quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

A geopolítica da Rússia - do Afeganistão à Chechénia



A União Soviética invadiu o Afeganistão em 1979 e por lá esteve dez anos numa guerra contra os Mujahidin. Este facto terá sido um dos fatores que mais contribuíram para o enfraquecimento da URSS. Em 1987, após uma longa ocupação desgastante, Gorbachev, o novo líder, engajado no projeto de modernizar e humanizar o comunismo decidiu reduzir os prejuízos: a URSS começou então sua humilhante retirada do Afeganistão, que seria completada dois anos depois. Como resultado, o regime comunista de Muhammad Najibullah não pôde aguentar-se por muito mais tempo: em 1992, Cabul foi conquistada pelos Mujahidin - islamistas que entraram imediatamente numa luta interna.

Seguiu-se uma cruel guerra civil, cujo poder gradualmente caiu a favor da facção islamista mais radical, Talibã (refugiados afegãos, educados em assuntos religiosos nas madrassas fundamentalistas do Paquistão). Estes conquistaram Cabul em 1996 e estabeleceram um regime islamista extremista, baseado na interpretação rigorosa da sharia. Os Talibã se destacavam – entre outras características chocantes aos olhos ocidentais – por sua brutal repressão às mulheres, excluídas da vida social, obrigadas a abandonar quaisquer trabalhos fora de casa, proibidas de ir à escola, forçadas a sair vestidas em burcas cobrindo todo o corpo e o rosto.

Homens foram obrigados a deixar crescer a barba. Música, e outros entretenimentos foram proibidos. Uma polícia islâmica cuidava da observância das múltiplas regras, e transgressões eram severamente punidas: mutilações e execuções públicas no estádio de Cabul escandalizaram o mundo. Mas ninguém interveio. O regime do mulla Muhammad Omar e sua shura de líderes de mujahidin isolaram o país do resto do mundo, inclusive do mundo muçulmano. O novo Afeganistão foi reconhecido por apenas três países: os Emirados Árabes Unidos; o Paquistão, que o considerava como útil contrapeso geopolítico em seu conflito com a Índia; e a Arábia Saudita. Os EUA, que haviam facilitado a guerrilha fundamentalista, inicialmente não se opuseram ao regime – particularmente porque este reprimiu o cultivo do ópio, um de seus principais produtos de contrabando.

No entanto, a guerra civil continuou com nítida feição étnica. O Afeganistão é um país etnicamente diversificado que deveu sua independência a períodos de fraqueza interna dos vizinhos: Pérsia (Irão) e Índia pré-colonial. No século XIX, foi objeto de intrigas coloniais entre potências opostas: Grã-Bretanha e Rússia; após a Segunda Guerra, a competição geopolítica continuou, desta vez entre a URSS e os EUA no contexto da Guerra Fria. Após o fim da Guerra Fria, porém, com a Rússia enfraquecida e os EUA engajados em outros pontos, poucos ainda se interessavam por uma interminável e (aparentemente) incompreensível guerra civil. Milhões de afegãos constituíram o maior problema de refugiados no mundo – a maioria sobrevivendo miseravelmente no Paquistão, onde eles se tornaram alvo fácil para recrutamento tanto de máfias criminosas como de grupos fundamentalistas para atentados terroristas.

O regime Talibã era amplamente associado ao grupo étnico maioritário, os pashtus sunitas, e visou tanto a minoria xiita como as etnias não aparentadas que se concentravam no norte do país – usbeques, turcomanos e outros. Em 1998, os Talibã conquistaram Mazar-i Sharif, a última cidade significativa ainda não capturada – aproximadamente 90% do território afegão estava então sob seu controlo. Tentativas internacionais para mediar o cessar-fogo não deram resultado. No centro, os sunitas perpetraram um massacre de xiitas da etnia hazara. Uma seca adicionou a fome às outras misérias do país, considerado pelo The Economist como “o pior lugar do planeta”.

