpe de misericórdia que se abateu depois da Guerra a que se seguiu uma pandemia da gripe pneumónica.

Já na década de 1920, os intelectuais começavam a entender que permanecer numa torre de marfim já não levava a nada. A vitória de Hitler na Alemanha confirmou essa sensação. Em maio de 1933, a queima de livros de autores considerados inaceitáveis pelos nazis, forçou a emigração de muitas figuras de destaque no mundo artístico e literário, a maior parte judeus.

A ideia de crise da civilização era generalizada. A imensa desilusão com a sociedade burguesa e a perda da fé no sistema político que a representava polarizaram a reação intelectual. O mais comum era uma inclinação para a esquerda, para alguma variante do marxismo. No entanto, uma minoria se voltava para a direita fascista. Comum a ambas as tendências, embora de formas diversas, era o sentimento de que a velha sociedade deveria ser desfeita e substituída por uma nova, baseada em ideais utópicos de renovação social.

Os intelectuais quase nunca se voltavam para a esquerda social-democrata, cuja moderação parecia fora do tempo. A Inglaterra, em boa medida incólume aos extremos políticos que se instalavam na maior parte do continente europeu, e as nações escandinavas, onde havia surgido um consenso em torno de reformas social-democratas, permaneceram relativamente alheias à tendência geral. Muitos preferiam buscar a salvação no comunismo, vendo a União Soviética como o único raio de luz na escuridão. A promessa de uma revolução comunista mundial oferecia muitas esperanças para o futuro. Os princípios marxistas da igualdade sem classes, o internacionalismo e a abolição das cadeias impostas pelo capitalismo exerciam enorme atração sobre intelectuais idealistas. A defesa aberta da violência por parte dos fascistas contra aqueles que eram considerados inimigos políticos e raciais, mais evidenciada pelo tratamento implacável dispensado aos judeus, convenceu muitos intelectuais de que só lhes restava apoiar o comunismo soviético, a força mais comprometida com o antifascismo.

Foi o caso de Eric Hobsbawm, bem depois da Segunda Guerra Mundial, que quando ainda adolescente em Berlim, assistiu aos estertores da República de Weimar. Assim formou a base do seu compromisso de toda a vida com o comunismo e com a União Soviética. Foi um compromisso que, em seu caso, sobreviveu não somente às revelações sobre os crimes de Stalin, mas também às invasões da Hungria em 1956 e à da Checoslováquia em 1968, que afastaram muitos intelectuais. As ilusões sobre o comunismo soviético mantiveram a atração sobre muitos intelectuais mesmo bem depois que os horrores do estalinismo se tornaram irrefutáveis. Alguns tinham simplesmente perdido a capacidade crítica, com a visão ofuscada pela propaganda soviética sobre a gloriosa sociedade em processo de criação.

O grande dramaturgo alemão, Bertolt Brecht, simplesmente fechou os olhos para a desumana realidade da ditadura comunista, agarrando-se à visão humanista da sociedade comunista utópica. Muitas vezes, os intelectuais simplesmente se recusavam a ver a realidade. Não podiam deixar o sonho morrer. Eram psicologicamente incapazes de abandonar a fé no comunismo como a única esperança da humanidade para criar um mundo melhor, mesmo depois que ficaram claros os indícios de que o estalinismo contrariava qualquer paródia dessa crença. Muitos tentaram ultrapassar os estalinistas, ainda mais pela esquerda, convencendo-se que Stalin traiu o verdadeiro caminho de Lenine, desviando-se do caminho da revolução, com o uso do terror eliminando implacavelmente mais os amigos do que os inimigos. E os que eram indiferentes eram enviados para os gulags.

Arthur Koestler, judeu, prolífico escritor e jornalista nascido em Budapeste, entrou para o Partido Comunista alemão em 1931, mas começou a se desiludir com a realidade soviética depois de testemunhar a coletivização forçada e a fome na Ucrânia. Mas o rompimento não veio de uma hora para a outra. Foi moldado pela Guerra Civil Espanhola. Como muitos outros intelectuais de esquerda, ele foi à Espanha para combater o fascismo. Mas ao ver naquele país que a política dos comunistas era ditada exclusivamente pelos interesses da União Soviética. E conhecendo as acusações, evidentemente forjadas, apresentadas nos julgamentos públicos de comunistas leais, abandonou o estalinismo. O zero e o infinito, de 1940, é uma reconstrução sombria da pressão psicológica exercida sobre os acusados de algum desvio em relação à ortodoxia. Koestler enfrentou diretamente o dilema crucial de muitos intelectuais de esquerda na década de 1930: como permanecer leal à única força capaz de se opor ao fascismo e derrotá-lo e, ao mesmo tempo, reconhecer que a União Soviética se tornara uma grotesca caricatura dos mais caros ideais socialistas?

Martin Heidegger comprometeu-se com o movimento nazi na Alemanha. Com a obra Ser e tempo, publicada em 1927, aproximou-se de ideais que ele via representados no movimento nazi. No centro de tudo estava a crença na “decadência espiritual” de sua época, manifesta na erosão daquilo que Heidegger chamava de “ser autêntico”, assim como a crença acessória no destino especial do povo alemão para trazer a renovação cultural. Apesar de sua mente brilhante, tudo isso chegava muito perto do misticismo romântico. Para Heidegger, a Alemanha se situava no centro do que ele descreveu como “a grande pinça formada pela Rússia, de um lado, e a América, do outro”. Ingressado no partido nazi em maio de 1933. Três semanas depois, em seu discurso de posse como reitor da Universidade de Friburgo, cargo para o qual acabava de ser nomeado, elogiou o regime, glorificou Hitler (referindo-se a ele como “a realidade alemã, presente e futura, e suas leis”) e ordenou a demissão de colegas “não arianos” da universidade (entre eles seu antigo professor e orientador Edmund Husserl).

Carl Schmitt, especialista alemão em direito constitucional, também entrou para o partido nazi em 1933. Todavia, foi mais maleável ante a realidade da nova ordem alemã. Schmitt, já conhecido desde a década de 1920, rejeitava as instituições parlamentares como verdadeira expressão da democracia e defendia um Estado soberano forte, com um líder que representasse a unidade entre governantes e governados e, quando necessário, capaz de exercer um poder decisivo e livre de toda restrição legal para servir o interesse público. Depois que Hitler ordenou o assassinato do comando de suas tropas de assalto na Noite das Facas Longas, não seria uma aberração que Schmitt publicasse um artigo intitulado “O Führer protege a lei”.

John Maynard Keynes, que abominava tanto o comunismo como o fascismo. Enquanto a Europa se voltava cada vez mais para modelos de sociedade baseados no socialismo de Estado marxista ou no autoritarismo fascista, Keynes dava uma sobrevida à democracia liberal capitalista propondo um caminho para um capitalismo reformado numa democracia reformada. Keynes, o mais brilhante economista de sua época, daria uma contribuição indispensável à política económica depois da Segunda Guerra Mundial. Sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, publicada em 1936, rejeita a ortodoxia económica clássica (baseada em saúde financeira, orçamentos equacionados e no livre mercado para buscar equilíbrio). Em seu lugar, Keynes propôs a base teórica para a intervenção do governo por meio de aumento de gastos para estimular o mercado, criar pleno emprego e assim induzir uma demanda que sustente o crescimento económico. Mas Keynes também era motivado pela noção de crise abrangente, embora sua origem na classe dominante inglesa e a relativa solidez das estruturas políticas britânicas o levassem a buscar soluções pela política económica num contexto de democracia liberal.

