quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Os que passaram os últimos dias de vida a cavar trincheiras



Ivan Kuznetsov e seus camaradas, para não mencionar seus oficiais, tinham ficado completamente desnorteados com as marchas e contramarchas na zona fronteiriça. No fim de agosto, recuaram para um lugar onde um grande contingente de conscritos civis cavava trincheiras. As tropas ocuparam-nas durante a noite e, quando amanheceu, receberam ordem para abandoná-las e recuar. Mas, já chegando a uma cidadezinha, um coronel os alcançou a galope para dizer, aos gritos, que tinham de voltar para as trincheiras.

Nos primeiros dias da Primeira Guerra Mundial o caos entre os Habsburgos instalou-se. Colunas de peças de artilharia puxadas por cavalos seguiram adiante da infantaria. Ordens e contraordens fizeram unidades marcharem em círculos. Em dramático contraste com as "frentes" quase contínuas da França, nos vastos espaços do leste havia unidades a extraviarem-se, às vezes durante dias; o paradeiro do inimigo tornava-se tema de especulação. A noite costumava chegar sem que as rações alcançassem as tropas fatigadas. O oficial de estado-maior Theodor Ritter Zeynek lamentava os kinderkrankheiten — “problemas de iniciantes” — na cavalaria, que custaram severas perdas: imprudentes faziam travessuras na frente do inimigo com o mesmo descuido que seus avós demonstraram no século XIX. Havia poucas aeronaves disponíveis de ambos os lados, e a falta de reconhecimento aéreo levou a outra série de choques aleatórios que custaram aos exércitos de Ivanov a perda de uma centena de canhões e de vinte mil soldados capturados.

Ludwig Wittgenstein era um dos tripulantes do barco de piquete austríaco Goplana, no Vístula, que abandonaram o barco diante do impetuoso avanço do inimigo. “Os russos estão nos nossos calcanhares”, escreveu ele em seu diário. “Estou sem dormir há trinta horas.” No dia seguinte, a tripulação voltou a ocupar o barco, mas apenas para recuar até Cracóvia pelo rio Dunajec. Atrás de Przemyśl, a disciplina e o moral austríacos melhoraram um pouco, enquanto as tropas de Conrad recuavam para seu próprio território, depois de romper contacto com o inimigo. Constantin Schneider notou: «O comportamento dos soldados melhora a cada dia. Carregam suas armas nos ombros, de acordo com as ordens, e não as arrastam pelo chão nem as levam como desportistas. A procura de coisas para saquear à beira da estrada parou, e nem mesmo os cavalos são arrebanhados de qualquer maneira.»

Ludwig Wittgenstein era judeu, e só viria a conhecer a realidade mais tarde, com o obsessivo encarniçamento de Hitler contra os judeus. As coisas vinham piorando para os judeus desde o fim do século XIX, e atingiram o clímax no fim da Segunda Guerra Mundial com o Holocausto. Algo de medonho se passou entre a Europa Oriental e a Europa Central. No território dos Habsburgos, um decreto do exército austríaco, digno do Terceiro Reich, proclamava que só a crueldade e a brutalidade extremas sufocariam potenciais atividades dissidentes entre os moradores. Havia uma crença generalizada de que os rutenos eram simpatizantes dos russos. Um grupo de detidos pela polícia do exército, enquanto era conduzido pelas ruas da cidade, foi atacado por uma turba aos berros de “forca para os traidores!”. Algumas tropas húngaras territoriais, ao ouvirem o clamor, tomaram os detidos na Bocianstrasse e liquidaram-nos, menos quatro, a golpes de sabre.

Soldados de todas as companhias e de todos os pelotões se misturaram. Oficiais chamavam aos berros por seus soldados. Voltaram, na maior desordem, para as trincheiras, mais uma turba do que um regimento. Centenas de soldados russos correram de um lado para outro, à procura de suas companhias, quase sempre em vão. Uma granada explodiu ao lado de Kuznetsov, deixando-o inconsciente. Ao acordar, ele percebeu que fazia um grande silêncio. Estava prisioneiro dos polacos. Posto numa carroça e levado para a retaguarda, Kuznetsov viu mortos e feridos espalhados por toda parte.

