terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Interpretação e hermenêutica


A hermenêutica nasceu como esforço no campo das disciplinas ditas humanísticas no sentido de melhor se descrever o modo como podíamos interpretar uma obra de arte, atendendo à sua especificidade histórica e humanística. Estava-se num tempo, o tempo do positivismo, em que as ciências ditas da natureza começavam a intrometer-se também com  a sua metodologia no campo das ciências sociais e humanas. Ao contrário do que se passa de um modo geral nas artes, as ciências da natureza, com a sua linguagem simbólica evoluída, têm como alvo os objetos silenciosos e naturais. Uma obra literária não é um objeto que compreendemos através da conceptualização ou da análise. É uma voz que devemos ouvir. É um fenómeno de compreensão. E a compreensão é simultaneamente epistemológica e ontológica. A compreensão literária - nos termos do vocabulário de Heidegger - tem a ver com o nosso próprio ser-no-mundo. A acentuação do contraste entre uma compreensão científica, e aquilo a que chamamos uma compreensão histórica e hermenêutica, torna mais claro o caráter distinto da tarefa interpretativa nas humanidades.


Assim, compreender uma obra literária não é uma espécie de conhecimento científico que foge da existência para um mundo de conceitos. É um encontro histórico que apela para a experiência pessoal. E a experiência pessoal passa primeiro por estar no mundo. A hermenêutica é o estudo deste último tipo de conhecimento. Enquanto corrente de pensamento alemão, a hermenêutica acabou por ser profundamente influenciada pela fenomenologia alemã e pelo existencialismo francês. A hermenêutica, enquanto se define como estudo da compreensão das obras humanas, transcende as formas linguísticas de interpretação. Os seus princípios aplicam-se não apenas à literatura, mas também a quaisquer obras de arte. Ao fim e ao cabo, pode dizer-se, que a hermenêutica se aplica ao estudo de todas as disciplinas humanísticas.

A partir da década de 1960, e que se prolongou até ao fim da década de 1980, a hermenêutica colocou-se, sobretudo na Alemanha e na França, no centro de um campo, à volta do qual circulavam três disciplinas humanísticas: a teologia; a filosofia; e interpretação literária. Portanto, a hermenêutica é um desenvolvimento que surgiu sobretudo no seio da tradição do pensamento alemão, que se estendeu à França, mas que não vingou nos círculos de língua inglesa, tanto no Reino Unido como na América, se excluirmos o epifenómeno dos anos 60 centrado em Berkeley.

Na teoria hermenêutica alemã, podemos encontrar as bases filosóficas para o conhecimento radicalmente mais amplo dos problemas da interpretação e da compreensão, que têm a ver com o movimento da Fenomenologia iniciado por Husserl. Outros nomes que lhe sucederam deixo aqui os de maior envergadura: Dilthey, Heidegger, Hans-George Gadamer. Efetivamente, no âmbito da hermenêutica contemporânea da linguagem, avultam os escritos de Hans-Georg Gadamer. Embora os estudos de Heidegger tenham sido a pedra basilar de uma nova conceção filosófica contemporânea, os estudos de Gadamer foram importantes no que diz respeito à noção de interpretação e de compreensão. É a partir do próprio horizonte de interpretação que o homem constrói o seu conhecimento. Esta forma ontológica, patente na hermenêutica de Gadamer, permite-nos ver a relevância da experiência construtiva do homem para o qual todo o conhecimento é uma constante interpretação e, sobretudo, um conhecimento de si mesmo.

A fenomenologia é uma orientação do pensamento europeu que submeteu as conceções realistas da perceção e da interpretação a uma crítica radical. E isto é importante perceber, se lembrarmos que a Fenomenologia pôs em causa os fundamentos em que assentava o nosso paradigma científico. Um estudo da fenomenologia torna especialmente visível a semelhança essencial entre o realismo e a perspetiva científica. A ciência não se podia eximir ao pensamento crítico. O pensamento crítico, para aconselhar a ciência a fazer a sua própria crítica, no sentido kantiano, tinha obviamente de se posicionar do lado de fora, e não de dentro de si própria. Porque o que tinha ocorrido com o positivismo lógico, foi precisamente um caminho no sentido contrário: inclusivamente a crítica literária subordinar-se a critérios da ciência dura, ou seja, cada vez mais tecnológica.