Depois da Segunda Guerra, avultaram os intelectuais antifascistas alemães do exílio. Entre elas estavam as dos membros da prestigiada Escola de Frankfurt (transferida para Nova York), composta por eminentes filósofos e cientistas sociais marxistas (embora não leninistas) liderados por Max Horkheimer e Theodor Adorno. Quando a vitalidade começou a retornar à vida intelectual europeia, depois de 1945, tanto o pessimismo como o otimismo em relação ao futuro eram evidentes. As profundezas em que a civilização tinha afundado evocavam — principalmente no renascimento cristão, muito influenciado pela teologia de Karl Barth — um sentimento de esperança no futuro se a sociedade conseguisse voltar aos valores e crenças do cristianismo. Renovaram-se também as esperanças, ainda que só ganhassem força na década de 1950, na democracia liberal, que enfim triunfou sobre a ameaça nazi.

Raymond Aron, destacado filósofo político francês (e antimarxista fervoroso), pensava que “podemos encerrar a era das guerras hiperbólicas sem cair de novo sob o jugo”. As lições das duas guerras tinham sido aprendidas. “A violência desenfreada não leva a nada.” A “missão de liberdade” do Ocidente, segundo o autor, demonstrava boas chances de sucesso. Para outros, no entanto, o otimismo se voltava para o sentido exatamente oposto, com suas renovadas esperanças na vitória final do comunismo. A União Soviética tinha triunfado sobre o nazismo. Os comunistas desempenharam um papel de destaque nos movimentos de resistência que combateram a ocupação nazi. No entanto, na Europa Ocidental, a crença na União Soviética diminuía. À medida que a aliança com a União Soviética dos tempos de guerra dava lugar à Guerra Fria, o Leste Europeu caía sob o jugo soviético e os horrores do estalinismo tornavam-se mais amplamente conhecidos, a esperança naquele modelo de comunismo dava lugar a um novo clima de hostilidade.

George Orwell ficara profundamente desgostoso com o que vira na Espanha durante a guerra civil a respeito da intolerância estalinista para com qualquer desvio da rígida linha partidária. Seu anticomunismo se intensificou com o pacto entre Hitler e Stalin, em 1939. E quando Stalin aliou-se à Inglaterra, depois da invasão alemã de 1941, Orwell ficou horrorizado com o facto de “esse assassino repulsivo estar temporariamente do nosso lado, de forma que os expurgos etc. de repente sejam esquecidos”.

A obra decisiva — que teve muita influência no mundo ocidental — foi a de Hannah Arendt, judia alemã exilada nos Estados Unidos e, ironicamente, ex-amante de Martin Heidegger. Em 1949, ela estava terminando a sua extraordinária análise “Origens do Totalitarismo”, que sairia dois anos depois. O livro era, em sua essência, uma explicação da ascensão do nazismo ao poder, e em suas duas partes analisava o antissemitismo e o imperialismo. A comparação com a União Soviética vinha na terceira parte, “Totalitarismo”, que saiu quase toda numa edição posterior, bastante revista. Essa secção comparativa pintava a imagem tenebrosa de um “mal radical”, fenómeno político inteiramente novo cuja essência é o “terror total”, que destrói todas as bases da lei, “rompe com todos os parâmetros que conhecemos” e gera um sistema apoiado em “fábricas de aniquilamento” nas quais “todos os homens tornaram-se equitativamente supérfluos”.



Sartre e Raymond Aron juntos, quando em 1979 foram ter com Giscard d’Estaing para interceder a favor dos ‘boat people’ (refugiados do Vietname após a guerra). Sartre é o que melhor ilustra as desventuras do ‘engagement’.

Em 15 de abril de 1980 Jean-Paul Sartre morre. Aqui vemos nas imagens do seu funeral, 18 de abril, dezenas de milhares de pessoas que o acompanham até ao cemitério de Montparnasse.



No dia seguinte, no L ‘Express, Raymond Aron presta homenagem a Sartre: “Sartre viveu o drama de um moralista perdido na selva da política”. Vidas e mundividências bem contrastantes. Aron publica na primavera de 1983 as suas Memórias, vindo a falecer em 17 de outubro 1983. Jean-François Lyotard, anuncia no Le Monde de 8 de outubro de 1983, no artigo sob o título “Tombeau de l’intelectuel”, precisamente o fim dos intelectuais, cuja ambição desde o século XVIII era pensar e representar o universal.




Simone de Beauvoir no funeral de Sartre


domingo, 25 de fevereiro de 2024

A grande diversidade de casos: transexualidade - transgénero - homossexualidade



Um caso : J.B., de 37 anos, casada há 15 anos, com um homem de nome João, parece não ter ficado muito surpreendida quando ele revelou que era um “transgénero” e se identificava como uma mulher. O caso é insólito porque nessa altura, ao saber disso, decide também revelar o seu segredo: que é lésbica. Ora eles têm dois filhos, um de 11 e outro de 13, e decidem continuar o casamento como até ali, exceto João ter mudado o nome para Sara, e ter encetado o processo hormonal para completar a transição. Entretanto, o filho mais velho, aos 15 anos, revelou que se considerava homossexual, e o mais novo começou a ficar confuso.

A maioria das pessoas trans receberam, como toda a gente, o mesmo conjunto de normas, doutrinas, regras, que supostamente fazem deles e delas homens e mulheres heterossexuais. Mas, a certa altura, tomam consciência de que algo não funciona e afirmam‑se gays, lésbicas, trans. Muitas vezes as coisas acontecem, por acaso, se entram em meios apropriados onde existem outras pessoas queer e trans e, conversando, automaticamente passam a identificar-se com elas, tendo vontade de fazer a mesma coisa. É difícil fazer generalizações sobre a transição porque os percursos de cada uma são muito diferentes.

Outro caso : Erina, depois de alguns anos passados em São Petersburgo, onde dava apoio à comunidade homossexual chechena, acabou por ir para Paris com o estatuto de refugiada política. Aí se apaixonou por uma mulher: «Não posso mudar os meus desejos, mas posso mudar quem sou, de certo modo. Quando saía com homens, tinha o cabelo rapado, com roupas muito masculinas. Ainda tenho o hábito de usar o género masculino em russo. Mas percebi a certa altura que não se pode ser nem homem nem mulher se quiser ser atraente para homens ou mulheres. Tinha a escolha de fazer uma transição ou de, então, abraçar o meu lado feminino, ir mais além na minha feminilidade. A minha disforia (o meu problema com relações heterossexuais) era provocada somente por razões sociais e não por um conflito com o meu corpo.»

Erina apaixonou-se por uma mulher trans, que era homem e não se sentia bem como homem heterossexual, e hoje assumem que formam um casal heterossexual. Uma simetria em espelho perfeita, pois Erina também não se sentia bem como uma mulher heterossexual. Ou seja, um casal formado por uma mulher que passou a homem, e um homem que passou a mulher. Diz Erina: «As pessoas procuram ora mulheres, ora homens, e não uma coisa qualquer. Queria ser atraente. Se eu quisesse sair com um homem — porque às vezes me sinto atraída por homens — os heterossexuais tinham medo de mim, porque eu exigia que me tratassem pelo género masculino (coisa impossível, sobretudo para os Russos). Como eu dizia que era do género masculino, até havia homens homossexuais que se sentiam atraídos por mim. Mas depois desistiam, porque o meu corpo não era suficientemente masculino.»

