segunda-feira, 2 de março de 2020

Será que a vida tem alguma finalidade?


Por mais feliz que seja a nossa vida, a morte é o fim inevitável. Poderá este facto ameaçar o sentido da vida? Para um crente – e quando falo em “crente”, refiro-me a um crente em qualquer religião, sobretudo as religiões monoteístas, que assenta, para este efeito, em duas premissas fundamentais: 1) a existência de Deus; 2) continuarmos numa outra vida para além desta depois de morrermos – a morte não poderá anular o sentido da nossa vida. Na mundividência das três religiões filiadas em Abraão, Deus é responsável pela nossa existência. E planeou-a. Assim, a nossa própria existência faz sentido porque fomos criados com um propósito, ainda que não saibamos exatamente que propósito é esse.

O problema do sentido da vida não é geralmente tratado no âmbito da filosofia da religião; habitualmente é tratado no âmbito da metafísica e da ética, que são dois outros domínios da Filosofia. Por outro lado, filosofia da religião e religião são também coisas diferentes. Assim como é diferente de teologia, ou de história das religiões. E também não se ocupa dos aspetos psicológicos e sociológicos, das dinâmicas sociais das religiões que contribuíram para a coesão social. A filosofia ocupa-se da questão de saber se Deus existe, se a fé se opõe à razão ou se a noção de um ser omnipotente é coerente. Bem como de outros temas tal como o problema do mal; se o mal é compatível com a existência de Deus; ou se os milagres e as experiências místicas constituem provas a favor da existência de Deus.

Galileu Galilei é o personagem simbólico do começo do conflito que se estabeleceu entre fé e ciência, e que ainda se arrasta nos dias de hoje, cujo representante mais radical é Richard Dawkins, no confronto entre o que é “objetivo” na ciência e o que é “irracional” na teologia. Mas o que é curioso, até porque parece contraditório, é a ciência a reivindicar ser falível, e crescer pela tentativa e erro, o que lhe confere mais credibilidade do que a fé, que é peremptória exclusivamente dogmática. A religião que é irracional, desafia a ciência empírica que é racional, apoiando-se principalmente na emoção.

O problema da criação e do seu início é uma questão que tem ocupado os filósofos desde os primórdios da filosofia. Para Aristóteles, nem o tempo nem a matéria podiam ter um princípio. Para Tomás de Aquino, tal não podia ser objeto de demonstração filosófica. Mas também rejeitou a posição da Igreja do seu tempo, que definia como matéria de fé o começo do universo no tempo.

Foi a partir da teoria do big bang que nasceu o chamado princípio antrópico: o universo terá sido desenhado de modo a permitir a emergência de uma vida inteligente. A cosmologia do big bang marca o começo no tempo, que teria ocorrido entre há 13,3 e 13,9 mil milhões de anos. Apesar dos grandes avanços, a ciência não explica o que aconteceu antes do "grande acontecimento", que se desfez numa fração infinitesimal do segundo – 0,43 zeros 1. Muitos teólogos defendem a tese de um Criador. E alguns veem o homem como um co-criador, o que não o impede de melhorar a natureza presente, num aperfeiçoamento do processo criativo.

