segunda-feira, 1 de abril de 2024

Os moderados de 1938. Munique e a questão dos Sudetos

 

Em novembro de 1937, Halifax, líder da Câmara dos Lordes que em breve se tornaria secretário do Exterior, preparava-se para visitar Hitler. Esperava chegar a um acordo com o ditador alemão em relação à Europa Central. Era o primeiro passo numa política de apaziguamento mais ativa, que refletia a iniciativa do novo primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, que substituíra Baldwin em 28 de maio. Em dezembro do ano anterior, o rei Eduardo VIII, mais tarde conhecido como Duque de Windsor, renunciou ao trono em 20 de janeiro de 1936, em favor de seu irmão Jorge VI, para se casar com uma americana divorciada, Wallis Simpson. 



Halifax aquando da visita a Hitler

Ao se avistar com Hitler em 19 de novembro, o próprio Halifax deu a entender que o governo britânico aceitaria uma mudança mediante a “evolução pacífica” da situação da Áustria, da Checoslováquia e de Danzig, embora desejasse evitar “perturbações de maiores consequências”. Isso era tudo o que Hitler queria ouvir. Respondeu que não tinha o menor desejo de anexar a Áustria ou torná-la politicamente dependente da Alemanha. Nos bastidores, porém, continuou a trabalhar com esse objetivo. Halifax registou em seu diário que considerou Hitler “muito sincero” e desejoso de relações amistosas com a Inglaterra. O culto aristocrata britânico estava sem dúvida nenhuma fora de seu habitat natural ao tratar com um líder político cuja solução para os problemas da Inglaterra na Índia era, declaradamente, abrir fogo contra Gandhi e várias centenas de membros do Partido do Congresso Nacional Indiano até a ordem ser restaurada. De volta a Londres, Halifax garantiu aos ministros que Hitler não tinha em mente nenhuma “aventura imediata” e sugeriu dar-lhe de presente algum território colonial para torná-lo mais tratável na Europa.

Duas semanas antes da renúncia de Baldwin, a coroação de um novo rei, Jorge VI, pai da que viria a ser a rainha Isabel II, fora uma momentânea exibição de união patriótica no país, que se recuperava da depressão económica e evitara o extremismo político que tomava conta de grande parte da Europa.



O rei Jorge VI com Churchill

Chamberlain considerou a visita “um êxito completo”. Numa carta privada, escreveu à irmã que, embora os alemães desejassem dominar a Europa Oriental, ele não via motivo para não chegar a um acordo caso a Inglaterra desse garantias de que nada faria para impedir mudanças por via pacífica e a Alemanha rejeitasse o uso da força no trato com a Áustria e a Checoslováquia. O ministro que mais se opunha a essa nova forma, mais ativa, de apaziguamento — a busca de um entendimento com a Alemanha mediante relações bilaterais e a aceitação de mudanças territoriais na Europa Central — era o secretário do Exterior, Anthony Eden, que desde janeiro de 1938 se encontrava doente e convalescia no sul da França. Em sua ausência, a condução das relações exteriores estava nas mãos do próprio Chamberlain. Desgastado e em conflito permanente com o primeiro-ministro, Eden renunciou ao cargo em 20 de fevereiro de 1938. Seu sucessor foi Halifax.

Quando os franceses perguntaram se a Checoslováquia, poderia contar com o apoio da Inglaterra, assim como o da França, caso viesse a ser alvo de agressão, Chamberlain evitou comprometer-se, limitando-se a dizer que a Checoslováquia ficava a “uma distância muito grande” e era um país “com o qual não tínhamos muita coisa em comum”. A Itália estava sendo atraída cada vez mais para o abraço de ferro da Alemanha. Em janeiro de 1938, o Exército italiano recebeu, pela primeira vez, uma diretriz que previa um alinhamento dos dois países contra a Inglaterra e a França. Conscientes da precariedade de seu programa de rearmamento, as Forças Armadas italianas só podiam pedir aos céus que a guerra não viesse logo.

Em Moscovo, Stálin passara grande parte de 1937 demolindo o comando do Exército Vermelho com os expurgos. Para os observadores externos, parecia rematada loucura. Essa era a opinião de Hitler. “Deve ser exterminado”, comentou ele com Joseph Goebbels, seu ministro da Propaganda. Contudo, a União Soviética não estava ainda nos cenários que exibira aos comandantes militares um mês antes. Para os dirigentes soviéticos, era inevitável a guerra com as potências capitalistas, entre as quais eles incluíam a Alemanha e a Itália. Viam o fascismo como a forma mais extrema e agressiva de capitalismo. 
A única dúvida era quanto à data em que ocorreria a guerra. Quanto mais pudesse ser protelada, melhor seria para a União Soviética. Havia um longo caminho a percorrer antes que sua máquina militar estivesse pronta.