Podem acontecer, nestes meios muito especiais, relacionamentos duplamente cruzados que para uma comum pessoa “cis” se afiguram bizarros, ou até aberrantes. É, por exemplo, o caso de um homem trans (corpo de mulher) poder ter sexo com um homem, mas não ser capaz de uma relação amorosa em que o que conta é a identidade de género para o amor. A pessoa trans é atraente enquanto fetiche, mas não enquanto alguém com quem possa passear orgulhosamente na rua; como algo que pode usar para satisfazer uma qualquer fantasia e não como alguém a quem dá a mão em público e tem vontade de apresentar como namorada ou namorado.

E Erina aprofunda a questão: «Autocensurava a minha sexualidade por não ser uma lésbica normal, com os seus pequenos desejos sexuais, passiva e submissa. O que me conduziu a situações, em termos de consentimento, bastante perigosas e sobretudo a uma sexualidade de modo nenhum satisfatória. Há, claro, homens trans cujo objetivo é tornarem‑se homens e ponto final. Falo dos que estão no meio queer, que fazem a transição para uma aparência e atitude masculinas, mas que não querem ser homens. Que querem aliar esses elementos com a preservação da identidade lésbica de antes da transição, não de modo a mudar de categoria, mas como maneira de se reapropriar do seu corpo, da sua autoconfiança, de se livrarem das contingências do feminino.»

Gosta de homens porque gosta de pénis, ou gosta de pénis porque gosta de homens? A comunidade lésbica tem esta discussão recorrente: é ou não transfóbica uma lésbica não querer ir para a cama com uma mulher transexual? O facto de uma mulher lésbica associar a sua atração por outras mulheres, que obviamente têm vagina, é frequente mulheres transexuais (cujo órgão sexual é obviamente um pénis) apontarem essas lésbicas como transfóbicas. As mulheres transexuais criticam as mulheres lésbicas por pressuporem que todas as mulheres lésbicas devem gostar de vaginas, uma vez que as mulheres heterossexuais obviamente que só gostam de pénis. Asseveram que a coisa é mais complexa.




Um ano depois de passar pela cirurgia de mudança de sexo, vê-se nesta foto Talleen Abu Hanna no palco em HaBima, teatro nacional de Israel em Tel Aviv, 27 de maio de 2016, depois de ter sido anunciado o primeiro lugar no concurso de beleza “Miss Trans Israel”. Nasceu rapaz. E ainda menino, em Nazaré, deixou o caraté para ir fazer balé. Quando adolescente roubava a maquilhagem à mãe e os vestidos à irmã. E um dia teve uma epifania quando conheceu uma senhora "trans" que ao contar a sua história lhe fez abrir os olhos para uma realidade que desconhecia.

A diversidade conceptual à volta do tema é imensa. Todavia, ninguém está livre nos dias de hoje de cometer uma gafe sem perdão, pois cada vez o mundo da identidade de género é mais complexo, e é muito fácil no dia-a-dia não sabermos muito bem qual é a expressão de género, ou a orientação sexual que temos pela frente. Em termos simples: numa pessoa “trans”, a sua identidade de género é diferente da que lhe foi atribuída aquando do nascimento. Estamos de facto a lidar com o sentimento mais profundo do ser de uma pessoa: ser homem, ser mulher, ou "agénero". Uma pessoa "agénero" não se sente nem totalmente masculina, nem totalmente feminina. Assim, estas pessoas ora se identificam com um género, ora com o outro. As pessoas que não se identificam com nenhum género também se definem pelo termo “não-binário”.

Em que é que a mulher é diferente do homem?

O neodarwinismo tem de avançar, embora com cautela, é claro. A diferença entre um homem e uma mulher assente exclusivamente na construção cultural sempre pareceu implausível, por muito amplamente aceite que se tenha tornado durante algum tempo. Dispomos atualmente de provas diretas da existência de diferenças não apenas no aspeto físico, mas também ao nível mental e emocional. E afirmar que os homens e as mulheres são diferentes não significa que tudo esteja preso a sete chaves nos genes. Se a ciência está a mostrar-nos que os homens e as mulheres são diferentes, não é para fazer regredir a constituição dos direitos, nem para justificar a supremacia de um em relação ao outro. Temos apenas o direito de saber que assim é, e não atravancar as nossas mentes com fósseis culturais.

Tudo começa no útero materno, com um banho hormonal por volta da 12ª semana de gestação. Até aí todos os fetos são femininos. E é então que, com hormonas masculinas a banharem o cérebro do feto, a partir de um determinado teor começa a masculinidade. E o cérebro reorganiza-se de forma a definir o género: feminino ou masculino.

É possível que as crianças (rapazes ou raparigas) já nasçam com as suas orientações e preferências, determinadas pelo género que está definido no cérebro. E assim são levadas a procurar diferentes experiências conforme o género. As raparigas, mais expeditas desde o primeiro dia na captação das expressões emocionais, se o desenvolvimento gradual se processar coerentemente, tornar-se-ão provavelmente mais competentes que os rapazes na inteligência socio-emocional. No entanto, se as raparigas estiveram a expostas durante a gestação a níveis desajustados de hormonas masculinas, mais elevados, poderão ser capazes de na fase adulta competir atleticamente com mais vantagem sobre as outras, que pode ser indiciada pela preferência na infância por brinquedos destinados aos rapazes.

Entre os 8 e os 12 anos, temos mais indícios das diferenças, com a emergência das competências espaciais mais robustas nos rapazes. Se, entretanto, não houver condicionamentos na aprendizagem, predomina a preferência orientada pelo instinto. Na realidade, acreditando na seriedade dos trabalhos de investigação científica, é crescente o número de publicações científicas, agora com a utilização de exames facilitados pelas sondas de ressonância magnética de última geração, a atestar consistentemente diferenças na atividade cerebral. Por exemplo, no que concerne a competências linguísticas, a mulher leva a melhor, sobretudo no âmbito do namoro, quando se trata da escolha do parceiro.

Um outro capítulo que se presta a muita confusão é o da identidade de género e orientação sexual. São dimensões diferentes dos nossos biótipos, que não se confundem, pelo que também temos de os abordar com conceitos distintos. Género é uma categoria social e cultural, remete à forma como as pessoas se autodefinem (como mulheres ou como homens). Sexo é uma categoria biológica, remete para a questão da sexualidade, do desejo, da atração afetivo-sexual por alguém de algum género. A categoria do sexo é definida por aspetos biológicos: sexo feminino e sexo masculino. O conceito de género remete para significados sociais, culturais e históricos, associados aos sexos. O que acontece, na realidade, são pessoas que o seu corpo não é sentido da forma como pensam o género que são. Isso tem a ver com o uso de roupas, objetos, maquilhagem, etc.