Poucos quilómetros atrás da linha da frente, a cidade de Lublin vivia um clima de excitação febril. Multidões se reuniam em frente à catedral para examinar peças de artilharia capturadas dos austríacos, com suas placas protetoras — numa delas a inscrição Ultima Ratio Regis, noutra Pro Gloria Patriae — crivadas de balas. Um jovem artilheiro russo mostrava com orgulho a civis ignorantes como era o seu trabalho, dando ordens imaginárias, carregando projéteis de faz de conta, puxando os cordéis de disparo e gritando “Fogo!”. Nuvens de poeira erguidas por milhares de botas flutuavam sobre as ruas. Na estação ferroviária, soldados deitavam-se curvados em grupos, dormindo com as espingardas ao lado e os bonés puxados sobre os olhos. “Mesmo às duas ou três da manhã”, escreveu uma testemunha, “a cidade é incapaz de sossegar; as ruas fervilham de uma gente excitada e ansiosa depois da vitória”. Ela viu uma multidão de prisioneiros austríacos escoltada pelas ruas, a maioria fitando os pés, sem olhar em volta, para evitar contacto visual com os moradores.

A população deixava a cidade em longas colunas. Em carroças, a pé, a cavalo. Todo mundo fazendo o possível para se salvar. Todo mundo carregando o que podia, o cansaço, a poeira, o suor e o pânico estampados em cada rosto, um abatimento, uma dor e um sofrimento terríveis. Os olhos estão assustados, os movimentos, medrosos: um terror medonho oprime-os a todos. Como se a nuvem de pó que levantaram ficasse presa a eles e pudesse carregá-los pelo ar. Há até carretas militares, enquanto, pelos campos, marcham a infantaria derrotada, a cavalaria perdida. Nenhum soldado carrega mais o seu equipamento completo. A horda exausta escorre pelo vale. 

A queda de Lemberg, a quarta maior cidade do império dos Habsburgos, foi uma grave humilhação, e os problemas austríacos persistiriam pelos próximos dias: perderam-se muitos canhões, inclusive alguns que simplesmente foram abandonados pelas guarnições para acelerar a fuga. A única rota de fuga dos austríacos ficava ao sul, e eles a tomaram. Os austríacos se levantaram de um salto e correram para a frente, atravessando terreno aberto sob barragem de artilharia, Rathenitz atrás deles lutando para conter sua exaltação.
 O próprio Rathenitz mal tinha começado a arranhar o chão quando sentiu um golpe no pé direito, seguido de uma dor aguda no alto da perna. Sabia que tinha sido atingido. Teve de ficar deitado a céu aberto pelas quinze horas seguintes, até escurecer, porque nenhum padioleiro teria coragem de enfrentar as saraivadas de balas que assolavam a área. Foi consolado pela companhia de um soldado que o ajudou a cavar uma trincheira. 

Os russos avançavam implacáveis, ameaçando os austríacos com um desastre absoluto. Conrad fez um apelo aos alemães para que o ajudassem. O kaiser, com suas forças no meio da crise da retirada do Marne, respondeu que nada poderia fazer naquele momento. Os êxitos russos deviam-se muito mais aos erros crassos austríacos do que à sua habilidade de comandante ou valentia, mas a humilhação de Conrad era incontestável. Os súbditos do czar nas áreas da fronteira da Galícia ficaram eufóricos quando os invasores foram rechaçados. Stanislav Kunitsky, proprietário de terras, tinha mandado os filhos para Lublin quando os austríacos invadiram a sua propriedade e passou 36 horas escondido na adega do solar com a mulher, enquanto a batalha continuava lá fora. Libertado — por enquanto — pelos cossacos, ele convidou os oficiais para um banquete em que se destacaram “uma fabulosa sopa de repolho” e uma carpa gigante do seu tanque. Enquanto o jardim de Kunitsky continuava a ser perfurado por crateras de granadas, a mesa era enfeitada com ásteres de outono.

O adido militar britânico Alfred Knox, que acompanhava o avanço russo, assistiu certa noite ao interrogatório de alguns prisioneiros de guerra austríacos. Ficou fascinado com o insistente apego do captor às regras da fidalguia: “Foi uma cena inesquecível, a sala apinhada de oficiais, uma única vela bruxuleante, e os prisioneiros. Só sargentos e alguns soldados são interrogados (...) segundo a teoria russa, o oficial é um homem de honra e não deve ser insultado com pressões para dar informações prejudiciais ao seu país.” 
Havia um nítido contraste entre a condição de oficial e a condição de soldado nas fileiras austríacas. 

Sob a pressão de derrotas, o exército incongruente e multiétnico de Conrad ficou ainda mais fragmentado. Unidades recrutadas no leste se mostraram especialmente pouco confiáveis. O 19º Landsturm de Infantaria, por exemplo, era composto dos chamados rutenos, em sua maioria ucranianos. O regimento desmoronou numa das batalhas de agosto, com soldados desenvencilhando-se de armas e equipamentos durante a fuga. Em setembro, o que sobrou do regimento foi expulso da guarnição de Przemyśl, tido como desleal demais para defender um setor.