Nas capitais dos países da Europa Central e Oriental, em fins de 1937, os governantes locais estavam mais que conscientes de uma drástica alteração do equilíbrio de poder e da limitação de suas próprias opções. Era óbvio que dependiam de iniciativas das grandes potências europeias, que eles não podiam controlar. A ideia de segurança coletiva por meio da Liga das Nações estava morta e enterrada havia muito, como mostrara a invasão da Abissínia. A França, antes fiadora de proteção por meio de sua rede de alianças, estava gravemente debilitada. Suas divisões internas e seus problemas económicos saltavam aos olhos. A Inglaterra, evidentemente, deixou de se interessar pela Europa Central, e a influência política e económica da Alemanha estava preenchendo o vazio deixado. Interesses nacionais, assim como suspeitas ou inimizades mútuas, representavam entraves à cooperação militar. Enquanto isso, o poderio alemão crescia visivelmente, sendo a Europa Central o alvo mais óbvio de quaisquer ações expansionistas. A Áustria, que não tinha mais a proteção da Itália, seria, quase com certeza, o primeiro alvo da Alemanha. Um movimento nesse sentido certamente ocorreria em breve.

Desde julho de 1937, o Japão, cada vez mais beligerante, vinha travando uma guerra feroz contra a China. O mundo assistia, chocado, às atrocidades cometidas, entre as quais, em dezembro, a horrenda chacina, em Nanquim, de civis chineses por enlouquecidas tropas japonesas. Esses factos contribuíam para um declínio paulatino, embora vagaroso, da atitude isolacionista dos Estados Unidos, onde o presidente Roosevelt já havia chamado a atenção, três meses antes, para a necessidade de “pôr em quarentena” as potências agressoras que ameaçavam a paz mundial. Por ora, e para a frustração dos britânicos (cujos interesses no Extremo Oriente seriam ameaçados diretamente por agressões japonesas), os Estados Unidos não esboçavam reação alguma. Ainda assim, o ano de 1937 assistiu ao começo do confronto no Pacífico entre o Japão e os Estados Unidos, que acabaria levando os dois países a um conflito global. E foi também em 1937 que Roosevelt começou a perceber a necessidade de persuadir a opinião pública americana de que qualquer agressão alemã na Europa não deixaria de ter consequências para os Estados Unidos.

Em 4 de fevereiro de 1938, foram anunciadas em Berlim importantes mudanças na cúpula do Reich alemão. O ministro da Guerra, Blomberg, e o comandante supremo do Exército, Fritsch, tinham sido destituídos. O próprio Hitler assumira a chefia do alto-comando reestruturado da Wehrmacht. Por conta disso, sua supremacia tornou-se ainda maior, ao passo que a posição do comando militar ficou muito enfraquecida. O número daqueles que manifestavam temores de ser arrastados a uma guerra contra as potências ocidentais era enormemente inferior ao dos correligionários de Hitler, conquistados pelos gigantescos gastos em rearmamento, pela recuperação do prestígio e pela afirmação da posição internacional da Alemanha. A política externa agressiva, que explorava as fraquezas e as divisões das democracias ocidentais, havia feito com que o líder caísse nas boas graças do povo. As massas lhe conferiram o apoio plebiscitário que incrementava o seu prestígio no país e no exterior. O potencial de resistência organizada fora sufocado havia muito tempo. Somente um golpe militar poderia desafiar de facto o poder de Hitler. E disso ainda não havia sinal.

Hitler tinha agora representantes em posições chave, homens sintonizados com a sua política externa de alto risco. Ribbentrop era conhecido por replicar as ideias de Hitler. Outras mudanças ocorreram nos altos escalões da burocracia e do corpo diplomático. O governo austríaco rendeu-se à intensa pressão de Berlim, tropas alemãs cruzaram a fronteira da Áustria e as leis que incorporariam o país a uma Grande Alemanha foram preparadas. Em 15 de março, diante de uma multidão em êxtase na Heldenplatz, em Viena, Hitler anunciou “a entrada de minha terra natal no Reich Alemão”. Como ele previra, as democracias ocidentais protestaram timidamente, porém nada fizeram. Tampouco a brutal perseguição de judeus austríacos e de adversários políticos dos nazis, que logo se seguiu, provocou alguma reação em Paris ou Londres ou anulou as esperanças de Neville Chamberlain de que talvez fosse possível “para nós, um dia, retomar negociações de paz com os alemães”.

O caso da Checoslováquia era diferente. A posição geográfica lhe conferia uma importância vital. O país tinha uma aliança com a França e outra com a União Soviética. E a França era aliada da Inglaterra. Um ataque à Checoslováquia poderia precipitar uma guerra europeia generalizada. Da perspectiva alemã, os vínculos da Checoslováquia, um país da Europa Central, com o oeste e o leste do continente constituíam um problema estratégico potencialmente sério. Suas matérias-primas e seus armamentos seriam valiosíssimos para os preparativos bélicos da Alemanha. Entretanto, atacar a Checoslováquia era uma aventura de alto risco, que poderia arrastar o país à guerra com as democracias ocidentais — uma guerra que alguns de seus comandantes militares, como o general Ludwig Beck, chefe do Estado-Maior do Exército, tinham a certeza de que o país não poderia vencer.