Assim, a intersexualidade deve ser assumida como uma variação e não como uma patologia. As pessoas intersexuais apresentam um corpo com variações mistas do biótipo do sexo masculino e feminino. Isto refere-se não só aos órgãos genitais ou gónadas, em que não apresentam um padrão totalmente feminino ou masculino, e que entram na classificação de hermafroditas verdadeiros ou pseudo-hermafroditas. Tal dificuldade só é dirimida pela análise ou cromossómico.

A Assembleia da República já legislou sobre a matéria da Identidade de Género. Hoje, uma pessoa de 16 anos de idade já pode alterar no registo civil o seu nome para se coadunar mais com o tipo de género que se sente, e sem precisar de um atestado médico ou consentimento dos pais. O objetivo é tornar Portugal num país mais respeitador dos direitos humanos das pessoas transexuais e transgénero, bem como a previsão do reconhecimento civil das pessoas intersexo. O direito à autodeterminação de género e à expressão de género, tendo ficado de fora o género neutro. Não está, portanto, relacionado com a orientação sexual.




Crossdressers e/ou travestis não tem nada a ver com transexualidade ou transgénero, ou homossexualidade. É um protótipo para referir pessoas que vestem roupa ou usam objetos associados ao sexo oposto, por qualquer uma de muitas razões, desde vivenciar uma faceta feminina (para os homens), masculina (para as mulheres), motivos profissionais, para obter gratificação sexual, etc. Um travesti pode ser heterossexual, homossexual, bissexual ou assexual. E, por exemplo, o homossexual, ao contrário do ‘trans’ não apresenta disparidade psicológica com o sexo físico/biológico que possui. Portanto, os transformistas fazem parte da população crossdresser, cuja motivação é apenas de índole profissional, atores de espetáculos de transformismo. A expressão "drag-queen" significa DRessed As Girl.

Quando a criança passa do estado de natureza ao estado de sujeito, se, entretanto, interiorizou uma situação de injustiça, admite-se que possa gerar-se um conflito identitário movido pelo sentimento de relação de desigualdade. Até à aquisição do sujeito há uma indiferenciação proto social que não se reconhece como ente sexuado. A identidade é descoberta na sociedade. Não deve ser por acaso que em certas culturas do passado era o pai a levar o filho à iniciação da sua sexualidade.

Instaura-se assim um equívoco em todo o sistema da linguagem por via de uma imagem que não passa de um espectro. O funcionamento da espectralidade funda-se então, na crença da transcendência do corpo físico. Os espectros formam-se quando a imaginação corpórea funciona e age sobre um fundo de nada, uma imagem sem corpo. Para que os corpos continuem são sempre necessários homens e mulheres. Mas os espectros da transcendência são como os deuses, não há géneros puros, como nos mostra a etnologia.

Salvo raras exceções, a identidade de género é atribuída à nascença pelos órgãos genitais. Há casos em que por uma qualquer disjunção assimétrica entre o corpo e o sentimento o indivíduo sente-se num género diferente ao que é ditado pelo corpo. Assim, tal fenómeno é desencadeado como um espectro. O espetro é como um signo de uma coisa não existente. O espectro aparece para significar o que não nasceu por um movimento de disjunção. O espectro será simultaneamente signo e significado, que se atribui parcialmente como um ente que não é. A clivagem na identidade de género vem de um movimento de disjunção assimétrica. O outro género não é o contrário, nem o avesso, nem o inverso. Autoidentifica-se parcialmente como um ente que não é.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

União Soviética de Stalin, a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler



As três ditaduras dinâmicas — a União Soviética de Stalin, a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler — eram na prática formas de governo bastante distintas, embora tivessem alguns aspetos estruturais em comum. O regime de Stalin distingue-se claramente dos outros dois, que partilham um maior número de características (além do facto de a Alemanha nazi ter tomado “emprestados” alguns elementos da Itália fascista), ainda que também apresentem diferenças cruciais. O único dos três regimes a declarar explicitamente que estava construindo um “estado totalitário” foi o de Mussolini. No entanto, a “reivindicação total” teve, de forma incontestável, consequências tremendas para o comportamento dos cidadãos em sociedades orquestradas e controladas de forma tão rígida.

Em cada um dos três regimes tentou-se, incessantemente, moldar atitudes e comportamentos de acordo com princípios ideológicos excludentes. A identidade com o regime era sustentada e fortalecida pela ênfase no “inimigo interno” — os “excluídos”, cuja própria existência levou à criação de uma comunidade de “incluídos”, aqueles que estavam “integrados”. A sociedade italiana foi a que menos se impregnou dos valores do regime; e o grau de impregnação, com toda probabilidade, foi maior na Alemanha.

Com base nos indicadores disponíveis, a Alemanha nazi teve o mais alto nível de apoio popular, e a Itália ficou a certa distância, enquanto a União Soviética tinha a maior população coagida, o que parece indicar um menor índice de apoio autêntico. Para as pessoas aterrorizadas pelo Estado policial, as diferenças ideológicas ou estruturais entre os regimes eram uma questão da mais absoluta indiferença. A União Soviética exercia um extraordinário nível de terror dirigido a seus próprios cidadãos, muito mais que os outros dois regimes, uma dissuasão arbitrária e imprevisível não repetida em nenhum outro lugar. O terror nazi concentrava-se em sufocar a oposição política organizada e, cada vez mais, em minorias fracas e pequenas — em especial os judeus e outros grupos raciais ou sociais “excluídos”.

Depois de mais de uma década de governo fascista, a lacuna entre a retórica e a realidade era considerável, e o objetivo de uma totalidade de Estado e sociedade permaneceu ilusório. Havia pouca determinação impulsora por trás das ações do regime. Mesmo a guerra colonial e a vitória na Abissínia, embora o triunfo fosse bem-visto, tiveram somente um efeito superficial sobre a postura dos italianos e mobilizaram a população por pouco tempo. Apesar da beligerância de Mussolini e da cúpula fascista, havia pouco interesse pela perspetiva de guerra e glória militar, e com certeza pouca disposição de suportar as agruras e o sofrimento de um conflito.

Ao contrário do que ocorria na Itália, o impulso ideológico na União Soviética era fortíssimo. Avanços colossais, a um enorme custo humano, tinham sido feitos para mobilizar a economia estatal, reestruturar a produção agrícola e industrializar o país em ritmo mais que acelerado. Por trás da notável rapidez dessas medidas estava a presunção de uma guerra que não demoraria a acontecer. Todavia, à diferença da Alemanha e até da Itália, o foco estava na preparação da economia e da sociedade para a defesa militar da União Soviética, e não para a agressão externa (embora a ocupação dos países bálticos e, talvez, do oeste da Polónia fosse levada em conta, confessadamente, como parte da construção de um cordão defensivo). A União Soviética não se achava, de maneira alguma, pronta para um conflito de vulto, embora o próprio Stalin infligisse sérios desfalques ao Exército Vermelho com os grandes expurgos.

O dinamismo ideológico de Hitler avulta sobre o dos outros dois regimes, tanto na nitidez do foco de sua perseguição cada vez maior dos “inimigos” externos, sobretudo os judeus, como em sua intensa preparação para o conflito militar num futuro próximo — preparações que eram de natureza claramente agressivas, e não defensivas. A Alemanha tinha a economia mais avançada da Europa, uma economia que vinha sendo orientada rapidamente e cada vez mais para a guerra. E contava também com a mais eficiente liderança militar.