No conflito de 1914-1918, e ainda no de 1941-1945, era motivo de desânimo e frustração para os aliados ocidentais o fato de os russos serem obsessivamente reservados sobre suas operações, e em especial sobre as derrotas. Na Grã-Bretanha, o New Statesman reconheceu em 17 de outubro o manto de mistério que envolvia os acontecimentos no leste, pelo menos no que dizia respeito ao mundo exterior. Admitiu que a batalha que se desenrola no momento pode durar muito tempo, talvez semanas. No lado dos Habsburgos, Conrad confessou com frieza a seu estado-maior que, se o arquiduque Franz Ferdinand ainda estivesse vivo, mandaria pegar e fuzilar o arquiteto daquele estarrecedor desastre militar — ele mesmo. 

Uma característica da guerra na Frente Oriental era que a logística obrigava cada lado, um de cada vez, a fazer alto em seu avanço. As intendências russa e austríaca eram igualmente fracas, e a chegada das chuvas de outono transformou as estradas não pavimentadas em atoleiros. Os russos tinham na Galícia exércitos grandes demais para sua capacidade de supri-los adequadamente, naquela região de poucas ferrovias. Faltava tudo, menos homens: soldados percorriam campos de batalha com sacos, coletando ferraduras de cavalos mortos. Sergei Kondurashkin ouviu um soldado, no meio do canhoneio, gritar de uma cabana de camponês para todo mundo: “Venham comer! Fervi umas batatas, e só Deus sabe quando nossas rações vão chegar.” Uma fila intermitente de soldados desafiou o bombardeio austríaco para correr até à cabana e aproveitar a comezaina.

No quartel-general austríaco, Alexander Pallavicini tentava ver o lado positivo, consolando-se com o pensamento de que o exército escapara de um desastre terminal: “Nenhuma notícia a não ser de pequenos encontros ao longo da linha da frente. Carroças puxadas por cavalos estropiados arrastavam-se, chacoalhando e rangendo, do campo de batalha para a retaguarda, carregadas de homens arruinados, frequentemente moribundos, prostrados em camas de palha ensanguentadas; dos três transportados em cada veículo, era raro dois chegarem vivos aos postos de triagem; e era menor ainda o número dos que sobreviviam mais tempo. Alexei Ksyunin ouviu um ferido russo conversar em termos amigáveis com um prisioneiro Habsburgo, também ferido, na mesma carroça.

O hospital de Lublin era um espetáculo medonho — mais de 2.500 feridos apertados em trezentos leitos. Homens espalhavam-se no chão, nas salas, nos corredores e nas cozinhas, muitos sem receber cuidados, porque os suprimentos estavam exauridos, assim como médicos e enfermeiras. Um homem gritou um angustiado protesto a um transeunte: “Levem-no daqui! Está pisando na gente, colocando suas botas em cima da gente.” Um soldado atingido na cabeça, agora totalmente cego, caminhava por um corredor apalpando a parede. Outro, com a cabeça enfaixada, agarrou-se a um fogareiro, os olhos turvos e sem vida, até passar um oficial. Por reflexo, ele se levantou com dificuldade para prestar continência.

Um armazém da estação de Lublin ficou superlotado de feridos que não encontraram vaga no hospital. Enfermeiras polacas andavam com cautela pela multidão prostrada, ensanguentada e gemente, distribuindo cigarros. Um russo fez um gesto para seu vizinho austríaco e disse a uma das moças. “Dê-lhe um. É gente nossa. Fala nossa língua. Ele podia ser um ucraniano.” A história pode ser verdadeira, porque na Galícia, mais do que em qualquer outro teatro de operações, os súbditos dos dois imperadores em conflito sentiam um forte vínculo de parentesco no meio da difícil situação que viviam, algemados a um conflito que ia além de sua compreensão e de sua simpatia, sob as ordens de dois bufões rivais em uniforme de gala. Num hospital de Varsóvia, o correspondente Sergei Kondurashkin perguntou a um soldado ferido porque tantos pacientes tinham sido atingidos nos braços. O homem respondeu com sarcasmo: porque os atingidos na cabeça foram obrigados a permanecer no campo de batalha. O jornalista escreveu: “Ouvem-se muitas histórias, mas acabam sendo uma só, assim como os próprios soldados são sempre os mesmos, e também as circunstâncias em que milhares, e dezenas de milhares, de soldados viveram no campo de batalha.”


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