A hermenêutica implica dois polos de atenção diferentes, mas que interatuam entre si: a compreensão do texto; e a questão mais abrangente que tem a ver com a compreensão e a interpretação. É de realçar que a palavra “interpretação” pode entrar em proposições cujo conceito varia conforme quem a utiliza, ou o contexto em que é aplicada. Por exemplo, o cientista chama “interpretação” à análise que faz dos dados; o crítico literário chama “interpretação” à análise que faz de uma obra; o tradutor de uma língua estrangeira é o intérprete; um intérprete das notícias é um comentador jornalístico. Se quisermos ser rigorosos podemos dizer que estamos sempre a interpretar, o dia todo. A interpretação é talvez o ato essencial do pensamento humano. Como não faz sentido falar em pensamento humano sem a nossa linguagem, assim, qualquer teoria sobre interpretação humana tem que lidar com o fenómeno da linguagem. A linguagem molda a visão que o homem tem do mundo, ou da realidade, e o seu comportamento no qual está incluído o pensamento em simultâneo com a conceção que tem de si próprio e do seu mundo interior. 


Vivendo-se no positivismo, com uma conceção de compreensão alicerçada num esquema de sujeito-objeto, Heidegger com o seu tratado "Ser e Tempo", rasgou esse paradigma com o seu caráter ontológico. Heidegger envereda por uma abordagem que é eminentemente fenomenológica, para chegar ao "ser-aí", um estar-no-mundo que é em si mesmo compreensão. Assim, compreensão é o meio pelo qual o mundo se coloca com o homem fazendo parte dele, e não independente dele. A compreensão é o meio de revelação ontológica. Portanto, a compreensão não é uma apetência humana, assim como é a consciência humana, mas sim o meio no qual existimos. Não pode ser objetificada. A compreensão é o meio onde se dá a objetificação. Um ser humano não pode avaliar a compreensão colocando-se fora dela, porque precisa dela. Ou melhor, porque é ela. A compreensão é sempre a posição a partir da qual vemos tudo aquilo que vemos. Não existe um "não-lugar" onde possamos cair, para a partir daí vermos as coisas de uma forma mais clara e distinta, ou seja, clarividente. 

Na tradição da ciência ocidental, a objetividade é um meio essencial através do qual obtemos conhecimento preciso e claro, isto é, não influenciado por preconceitos subjetivos. É a luz natural da razão que verifica por meio da experiência como as coisas são, como o mundo é: a realidade. É a verdade validada pelas operações reflexivas da mente. Operações essas mecanizadas através de conceitos. Assim, o fundamento da objetividade não está na subjetividade daquele que fala, mas sim na realidade que se exprime na e pela linguagem. 

A pobreza que é considerarmos a compreensão em termos de conhecimento conceptual torna-se sobretudo evidente na interpretação literária. Compreender uma obra é experienciá-la. E a experiência vivenciada não é um subproduto da relação sujeito-objeto. Nem é uma abstração fora do espaço e do tempo, ou seja, fora da História. A experiência vivenciada, como a expressão em si já sugere, é algo que acontece a alguém de uma forma única e irrepetível, como se costuma dizer: "um aqui e agora" possuidor de vida e de história. para compreendermos alguma coisa em primeiro lugar temos de ter a experiência. O conceito vem depois. De fora, de uma perspetiva na terceira pessoa, "um aqui e agora" só pode ser avaliado numa dinâmica que se desenrola de um passado, passando pelo presente, a caminho de um futuro. Só a experiência nos ensina como podemos esperar o inesperado, como podemos nos abrir ao futuro, em suma, como atingir o estado de sábio de que os antigos nos dão conta.

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