Juntas, as três ditaduras viriam a desempenhar um papel fundamental no desenho do continente europeu nos anos vindouros, mas os governantes das democracias ocidentais consideravam, corretamente, que a maior ameaça era a Alemanha. Na época, Stalin era visto como um perigo sobretudo para seu próprio povo, enquanto Mussolini era uma ameaça em especial para os povos subjugados das colónias italianas na África e fonte de imprevisibilidade no Mediterrâneo. Hitler ameaçava os judeus alemães, mas, da perspetiva internacional, era acima de tudo um perigo gigantesco e crescente para a paz na Europa.

O governo britânico, em especial, desconfiava da União Soviética e lhe era antagónico, abominando seu sistema social e vendo com perplexidade os expurgos de Stalin. A Itália era considerada um problema controlável no Mediterrâneo, cada vez mais hostil aos interesses ocidentais, mas não uma ameaça grave por si só. A principal e crescente fonte de preocupação era a Alemanha, com um povo unido e liderado por um ditador de implacável determinação, um país que se rearmava depressa e cujas forças já estavam perto de superar o poderio militar da Primeira Guerra Mundial. Em 1914, a Inglaterra tinha ido à guerra principalmente para evitar que a Alemanha dominasse a Europa e para proteger o seu império de suas pretensões à condição de potência mundial. Tudo indicava que em pouco tempo a história se repetiria.

Mas em julho d 1936 o general Franco lançou sua rebelião contra a república espanhola, e em pouco tempo ganhou o apoio de Hitler e de Mussolini, enquanto Stalin dava apoio às forças republicanas. Os ditadores, em lados opostos da Guerra Civil Espanhola, estavam testando as suas forças. Mais uma vez, as democracias ocidentais revelariam sua fraqueza. O envolvimento das grandes potências na Guerra Civil foi o mais claro sinal, além da tragédia nacional para o povo espanhol, de que a ordem internacional da Europa estava entrando em colapso.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

O enganador culto do medo. Alexei Navalny morreu





Pode impressionar qualquer pessoa a ocidente dos Montes Urais a forma como os cidadãos da Coreia do Norte adoram o seu líder. Mas esse fenómeno humano não é assim tão raro como se possa imaginar. Um caso que já foi exaustivamente estudado foi o culto a Stalin, ainda por cima com a propaganda que na União Soviética se abominava o culto de personalidade, lenda que o Partido Comunista Português importou para Portugal. Ainda hoje os líderes do PCP difundem o argumento de que a personalidade não interessa, o que interessa são as propostas concretas para resolver os problemas aos cidadãos.

A imagem de uma liderança forte e resoluta correspondia às qualidades pelas quais milhões de cidadãos soviéticos ansiavam depois de anos de conflitos. E, embora a União Soviética fosse oficialmente uma sociedade ateísta, tradições enraizadas profundamente na fé popular — num censo realizado em 1937, 57% dos cidadãos soviéticos ainda declararam ser religiosos, informação mais tarde suprimida — levavam a elementos quase sacros no culto a Stalin, e uma fé em sua pessoa como profeta, salvador ou redentor.

O culto criou, sem dúvida, a base de uma popularidade genuína, ainda que isso não possa ser quantificado. Essa base foi de incontestável importância na consolidação de seu domínio. Contudo, houve um fator muito mais importante: o medo. O poder pessoal de Stalin se baseava, acima de tudo, na precariedade de toda a autoridade subordinada, cada vez mais sujeita a suas decisões arbitrárias quanto à vida ou à morte. O regime dependia, na prática, da insegurança difusa que permeava toda a sociedade soviética. Essa insegurança alcançou novos patamares durante o “grande terror” que acompanhou os expurgos de 1937/1938.

Já durante o Primeiro Plano Quinquenal houvera inúmeros casos de violência e prisões. Mesmo em 1933, mais de 1 milhão de “elementos antissoviéticos” foram mandados para campos de concentração e cárceres. A extrema insatisfação de Stalin com o que considerava ser a oposição, no âmbito municipal, ao ritmo acelerado das mudanças económicas causou a expulsão de mais de 850 mil membros do partido em 1933. Havia tensões também nos altos escalões do partido. Alguns de seus dirigentes queriam reduzir as pressões sobre a economia, e havia indícios de que Stalin não podia mais contar com o apoio incondicional da cúpula do partido. Alguns líderes depositavam suas esperanças em Serguei Kirov, o popular chefe do partido em Leningrado e membro do Politburo. Em 1934, porém, ele foi morto a tiro em seu gabinete.

O assassino, foi o Leonid Nikolaiev, alegadamente por razões pessoais. Contudo, Stalin estava em busca de complôs políticos. Nikolaiev foi interrogado rapidamente e fuzilado. Quaisquer que fossem as suspeitas existentes, o envolvimento de Stalin no assassinato de Kirov nunca foi comprovado. Mas ele não perdeu tempo em tirar proveito da morte de Kirov. Deu à polícia do Estado, a NKVD, autoridade para prender, julgar e executar à vontade. Mais de 30 mil opositores, reais ou supostos, foram banidos de Leningrado para a Sibéria ou outras áreas remotas. Quase 300 mil membros do partido foram expulsos nos cinco meses seguintes. E a paranoia crescente não seria amenizada pelos relatórios da polícia logo após o assassinato de Kirov. Também Zinoviev e Kamenev foram condenados à morte e fuzilados em agosto de 1936.

Os dois foram os primeiros entre os antigos líderes bolcheviques, membros do Comité Central, a ser expurgados. Mas houve outros. Seguiram-se, em 1938, o julgamento-espetáculo de Bukharin e sua inevitável execução. Os membros do Comité Central viviam com medo, e com bons motivos. Nada menos que 110 de 139 membros, considerados “não confiáveis”, foram presos — o que geralmente acabava em execução ou numa vida nada invejável no gulag, a rede de prisões e campos de trabalhos forçados que recebia políticos dissidentes.

Também foram presos dirigentes do partido e do Estado em praticamente todas as repúblicas nacionais da União Soviética. Dos 1966 delegados que participaram do Congresso do Partido em 1934, 1108 foram presos. Stalin estava destruindo o próprio Partido Comunista como base de poder independente. Os expurgos vitimaram também grande número de administradores, cientistas e engenheiros — um dos motivos pelos quais o crescimento económico chegou ao fim depois de 1937.

Uma vez desencadeados, os expurgos ganharam vida própria. Em 1937, a NKVD deu ao Politburo uma meta de 250 mil pessoas a serem presas. Mais de 70 mil seriam fuziladas, e as demais sentenciadas a longas penas em prisões ou campos de trabalhos forçados. No fim de 1938, quando os expurgos declinaram (talvez porque o enorme número de vítimas estivesse reduzindo a produção industrial), a meta tinha sido ultrapassada em muito. O número de presos chegara a quase 1,5 milhão, e cerca de 600 mil pessoas haviam sido fuziladas. Até o expurgador-mor, o chefe da polícia de Stalin desde 1936, Nikolai Yejov, apelidado Ouriço de Ferro, foi preso em 1939 e executado no ano seguinte. Em 1939, o número total de presos em cadeias e campos e colónias de trabalhos forçados, onde as condições estavam mais perto da morte que da vida, era de quase 3 milhões. A taxa de mortalidade por fome, excesso de trabalho e execuções arbitrárias era colossal.

