domingo, 14 de janeiro de 2024

Líbano



Quando o Líbano se tornou independente, na década de 1940, incluiu três regiões com diferentes tipos de população e tradições de governo: 1) a região do monte Líbano, com uma população sobretudo cristã (maronita no norte e drusa e cristã no norte e no sul); 2) as cidades do litoral de população mista, muçulmana e cristã; 3) certas áreas rurais a leste e ao sul do monte Líbano, onde a população era basicamente muçulmana xiita. A primeira dessas áreas tinha uma longa tradição de administração separada sob seus próprios senhores, e depois como um distrito privilegiado do Império Otomano. As outras, que tinham sido parte integrante do Império Otomano, foram incorporadas ao Líbano pelo governo sob o mandato da França. 

Assim, o novo Estado - Líbano - era um Estado democrático quando os franceses deixaram o país. Houve um acordo entre os líderes dos maronitas e dos muçulmanos sunitas de que o presidente da República seria sempre maronita, o primeiro-ministro sunita, e outros postos do governo e da administração distribuídos entre as diferentes comunidades religiosas, mas de modo a preservar o poder efetivo em mãos cristãs. Entre 1945 e 1958, o sistema conseguiu manter um equilíbrio e um certo grau de cooperação entre os líderes das diferentes comunidades, mas no período de uma geração as suas bases começaram a se enfraquecer. 

A população muçulmana cresceu mais que a cristã, e na década de 1970 admitia-se em geral que as três comunidades coletivamente vistas como muçulmanas (sunitas, xiitas e drusos) eram maioritárias. Alguns de seus líderes mostravam-se menos dispostos a aceitar uma situação em que a presidência e o poder último ficasse nas mãos dos cristãos. Além disso, as rápidas mudanças económicas no país e no Médio Oriente haviam levado à transformação de Beirute numa grande cidade, na qual metade da população do país vivia e mais da metade trabalhava. Beirute tornara-se numa extensa cidade-Estado; precisava do controlo de um governo forte e eficaz. O fosso entre ricos e pobres aumentara, e os pobres eram sobretudo muçulmanos; precisavam de uma redistribuição de riqueza, através de impostos e serviços sociais. Um governo baseado num frágil acordo entre líderes não estava em boa posição para fazer o que se exigia, pois só podia sobreviver se não seguisse qualquer política que perturbasse interesses poderosos.

Em 1958 o equilíbrio desfez-se, e houve vários meses de guerra civil. Na década e meia seguinte acrescentou-se um outro fator que foi o confronto entre os palestinos e Israel. Isso causou alarme em importantes elementos entre os cristãos, e em particular no seu mais bem organizado partido político, o Kata’ib (Partido Falangista). As atividades palestinas no sul estavam levando a uma forte reação de Israel, que podia ameaçar a independência do país. A presença de palestinos dava apoio aos grupos, sobretudo muçulmanos e drusos, que queriam mudar o sistema político em mãos cristãs.

Em 1975 houve um perigoso confronto entre o Kata’ib e seus aliados em Israel, e os palestinos e seus aliados na Síria. A luta séria irrompeu na primavera daquele ano, e continuou, com altos e baixos, até fins de 1976, quando se chegou a uma trégua mais ou menos estável. A principal instigadora disso foi a Síria, que mudara a política durante o período da luta. Tinha apoiado os palestinos e seus aliados no início, mas depois aproximara-se do Kata’ib e seus aliados, quando estava iminente a derrota. Estava em causar um equilíbrio de forças que contivesse os palestinos e lhes dificultasse seguir uma política no sul do Líbano que arrastasse a Síria a uma guerra com Israel. Para preservar esses interesses, enviou forças armadas ao Líbano, com uma certa aprovação dos outros estados árabes e dos EUA, e elas permaneceram lá depois do armistício. 

Grupos maronitas dominavam no norte, o exército sírio estava no leste, e a OLP dominava no sul. Beirute dividiu-se entre uma parte oriental, controlada pelo Kata’ib, e uma parte ocidental, controlada pela OLP e seus aliados. A autoridade do governo quase deixara de existir. O poder incontido da OLP no sul levava-a a um intermitente conflito com Israel, que em 1978 desencadeou uma invasão; foi detido por pressão internacional, mas deixou atrás um governo controlado por Israel numa faixa ao longo da fronteira. A invasão e a situação perturbada no sul levaram os habitantes xiitas da área a criar sua própria força política e militar: o Amal.

Em 1982, a situação adquiriu uma dimensão mais perigosa. O governo nacionalista em Israel, tendo assegurado a fronteira sul pelo tratado de paz com o Egito, tentava agora impor a sua própria solução aos palestinos. Isso envolveu uma tentativa de destruir o poder militar e político da OLP no Líbano, instalar um regime favorável lá, e depois, livre da resistência efetiva palestina, seguir a sua política de assentamento e anexação da Palestina ocupada. Com certo grau de aquiescência dos EUA, Israel invadiu o Líbano em junho de 1982. A invasão culminou num longo sítio à parte ocidental de Beirute, habitada sobretudo por muçulmanos e dominada pela OLP. 

