segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Os fóbicos sociais



Não podemos ignorar o papel que as palavras desempenham como efeito contagiante na produção daquilo que é tratado pelo nome de ‘fobia social’. A recente ascensão da extrema-direita fornece a última confirmação da surpreendente facilidade com que um significante flutuante, juntamente com as emoções que evoca, pode ser usado numa “verbalização” que leva a uma polarização ao ser reatribuído ao significado escolhido por conveniência política – ainda que nem material nem logicamente esse significado se relacione aos objetos originais responsáveis pela emergência das emoções em questão.

Isto começa pelo termo da novilíngua “Woke”, um termo político de origem afro-americana que se refere a uma perceção e consciência das questões relativas à justiça social e racial. O termo deriva da expressão do inglês vernáculo afro-americano "stay woke", cujo aspeto gramatical se refere a uma consciência contínua dessas questões. Qualquer utilização "não autorizada" de aspetos culturais não herdados - não vividos pessoalmente ou por antepassados - é fóbico, é ofensivo, suscita melindre e é base de cancelamento.

Ora, estamos a falar de uma onda que emergindo da extrema-esquerda provocou indiretamente, como efeito boomerang, a ascensão da extrema-direita. Esta ascensão, diga-se em abono da verdade, já havia começado anteriormente numa primeira onda devido ao impacto da globalização na sociedade. Muitos homens, sobretudo norte-americanos, foram atraídos pela extrema-direita porque perderam os seus empregos bem-remunerados e sindicalizados, com plano de saúde e reforma, e agora trabalham em empregos de nível inferior. Por sua vez, as suas mulheres foram obrigadas a trabalhar, às vezes ganhando mais dinheiro do que eles. Todas as suas opiniões sobre o sentido da vida estão desmoronando diante dos seus olhos. E rapidamente mudanças estruturais da economia evoluíram por uma deriva das guerras culturais com o feminismo e os surtos identitários misturados com novas causas a nascer todos os dias. Uma guerra que envolve feministas, gays, lésbicas e toda uma parafernália com o rótulo LGBT+.

Uma vez estabelecido no imaginário público, um significante pode ser destacado de seu significado, posto a flutuar e ser religado metafórica ou metonimicamente a um número indefinido de significados. Há um significante particular que tem pergaminhos bíblicos e que é nada mais nada menos que “sexo”, uma criatura estranhamente poderosa ao nível do combustível do motor social. Em parte, devido à sua ambivalência encarnada, que enche a vida até à borda do êxtase existencial. O mito etiológico do pecado original de Adão e Eva, mas ao mesmo tempo um estimulante extremamente poderoso. Em outras palavras, dota a vida de uma enorme importância. Esse extraordinário poder sedutor que tende a ser manipulado com entusiasmo para todo o tipo de propósitos, desde os perfumes à venda de carros. Sendo que a proibição de pronunciar os verdadeiros nomes vernáculos da gíria sexual ainda acorda com mais vigor o cão adormecido.

É por isso que a manipulação pode gerar enormes lucros com poucos riscos – ou nenhum. A propaganda conta com uma clientela agradecida entre os milhões que tentam desesperadamente evitar que os seus olhos contemplem o corpo de Vénus. A manipulação em si é, de uma forma ou de outra, aparentemente inescapável. Todas as culturas podem ser vistas como dispositivos engenhosos destinados a mascarar e/ou adornar esse corpo e assim torná-lo “contemplável” e “tolerável” – mas nem a política nem a economia se mostram lentas em identificar e agarrar as oportunidades. É difícil resistir à tentação quando a manipulação chega de modo relativamente fácil a todos que estejam ávidos por experimentá-la.

Os propagandistas farisaicos dos fetiches podem contar com o apoio leal dos seres humanos que ficam parados sem fazer nada quando confrontados por uma ameaça. É uma tendência de não fazer nada em vez de alguma coisa a despeito de quão desprezíveis possam ser os efeitos de fazer determinada coisa. Daí que estas coisas se tornem mais nebulosas e obscuras em vez de mais claras e cristalinas. Socorrendo-me mais uma vez de Freud, somos ameaçados de sofrimento ao nível do nosso próprio corpo, que está destinado à degradação e à decomposição e que nem mesmo pode passar sem a dor e a ansiedade como sinais de advertência. E da nossa inter-relação, assola-nos com forças imensamente destrutivas e impiedosas. O sofrimento proveniente desta última fonte talvez seja o mais doloroso que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como um tipo de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos decisivamente inevitável do que o sofrimento oriundo do próprio corpo.

As ameaças vêm de todos os lados marchando para o mesmo destino: dor e sofrimento dos corpos mortais. Daí certas experiências consideradas muito aflitivas, como a da primeira noite, 
como ensaio para a noite de estreia a que chamamos núpcias. Ou seja, na noite de núpcias, na Idade Média, a primazia era dada obrigatoriamente ao veredicto do senhor feudal. Ora, isto era por si mesmo ainda mais aflitivo pelo sofrimento e a angústia que provocava. 


Muitas batalhas serão vencidas na guerra perpétua contra o medo – e, no entanto, a guerra em si pode parecer tudo, menos possível de ser vencida.

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