Stalin era uma pessoa extremamente vingativa, fria e cruel. Era dado a fantasias paranoicas — que geravam por si só factos que davam a Stalin motivos racionais para duvidar de sua própria segurança. Milhões de apparatchiks ambiciosos e cidadãos servis tornavam o terror efetivo em todos os níveis da sociedade. Para cada vítima do terror havia pessoas que lucravam por servir ao regime. Inquestionavelmente, havia também a convicção generalizada, estimulada pelo regime, de que a União Soviética estava infestada de “agitadores”, “sabotadores”, “nacionalistas”, “kúlaques”, espiões e agentes inimigos. Por isso, eram muitos os que aplaudiam o terror destinado a extirpar os “oposicionistas”, o que fortalecia nessas pessoas a identificação com a tarefa épica de construir uma sociedade socialista e confirmava a fé que tinham em Stalin. Até muitas pessoas que sofriam perseguição e discriminação procuravam desesperadamente uma sensação de pertencimento, associando-se aos valores soviéticos.

As denúncias eram incentivadas em todos os campos. A menor observação “desviacionista” podia provocar a temida batida na porta no meio da noite. “Acordo de manhã e penso automaticamente: graças a Deus não fui presa na noite passada”, escreveu uma mulher de Leningrado em seu diário, em novembro de 1937. “Eles não prendem pessoas de dia, mas o que vai acontecer à noite, ninguém sabe.” Outro cidadão de Leningrado, um operário de fábrica, ficava acordado, com medo de ouvir o barulho do motor de um carro. “Eles vieram me buscar!”, seu filho se lembrava de ouvi-lo dizer sempre que escutava um veículo passando na rua à noite. “Ele estava convencido de que seria preso por alguma coisa que tinha dito. Às vezes, em casa, ele xingava os bolcheviques.” A chegada da polícia era aterrorizante. “De repente, vários carros entraram no quintal”, lembrou o filho de Osip Piatnitski, bolchevique veterano e no passado companheiro leal de Lenine, narrando a prisão do pai. “Homens de farda e à paisana saltaram e caminharam em direção às escadas […]. Naquele tempo, muitas pessoas esperavam ser presas, mas não sabiam quando chegaria a sua vez.” O medo da denúncia criava uma sociedade silenciosa. “As pessoas só conversam em segredo, nos bastidores e em particular. As únicas pessoas que expressam suas opiniões em público são os bêbados”, registou um homem em seu diário em 1937.

As denúncias não eram necessariamente políticas. Podiam render promoções na carreira e vantagens materiais diretas. Eram também uma dádiva dos céus para ajustes de contas: um conflito com vizinhos, uma discussão no trabalho ou o rompimento de um relacionamento íntimo. Um exército de informantes, alguns pagos ou subornados, alguns forçados a cooperar por meio de chantagem, muitos apenas colaboradores voluntários, deduravam pessoas à polícia. Seguiam-se, invariavelmente, a prisão, o exílio, o campo de trabalhos forçados ou a execução. Na população carcerária, grande parte da qual ignorava seus próprios “crimes”, estavam representados todos os setores da sociedade. Em 1937-8, ninguém estava em segurança na sociedade soviética, desde o mais humilde camponês até os membros do Comitê Central. De facto, a elite do partido estava entre os de maior risco. Nem mesmo os entusiastas de Stalin podiam ter certeza de que em algum momento não ouviriam socos noturnos na porta, dados por policiais que vinham buscá-los.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

David Ben-Gurion e Wasif Jawhariyyeh




Ben-Gurion no kibbutz Sde Boker, 1953


Ben-Gurion nasceu com o nome de David Grün na Polónia, que era então parte do Império Russo. Seu pai, Avigdor Grün, foi um advogado e um líder no movimento Hovevei Zion. Quando estudava na Universidade de Varsóvia, ingressou no movimento marxista Poale Zion, em 1904. Foi preso duas vezes durante a Revolução Russa de 1905. Atormentado pelo antissemitismo do Leste Europeu, tornou-se socialista e emigrou para Palestina em 1906. Ali tornou-se um importante líder da Poale Zion (Trabalhadores de Sião).
Os pogroms estimularam David Grün a embarcar num dos navios de peregrinos que partia de Odessa e viajar para a Terra Santa. Em 1909, esses colonos fundaram Tel Aviv nas dunas de areia próximas ao antigo porto de Jaffa; em 1911, criaram no norte uma nova fazenda coletiva — o primeiro kibutz.

Após sua chegada, Grün levou muitos meses para visitar Jerusalém; em vez disso, trabalhou nos campos da Galileia, até que, em meados de 1910, o rapaz de 24 anos mudou-se para Jerusalém para escrever num jornal sionista. Magro e pequeno, cabelo crespo e sempre vestindo uma bata rubashka russa para enfatizar suas credenciais socialistas, adotou o pseudónimo “Ben-Gurion”, emprestado de um dos lugares-tenentes de Simão bar Kochba. A velha camisa e o novo nome revelavam os dois lados do emergente líder sionista.

Na Palestina, trabalhou pela primeira vez na agricultura, na colheita de laranja. Em 1909, passou a participar da Hashomer, uma força de voluntários que ajudavam a proteger as comunidades judaicas agrícolas isoladas. Em 7 de novembro de 1911, Ben Gurion chegou a Salonica, a fim de aprender turco para os seus estudos de Direito. A cidade, com uma grande comunidade judaica, impressionou Ben Gurion com o comentário de ser uma cidade judaica sem igual no mundo. Também percebeu ali que os judeus eram capazes de todos os tipos de trabalho, desde ricos empresários a comerciantes, artesãos e porteiros. Também trabalhou como jornalista, adotando o nome hebraico Ben-Gurion, quando iniciou a sua carreira política. Em 1915 ele e Ben-Zvi foram expulsos da Palestina, então ainda sob o domínio do Império Otomano. Passando a viver em Nova Iorque em 1915, conheceu Paula Munweis, nascida na Rússia, com quem viria a casar em 1917. Depois do fim da Primeira Guerra Mundial regressou então à Palestina, nesta altura já sob controlo da Grã-Bretanha.

O pai de David Grün já era um líder local dos Amigos de Sião, precursor do movimento sionista, e um aguçado hebraísta, de modo que David aprendeu hebraico desde tenra idade. Mas David, como muitos outros sionistas, ficou chocado quando leu que Herzl havia aceitado a oferta do Uganda, no Sexto Congresso Sionista. O plutocrata austríaco barão Maurice de Hirsch financiava colónias judaicas na Argentina, e o nova-iorquino Jacob Schiff promoveu o Plano Galveston, uma Estrela Solitária de Sião para judeus russos no Texas. No entanto, nenhum desses esquemas floresceu. Herzl, exausto de suas peripatéticas viagens, morreu logo depois, com apenas 44 anos. Ele obtivera êxito em estabelecer o sionismo como uma das soluções para a atribulação judaica, particularmente na Rússia. O jovem David Grün chorou a morte do herói Herzl. Mas cedo percebeu que o meio mais eficaz era o povo judeu estabelecer-se na terra de Israel. 