Tolstoi, na Confissão (1882), chega à conclusão que não consegue atribuir qualquer sentido racional a um único ato seu em toda a sua vida. E o que o surpreendia era não o ter compreendido antes. Nas suas palavras:
“A doença e a morte não tardaria estariam aí, e nada restaria exceto podridão e vermes. Porquê então fazer seja o que for? […] Assim, em complemento ao conhecimento racional, que antes me parecera ser o único, fui inevitavelmente levado a reconhecer um tipo diferente de conhecimento, um tipo irracional, que toda a humanidade tinha: a fé, que nos dá a possibilidade de viver. Quanto a mim, a fé continua a ser tão irracional quanto antes, mas não podia deixar de reconhecer que só ela dava à humanidade uma resposta à questão da vida, tornando assim possível viver. O conhecimento racional conduziu-me à conclusão de que a vida não tinha sentido; a minha vida parou, e eu queria acabar comigo. Ao olhar para as outras pessoas vi que viviam e convenci-me de que conheciam o sentido da vida. Voltei-me então e olhei para mim mesmo; desde que conhecesse o sentido da vida, viveria. Tal como acontecia com os outros, assim era comigo; a fé dava-me o sentido da vida e a possibilidade de viver.” 
Não depreciamos os animais que não domesticamos, quando dizemos que não têm qualquer propósito. Ao passo que uma vaca, um cavalo, ou uma galinha têm um propósito. Contudo, o homem pertence a uma categoria completamente diferente. Atribuir a um ser humano um propósito, tal como atribuímos a um cão perdigueiro que nos serve para caçar perdizes, é no mínimo ofensivo. É degradante para um ser humano ser encarado meramente como algo que serve um propósito. O propósito de um dono de uma fábrica de sapatos contratar operários para a fábrica, é fazer sapatos, com o propósito de os vender, com o propósito de ganhar dinheiro, e por aí adiante. Quem se dedicasse a montar uma fábrica sem qualquer propósito estaria demente. Neste caso poderíamos dizer, na verdade, que se tratava de uma vida sem sentido.

A mundividência cristã, difere realmente do que acabei de enunciar, porque encara o ser humano como uma criatura feita no laboratório divino, com um propósito que lhe foi atribuído pelo Criador: Deus. E daí a mesma questão colocada de pernas para o ar: se o ser humano não tivesse um propósito então é que não teria qualquer sentido. Portanto, a mundividência cristã resolve todos estes problemas com a existência de Deus. Mas será que Deus existe? O que está em causa é saber se há bons argumentos a favor da existência de Deus. Das diferentes conceções de Deus, é sobre a conceção teísta de Deus que a filosofia se tem ocupado. O Deus teísta é o Criador, sumamente bom, omnipotente e omnisciente. E ainda que não tenha de ser humano, Deus não é uma força impessoal. Santo Anselmo (1033-1109), no Proslogion (1077-78) apresenta o que ficou conhecido por argumento ontológico. Deus é algo maior do que o qual nada pode ser pensado. Aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado existe tanto no espírito como na realidade.

Por mais que recuemos para estados anteriores do mundo, nunca se encontra nesses estados uma razão completa para a questão de saber por que há mundo em vez de nada. Nem por que razão o mundo é como é. Leibniz, que foi não apenas filósofo, mas também cientista, foi o que mais longe conseguiu ir acerca desta questão. Leibniz formulou o chamado princípio da razão suficiente, segundo o qual para toda a verdade contingente há uma razão para a sua existência. Mesmo que admitamos que o mundo é eterno, existirá apenas uma sucessão de estados e em nenhum deles encontraremos uma razão suficiente. É evidente que tem de se procurar a razão noutro lado. Pois nas coisas que são eternas, ainda que não exista causa, alguma razão tem de se discernir. Mesmo ao supor que o mundo é eterno não podemos escapar à razão última, que para a ciência atual é o que está para lá do big bang. Leibniz chegou à seguinte conclusão: as razões do mundo estão em algo para lá do mundo, diferente da cadeia de estados, ou série de coisas, cujo agregado é o mundo. E consentiu que a esse algo para lá do mundo se chamasse Deus.

Deus como um postulado da razão, é o argumento de Kant, em que Deus é um postulado prático da moralidade. O bem supremo do mundo só é possível na medida em que se pressuponha uma causa suprema da natureza que tenha uma causalidade em harmonia com a disposição moral. Ora, um ser capaz de ações de acordo com a representação de leis tem de ser inteligente. E a causalidade de tal ser, de acordo com esta representação de leis, é a sua vontade. Logo, a causa suprema da natureza, na medida em que tem de ser pressuposta para o bem supremo, é um ser que é a causa da natureza pelo entendimento e vontade. Isto é: Deus. Assim, é moralmente necessário pressupor a existência de Deus.

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