quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

O Astrolábio e a ciência ibérica medieval




British Museum

Este astrolábio, modelo portátil do céu de 1345, é muito semelhante a um grande relógio de bolso. Era um instrumento a que os navegadores deitavam mão para saber as horas, e para saber a posição na longitude e latitude através do sol e das estrelas. 
Apesar de bastante conhecido dos gregos antigos, o astrolábio foi um instrumento particularmente importante para o mundo islâmico encontrar a direção de Meca. Não surpreende que o mais antigo astrolábio conhecido seja um islâmico do século X. No entanto, o astrolábio mostrado aqui é judeu. Traz uma inscrição em hebraico e também palavras em árabe e castelhano. Não é apenas um instrumento científico avançado, mas um emblema de um momento muito particular da história religiosa e política da Europa.

Não sabemos exatamente a quem pertencia este astrolábio hebraico em particular, mas ele nos revela muito sobre como estudiosos judeus e islâmicos revitalizaram a ciência e a astronomia ao levar adiante o legado recebido da Grécia e da Roma clássicas. O instrumento nos conta de uma grande síntese intelectual e de um tempo em que as três religiões — cristianismo, judaísmo e islamismo — coexistiam pacificamente. O astrolábio torna acessível em uma forma compacta a soma das tradições e dos conhecimentos astronómicos medievais. 

À primeira vista, este astrolábio parece um relógio de bolso antiquado e grande demais, com uma face toda de latão. É um refulgente agregado de peças de latão interligadas, com cinco discos finos sobrepostos e presos por um pino central. Em cima há diversos ponteiros que podem ser alinhados com vários símbolos dos discos para oferecer interpretações astronómicas ou ajudar a determinar a posição de quem o consulta. Um astrolábio como este se destina à latitude na qual será usado: seus cinco discos permitirão determinar com precisão qualquer posição entre as latitudes dos Pirineus e do Norte de África. No meio dessa área ficam as latitudes das cidades espanholas de Sevilha e Toledo.

Silke Ackermann, curadora de instrumentos científicos no British Museum, passou muito tempo estudando este astrolábio: «As inscrições são todas em hebraico — é possível ver com bastante clareza letras do alfabeto hebraico finamente gravadas. Mas o que há de mais intrigante nesta peça é que nem todas as palavras estão em hebraico. Algumas têm origens árabes, outras são castelhano. Assim, por exemplo, ao lado de uma estrela da constelação que chamamos Aquila — a águia — vê-se escrito em hebraico nesher me’offel — “a águia voadora”. Porém outros nomes de estrela são dados na forma árabe: Aldebarã, em Touro, tem o nome árabe al-dabaran escrito em caracteres hebraicos. E, quando se leem as letras hebraicas dos nomes dos meses, elas formam os nomes espanhóis medievais como outubro, novembro, dezembro. O que vemos aqui, portanto, é o conhecimento dos astrónomos da Grécia clássica que mapearam o céu combinado com as contribuições de estudiosos muçulmanos, judeus e cristãos — e tudo na palma da mão.»

A Península Ibérica na Idade Média era o lugar na Europa onde florescia com grande intensidade a ciência, dado que era onde os muçulmanos e judeus eruditos em conjunto com os monges cristãos melhor guardaram o espólio dos conhecimentos mais avançados da Antiguidade Clássica grega e romana. Do século VIII ao XV, a mistura dos povos dessas três religiões foi um dos elementos mais característicos da cultura da Península Ibérica. No século XIV a Península Ibérica ainda era uma colcha onde pontuava Portugal, Castela e Aragão. Castela ainda fazia fronteira com o último Estado muçulmano independente que era o o reino de Granada que residia na Alhambra. Havia grandes números de judeus e muçulmanos, e os cristãos viviam juntos com eles, mantendo os ritos religiosos separados em catedrais, mesquitas e sinagogas. 
Isso não impedia, porém, um alto grau de interação recíproca, em particular no nível da ciência. O resultado foi uma civilização vibrante, criativa e original devido a esses contactos entre as três culturas. Essa coexistência, extremamente rara naquele período da história europeia, fez toda a diferença para que fosse de Portugal e Castela dado novos mundo ao mundo, como Luís de Camões bem gravou no seu poema épico dos Lusíadas.

Essa interação colocou o Portugal medieval na vanguarda da expansão marítima, graças não apenas a esse conhecimento erudito, mas também pelas naturais circunstâncias geográficas da orla marítima entre o Mediterrâneo e o Atlântico, onde o povo nórdico e viking dava cartas na arte de melhor navegar. Não só houve uma crescente aquisição de saber científico em torno de instrumentos astronómicos como também o conhecimento na arte de navegar em alto mar oceânico.

Abraão ben Samuel Zacuto [1450-1522] foi um astrónomo de origem judaica que serviu na corte do rei Dom João II de Portugal. Zacuto teria nascido em Salamanca. Ali teria estudado e lecionado astronomia e astrologia. Quando da expulsão dos judeus de Espanha em 1492, Zacuto refugiou-se em Portugal, sabendo-se que estava a serviço de Dom João II em junho de 1493.

Era já reconhecido como um importante astrónomo antes de chegar a Portugal. No país, seu trabalho foi importante para a ciência náutica. Foi chamado à Corte e nomeado Astrónomo e Historiador Real pelo Rei, cargo que exerceu até ao reinado de Dom Manuel I. Foi consultado por este monarca acerca da possibilidade de uma viagem por mar até à Índia, que apoiou e encorajou. Mesmo assim, Zacuto sofreu a expulsão de Portugal, tal como todos os judeus que recusaram se converter ao catolicismo, que era dada através do batismo, que o rei português impôs aos que aí viviam. Morreu no Império Otomano c. 1510. Abraão Zacuto foi o autor de um novo e melhorado astrolábio, que ensinou os navegantes portugueses a utilizar, e também de melhoradas tábuas astronómicas que ajudaram a orientação das caravelas portuguesas no alto-mar, através de cálculos a partir de observações com o astrolábio.


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