Ben-Gurion acreditava, como a maioria de seus colegas sionistas da época, que um Estado judeu socialista seria criado sem violência e sem dominar ou deslocar os árabes palestinos; ao contrário, tal Estado existiria lado a lado com eles. Estava seguro de que as classes operárias judaica e árabe cooperariam entre si. Afinal, as aldeias otomanas de Sídon e Damasco e a sanjaque de Jerusalém — como a Palestina era então conhecida — constituíam represas de miséria com 600 mil árabes. Havia muito espaço a ser desenvolvido. Os sionistas tinham esperança de que os árabes compartilhariam os benefícios económicos da imigração judaica. 

Mas havia pouca mistura entre os dois povos, e não ocorreu aos sionistas que a maioria desses árabes não desejava os benefícios do seu assentamento. Em Jerusalém, Ben-Gurion alugou uma cave sem janelas, mas passava o tempo nos cafés árabes na Cidade Velha, escutando as mais recentes canções árabes. Foi aí que conheceu o jovem árabe cristão - Wasif Jawhariyyeh - hierosolimita nativo, já conhecedor da beleza e do prazer, ouvia as mesmas canções nos mesmos cafés e aprendia a tocá-las no seu alaúde



Tradução dos Diários

Wasif Jawhariyyeh [1897 – 1972] foi um compositor, poeta e cronista palestino. Ele é conhecido por suas memórias "Os Diários de Diaries of Wasif Jawhariyyeh", que abrange mais de seis décadas, de 1904 a 1968, cobrindo a turbulenta história moderna de Jerusalém, incluindo quatro regimes e cinco guerras. Nascido em Jerusalém, era 
filho de Jiryis e Hilana Barakat. Os Jawhariyyeh praticavam o cristianismo ortodoxo oriental. Seu pai era um membro ativo de sua comunidade, como membro do conselho municipal de Jerusalém e serviu por um tempo como assessor fiscal. Mais tarde, ele seguiria uma carreira como produtor de seda, proprietário de café, habilidoso criador de ícones. Ele também era um músico amador.

Os Diários de Wasif Jawhariyyeh (1904-1968), são as memórias de Wasif Jawhariyyeh (1897-1972), um cidadão de Jerusalém e um conhecido compositor, tocador de Oud, poeta e cronista. As memórias de Jahwariyyeh narram um período marcado por uma extensa transformação política e socioeconómica dentro da cidade de Jerusalém. A passagem para o século XX inaugurou uma era de modernidade em Jerusalém, manifestada pelos avanços da tecnologia, da indústria, do governo, da infraestrutura, das artes e da educação. Os escritos de Jawhariyyeh servem como uma fonte primária inestimável que ajudou o estudo do período; principalmente sobre os efeitos da modernização e o papel das etnias e identidades sectárias durante o período.

Quando Wasif Jawhariyyeh iniciou o diário, seu pai ainda ia para o trabalho cavalgando um jumento branco, mas Wasif viu o primeiro transporte sem cavalos, um automóvel Ford dirigido por um dos colonistas americanos na estrada de Jaffa. Tendo se acostumado a uma vida sem eletricidade, logo ele passaria a gostar de assistir ao novo cinematógrafo no Complexo Russo (“a taxa de ingresso era um bishlik otomano pago na porta”). Wasif se regalava na mistura cultural. Cristão educado na escola pública inglesa de St. George, estudou o Alcorão e se divertia em piqueniques no monte do Templo. Encarando os judeus sefarditas como “Yahud, awlad Arab” (judeus, filhos de árabes), fantasiava-se para o Purim judaico e participava do Piquenique Judaico anual na tumba de Simão, o Justo, onde entoava cantigas andaluzes acompanhado de oud e pandeiro. Numa apresentação típica, tocou uma versão judaica de uma conhecida canção árabe para acompanhar o coro asquenaze na casa de um alfaiate judeu no Bairro Montefiore.

Os árabes acreditavam que finalmente seriam libertados do despotismo otomano. Os primeiros nacionalistas árabes estavam indecisos: não sabiam se queriam um reino centrado na Arábia ou na Síria Maior, mas o escritor libanês Najib Azouri já havia noticiado como as aspirações de judeus e árabes vinham se desenvolvendo simultaneamente — e tendiam a colidir. Jerusalém elegeu como membros do Parlamento Uthman al-Husseini e o sobrinho de Yusuf Khalidi, Ruhi, que era escritor, político e homem do mundo. Em Istambul, Ruhi Khalidi tornou-se vice-presidente do Parlamento, usando sua posição para fazer campanha contra o sionismo e a aquisição de terras por judeus.

As famílias, cada vez mais ricas, seguiam prosperando. Agora as mulheres trajavam tanto a moda árabe quanto a ocidental. A escola britânica levou o futebol a Jerusalém: todo sábado à tarde havia jogo numa várzea perto de Bab al-Sahra — os rapazes Husseini eram jogadores especialmente talentosos, e alguns jogavam com o fez na cabeça. Antes da Grande Guerra, Wasif ainda era um estudante, mas já levava uma vida boémia. Tocava seu oud e servia como intermediário de confiança e organizador de festas, talvez até mesmo um subtil cafetão para as famílias, que agora viviam fora das muralhas em novas mansões em Sheikh Jarrah. 

O filho do prefeito Hussein Effendi al-Husseini, mantinha a mais viva das concubinas, Persephone, uma costureira greco-albanesa, em seu odah na estrada de Jaffa, onde essa sedutora de espírito empreendedor negociava gado e vendia sua própria marca de óleo de timo medicinal. Persephone adorava cantar e era acompanhada pelo jovem Wasif no oud. Quando o próprio Husseini tornou-se prefeito em 1909, casou-se com Persephone.

As amantes eram tradicionalmente judias, arménias ou gregas, mas agora os milhares de peregrinos russos passavam a ser a fonte mais rica para os hedonistas de Jerusalém. Wasif registrou que, em companhia do futuro prefeito Ragheb al-Nashashibi e Ismail al-Husseini, arranjava festas secretas “para as senhoras russas”. E simplesmente aconteceu de, nessa época, um inusitado peregrino russo queixar-se da estarrecedora decadência e prostituição na cidade de seus compatriotas. Chegando em março de 1911, esse monge sibarita era o conselheiro espiritual e confortador do imperador e da imperatriz da Rússia, cujo filho hemofílico, Alexei, só ele era capaz de curar.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Albert Camus





Albert Camus (7 de novembro de 1913 - 4 de janeiro de 1960) - escritor que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1957 - nasceu na costa leste da Argélia, perto de Bône (atual Annaba), filho de pais Pieds-Noirs, Camus passou a infância em bairros pobres e operários. Frequentou o Grande Liceu de Argel e posteriormente entrou na Universidade de Argel, onde teve como professor de filosofia Jean Grenier. Depois de ter adoecido com tuberculose, fez a sua estreia jornalística e literária com duas das suas maiores obras: O Estrangeiro e O Mito de Sísifo.