Para protestar contra a crítica internacional e a ajuda humanitária tardia, os Talibã destruíram em 2001 duas grandes estátuas budistas, símbolos da idolatria dos séculos II-VII, que em tempos mais felizes simbolizaram a riqueza do património cultural afegão. As relações com os EUA já se tinham deteriorado: o regime fundamentalista abrigou o líder islamista Osama bin Laden, acusado de matar trezentos civis em ataques terroristas contra as embaixadas dos EUA no Quénia e na Tanzânia em 1998, e se recusou a entregá-lo.

A questão do Afeganistão foi só uma parte das preocupações do regime comunista da União Soviética com populações muçulmanas. Apesar de tentativas, às vezes violentas, o stalinismo nunca conseguira a secularização destas, e as décadas de 70 e 80 presenciaram, ao contrário, o renascimento de nacionalismos desagregadores do sistema vigente que (entre outros caminhos) adotaram bandeiras religiosas para expressar suas reivindicações. Em 1991, o desmantelamento da URSS conduziu à independência das seis Repúblicas Socialistas Soviéticas maioritariamente muçulmanas: o Azerbaijão no Cáucaso e, na Ásia central, o Cazaquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Quirguistão e Tajiquistão.

São todos Estados fracos, sem tradições democráticas, com identidades nacionais complicadas pela ampla presença de minorias – entre elas, inúmeros descendentes de russos e outros grupos europeus enviados para colonizar os territórios durante o tempo de Estaline. A presença de enormes reservas energéticas torna-os objetos de cobiça internacional. Na maioria destes novos Estados, a tradição histórica túrcica é predominante. Sua islamização aconteceu sob influência de irmandades sufis, e o islão teve participação na resistência, tanto contra a ocupação russa no século XIX como contra os comunistas no século XX.

Em todos esses Estados atuam grupos fundamentalistas sunitas, de força e extremismo variáveis. Uma guerra civil eclodiu imediatamente após a independência no Tajiquistão, o único desses países com maioria de cultura persa, entre a elite comunista zelosa de seu poder e uma oposição islamista apoiada por correligionários no Afeganistão. Com apoio russo, o governo central conseguiu restabelecer sua primazia, mas a guerra civil custou cerca de vinte mil vidas e a situação nunca foi estabilizada.

A fragmentação da URSS ainda deixou um número considerável de muçulmanos dentro do maior Estado sucessor, a Federação Russa. Esses 10% de muçulmanos pertencem a populações muito diversas, com grau variável de autonomia e de integração na população russa, como os bachquires e os tártaros (estes últimos descendentes de grupos mongóis islamizados, que nos séculos XIII a XIV governaram a Crimeia.

As lutas travadas por esses povos muçulmanos misturam, portanto, fatores religiosos e étnicos. A maior heterogeneidade se encontra no Cáucaso e na região ao norte dele. É ali que a Chechénia, sunita, proclamou em 1991 a sua independência da Rússia – facto não reconhecido por Moscovo, onde se temia, numa conjuntura que lembrava a posição da Índia na questão da Caxemira, que um aval à secessão constituísse um perigoso precedente. A primeira tentativa de retomar a República rebelde falhou: após dois anos de guerra, com quase cem mil mortos, uma frágil autonomia foi concedida.

Em 1999, porém, chechenos wahhabitas invadiram o vizinho Daguestão, onde proclamaram o Estado islâmico. Vladimir Putin, o então primeiro-ministro de Boris Ieltsin, usou da questão chechena para se perfilar como candidato nacionalista. A tentativa islamista no Daguestão foi reprimida; pouco depois atentados terroristas em Moscovo mataram centenas de pessoas. O governo russo culpou os separatistas chechenos e Putin lançou uma segunda guerra contra a Chechénia. No inverno de 1999-2000, a Rússia ocupou a capital Grozny e conseguiu destituir a independência do país – mais uma vez, com alto custo humano. Garantiu, com isto, a eleição de Putin como presidente. Em seguida, a ocupação russa incentivou os chechenos a intensificar sua guerrilha e a usar as armas do terror. O ato mais audacioso ocorreu em novembro de 2002, quando rebeldes chechenos sequestraram setecentas pessoas num teatro em Moscovo. Sua libertação pelo exército russo custou mais de cem vidas. 

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