A Checoslováquia, porém, não podia contar com proteção. Mesmo enquanto a Alemanha engolia a Áustria, o ministro da Defesa francês, Édouard Daladier, avisava a seu governo que a França não poderia oferecer nenhuma ajuda militar direta; da mesma forma, os comandantes militares soviéticos descartavam qualquer possibilidade de o Exército Vermelho socorrer a Checoslováquia. Semanas depois, o governo francês soube que a Inglaterra não daria garantia alguma de empreender ações militares se os alemães atacassem a Checoslováquia. Em meados de 1938, as potências ocidentais tomaram posição. A França, por mais que afirmasse seu apoio à Checoslováquia, não agiria sem a Inglaterra; e a Inglaterra não acenaria com nenhuma perspectiva de intervenção militar. Os checos estavam entregues à própria sorte.


Entrada triunfal de Hitler nos Sudetos

E havia o problema dos Sudetos. Quando Hitler alegou que não desejava nada além de trazer os alemães perseguidos “de volta ao Reich”, foi como se, mais uma vez, ele não passasse de um político nacionalista, embora extremado e absolutamente intransigente, em busca do objetivo limitado de incorporar ao Reich outro bloco étnico alemão. A falta de compreensão das motivações de Hitler era um componente crucial da crescente tragédia da Checoslováquia. A agressividade da Alemanha, a impotência da Checoslováquia e a apatia anglo-francesa desempenharam um papel no drama que estava levando a Europa em direção a outra guerra. Os preparativos para o ataque previam a data de 1 de outubro, no mais tardar. Para consumo público, Hitler aumentou o volume de suas agressões verbais cada vez mais desabridas ao governo checo e afirmou em público que não tinha outras exigências territoriais na Europa além da solução do problema dos Sudetos.

Acreditando que desejava a incorporação dos Sudetos à Alemanha e nada além disso, Neville Chamberlain viajou duas vezes a Berlim, em meados de setembro, para reunir-se com o ditador. Ao retornar de sua primeira viagem, no dia 15, mostrou-se otimista quanto à perspectiva de um acordo próximo: os checos cederiam os Sudetos e Hitler renunciaria ao uso da força. Em conversas reservadas, opinou que o alemão, embora duro e implacável, “era um homem em cuja palavra se podia confiar”. Muito em breve o primeiro-ministro britânico se desiludiria quanto à presunção da boa-fé de Hitler. Em 21 de setembro, com imensa relutância e um profundo sentimento de terem sido traídos, os checos enfim capitularam ao diktat anglo-francês. Para Hitler, contudo, isso não bastou. Em sua segunda reunião com Chamberlain, em 22 de setembro, ele repudiou o que o primeiro-ministro britânico julgara ser um acordo, definido uma semana antes. Agora exigia que os checos aceitassem a ocupação alemã dos Sudetos em 1 de outubro; caso contrário, tomaria a área à força. E ainda declarou ser indiferente às advertências da Inglaterra de que isso poderia levar à guerra com as potências ocidentais.

Hitler tinha ido além dos limites toleráveis por certos membros do gabinete de Chamberlain, entre os quais o secretário do Exterior, Lord Halifax. Em 25 de setembro, eles se opuseram à aceitação do ultimato alemão. Franceses e britânicos concordaram em enviar um emissário a Berlim a fim de advertir Hitler de que, se atacasse a Checoslováquia, haveria guerra. Os franceses começaram a se mobilizar, assim como os soviéticos. Os britânicos prepararam a esquadra. A guerra parecia cada vez mais provável. Fizeram-se tensos esforços para convocar uma conferência que levasse a um acordo. Por fim, Mussolini interveio para intermediar uma conferência entre Alemanha, Itália, Inglaterra e França. A União Soviética, que não contava com a confiança de ninguém, ficou de fora. Com isso, abriu-se o caminho para o desfecho do drama no Acordo de Munique, assinado em 30 de setembro de 1938. Os checos não estiveram representados no encontro das grandes potências, reunidas para dividir o país. As duas democracias ocidentais forçaram outra democracia a se submeter à intimidação de um ditador.

A Inglaterra e a França não teriam obtido melhores resultados lutando em 1938, apesar das advertências dos comandantes militares, do que esperando mais um ano? De facto, só em 1939 os gastos militares dos dois países quase igualaram os da Alemanha, e apenas naquele ano as duas democracias iniciaram um sério planeamento de guerra. Todavia, também a Alemanha se rearmou fortemente em 1939, e ficou muito mais equipada para a guerra do que estivera. Esse estado de coisas foi reforçado pela destruição do poderio militar checo e pela aquisição de novas fontes de matérias-primas e de armamento na antiga Checoslováquia. O desastre de Munique podia ter sido evitado. Winston Churchill, que durante muito tempo se manifestara contra o apaziguamento, mas como uma voz bastante isolada, defendera abertamente, em 1938, uma “grande aliança” com a União Soviética e os países da Europa Oriental para deter Hitler. 

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