De seu pai, Camus conhecia apenas algumas fotografias, os estilhaços que o exército enviou à viúva, os relatórios de administração das vinícolas e os dois cartões postais que enviou da metrópole, o primeiro em agosto de 1914 em Noisy-le-Sec, o segundo em setembro para o hospital de Saint-Brieuc. Ele se lembrará particularmente de duas mensagens pedindo moderação e denunciando a barbárie. A primeira marca a indignação do pai com a crueldade revanchista da guerra marroquina. A segunda é uma denúncia da pena de morte:
«Lembrei-me naqueles momentos de uma história que a minha mãe me contava sobre o meu pai. Eu não o conhecia. Tudo o que eu sabia sobre esse homem talvez fosse o que minha mãe me disse na época: ele tinha ido ver um assassino executado. Ele estava doente para ir. Ele tinha feito isso e, na volta, vomitou parte da manhã»
Em 1935, ele entraria para o Partido Comunista, movido por um sentimento de justiça e por desejo de igualdade. Embora fosse um pied noir pobre que – como ele próprio definira – criado entre o sol e a miséria –, a pobreza, assim como a dos demais brancos pobres da Argélia, jamais fora tão aguda quanto a que ele observava existir entre os árabes. Foi essa constatação que o levou a escrever “Miséria na Cabília”, um dos seus primeiros artigos publicados em jornais de Argel. Mas a passagem pelo PC foi rápida, deixando o partido dois anos depois e tornando-se um jornalista engajado na resistência durante toda a Segunda Guerra Mundial. Foi durante esse período que Camus iria escrever “O mito de Sísifo” e o belíssimo romance “O Estrangeiro”, ambos em 1942, além da peça Calígula, dois anos após.

Camus marcou posição sobre a questão da independência argelina. Depois de dois anos no Partido Comunista, bateu com a porta. 
Protestou sucessivamente contra as desigualdades e a miséria que afligiam os povos indígenas do Norte de África. Mas também defendeu os espanhóis exilados antifascistas que também haviam rompido com fortes críticas ao estalinismo. À margem de certas correntes filosóficas, Camus foi, antes de tudo, "testemunha do seu tempo e nunca deixou de lutar contra ideologias e abstrações que nos desviavam do humano". Assim, ele é levado a se opor ao liberalismo, bem como ao existencialismo e ao marxismo. Com o lançamento do L´'Homme Révolté, em 1951, a sua crítica à legitimação da violência do regime soviético na Rússia, valeram-lhe os anátemas que os intelectuais comunistas lhe lançaram, a começar por Jean-Paul Sartre com quem rompeu a sua amizade.

Desconfiado de abstrações ideológicas, já em 1945, Camus descartava qualquer ideia de revolução definitiva e enfatizava os riscos do desvio revolucionário. Segundo ele, os fins nunca justificam os meios. Um homem de esquerda moderada, posiciona-se à distância da esquerda comunista e da direita liberal de Raymond Aron. Camus durante os seus 46 anos de vida não deixou de tomar posição e de defender aquilo que julgava ser a verdade, ainda que essa opção o tenha obrigado, por diversas vezes, ao isolamento e à solidão. No universo intelectual francês do século XX, Camus era um fora de jogo. Nascido na Argélia, em 1913, em uma família muito pobre, ele não iria frequentar as grandes escolas onde eram, e ainda são, formadas as elites francesas, independentemente da sua orientação ideológica. Talvez por isso, Camus jamais teve comprometimento com qualquer ideologia, o que era surpreendente em um período da história marcado por elas.

Logo após o fim da Segunda Guerra, Camus iria gozar de alguma reputação entre a intelectualidade francesa na condição de editor do jornal Le Combat e de autor do romance A peste (1947). Entre Camus e Sartre, haveria alguma aproximação, que logo iria se romper com a publicação da peça Os justos (1950) e do livro O homem revoltado (1951), em que Camus distinguiria claramente a revolta legítima contra a injustiça da revolução, que levaria sempre ao niilismo, ao terror e à repressão. Em uma entrevista falando sobre o livro que acabava de lançar, Camus faria a seguinte declaração:
«Eu não critico o sistema revolucionário em si mesmo, mas o sistema revolucionário triunfante do nosso tempo. A revolução do século XX e a sociedade burguesa atual são para mim apenas as duas faces do mesmo niilismo que temos de superar. Parece-me que meu livro, longe de definir uma posição romântica e idealista, é, ao contrário, um apelo contra o romantismo filosófico e a mistificação, que fazem do materialismo histórico um idealismo vergonhoso. Não creio, entretanto, que a minha causa já esteja perdida. Ela está viva, como vivo é o sofrimento de milhões de homens ligados pela sua infelicidade a essa causa.»
Além de desqualificar a revolução como alternativa libertária para a humanidade, Camus seria ainda um dos primeiros a reconhecer publicamente a existência de campos de concentração na União Soviética, algo que a esquerda, em geral, só admitia ter existido na Alemanha nazi, mas jamais na pátria mãe do socialismo. Toda denúncia contra a União Soviética era então interpretada como maquinação da direita, e uma intensa disputa passou a se travar na imprensa, tendo, de um lado, Camus, na redação de Le Combat, e, de outro, Sartre, no Les Temps Modernes. O desprezo de Sartre por Camus seria compartilhado por muitos outros intelectuais franceses, que se negavam a reconhecê-lo como um dos seus pares.

Não só as origens de Camus o diferenciavam da maioria dos intelectuais da França, como também os seus hábitos e gostos. Camus gostava de lutas de boxe, de jogar futebol e tomar banho de mar no Mediterrâneo, algo absolutamente estranho aos intelectuais da época, que sobrevalorizavam o intelecto e desprezavam o corpo e as atividades físicas. Costumava ainda olhar as mulheres passarem na rua e usava roupas um tanto extravagantes para os padrões da época, contrariamente ao singelo desalinho e circunspeção dos intelectuais franceses. Por tudo isso, Camus era visto como um ser vulgar, um pied noir intruso no seleto grupo literário e intelectual de Paris. Além disso diferenciou-se da maioria dos intelectuais do seu tempo por sua posição em relação à Guerra da Argélia. Por maior que fosse a sua solidariedade com o povo magrebino, Camus sabia que, com a independência da Argélia, para todos aqueles franceses que como ele haviam nascido e vivido na Argélia há gerações, não haveria outra alternativa senão a emigração ou a morte (la valise ou le cercueil). Portanto, Camus não poderia alinhar-se com a maioria dos intelectuais franceses que defendia a independência da Argélia, tampouco poderia negar a justiça do anseio da maior parte dos argelinos por sua independência, já que a dominação francesa na região havia condenado a população berbere a uma miséria vergonhosa. Por isso, ele declararia um dia sem hesitar: “entre a justiça [a independência da Argélia] e minha mãe [uma pied noir], eu fico com minha mãe”.

A Academia de Ciências da Suécia concedeu-lhe o Prémio Nobel da Literatura pelo conjunto de sua obra literária, o que certamente deve ter causado inveja a muitos escritores franceses que se julgavam mais importantes do que ele. 
L’Étranger (1942) / O Estrangeiro, de Albert Camus, contém uma crítica às sociedades fechadas e à repressão da individualidade dissidente das convenções sociais dominantes. Meursault, personagem central do livro, personifica, de alguma forma, o tipo de comportamentos que as sociedades abertas devem tolerar, não reprimir. Devido ao seu estilo de vida, sentia-se (e era visto) como um estrangeiro na sociedade onde vivia, a Argélia colonial francesa da época entre as duas guerras. Meursault habitava nas margens da sociedade e não partilhava de muitas das suas convenções. A dissidência e o sentimento de estrangeiro são simbolizados pelo homem que não chora no funeral da mãe.