O sítio acabou com um acordo, negociado através do governo americano, pelo qual a OLP evacuaria Beirute Ocidental, com garantias de segurança para os civis palestinos dadas pelos governos libanês e americano. Ao mesmo tempo, uma eleição presidencial resultou na vitória do chefe militar do Kata’ib -  Bechair Gemayel. Mas foi assassinado logo depois, tendo-lhe sucedido por eleição seu irmão, Amin. O assassinato foi aproveitado por Israel como uma oportunidade para ocupar Beirute Ocidental. Isso permitiu que o Kata’ib efetuasse um massacre de palestinos em larga escala nos acampamentos de refugiados de Sabra e Chatila.

Embora a invasão houvesse mostrado a impotência da Síria ou de outros países árabes para empreender uma ação combinada e efetiva, tropas sírias continuavam em partes do país, e a influência síria era forte junto aos que se opunham ao governo. A Síria e seus aliados podiam obter um certo apoio da URSS, enquanto os EUA estavam em posição de dar apoio tanto militar como político ao Kata’ib. 

A partir de Sabra e Chatila o componente americano na força multinacional foi aos poucos aumentando suas funções, de defesa da população civil para apoio ativo ao novo governo libanês e a um acordo. Nos últimos meses de 1983, a força estava empenhada em operações militares de apoio ao governo libanês, mas, após ataques aos marines, e sob pressão da opinião pública americana, retirou suas forças. Sem apoio efetivo americano, e enfrentando forte resistência dos drusos, xiitas e da Síria, o governo libanês cancelou o acordo com Israel. Um dos resultados desse episódio foi o surgimento do Amal e outros grupos xiitas como grandes fatores na política libanesa. Em 1984, o Amal tomou o controlo de facto de Beirute.

A guerra civil dilacerou o Líbano entre 1975 e 1991. Os detalhes dessa luta de várias frentes são extremamente confusos, mas as linhas gerais são bastante claras. Entre os anos 40 e 70 do século XX, o Líbano foi amplamente considerado a “Suíça árabe”. Um mundo comercial, próspero e pacífico. Esta percepção, entretanto, era enganadora. O Estado libanês conseguiu manter, desde a independência, uma frágil democracia graças ao Pacto nacional de 1944, que estabeleceu e perpetuou a dominação maronita. Essa dominação era condicional e se baseou numa partilha do poder com as outras comunidades, que receberam, cada uma, uma certa proporção de vagas (funcionários públicos, posições de poder etc.), reservadas em função de um censo dos anos 40. A maior taxa de crescimento dos muçulmanos, no entanto, abalava o equilíbrio comunitário. Esse equilíbrio, excepcionalmente, prevenia a dominação de um grupo ou seita, e abria no Líbano um espaço maior para a liberdade de expressão do que em outras partes. Beirute era o centro de todos os grandes debates literários e políticos. Mas essa liberdade também propiciou intromissões que acabariam minando tal construção.

Nos anos 60 e 70, o arranjo de 1944, que partilhara o poder entre as comunidades religiosas que constituíam a república libanesa, mas que favoreceu os maronitas e prejudicou os muçulmanos (e seitas cristãs), foi gradualmente minado pelo crescimento demográfico mais intenso dos muçulmanos. Contudo, os maronitas não estavam dispostos a reabrir a negociação. Uma fachada de prosperidade superficial e de vivacidade intelectual não pôde esconder que as tensões intercomunitárias estavam se aprofundando. O catalisador da guerra civil foi a presença de algumas centenas de milhares de refugiados palestinos, maioritariamente muçulmanos, que eram rejeitados e discriminados. O influxo, desde 1970, de milhares de guerrilheiros fugitivos da Jordânia, que usaram o sul do Líbano como novo trampolim para incursões em Israel – provocando assim retaliações israelitas – desequilibrou o frágil sistema. O Estado, destituído de órgãos neutros e quase sem exército funcional, ficou indefeso.

Alguns incidentes entre milícias em 1975 foram suficientes para desencadear um ciclo repleto de massacres e atrocidades mútuas. A guerra civil opôs inicialmente um bloco de maronitas, de direta, a um movimento sunita de esquerda, drusos e palestinos. Teoricamente, a esquerda quis reforçar os laços do Líbano com o mundo árabe (e foi então apoiado pela Síria), enquanto a direita enfatizou seu caráter idiossincrático (e foi apoiada por Israel). Mas os rótulos ideológicos mascararam mais do que desvendaram. Logo ficou claro que a situação era muito mais complexa: os maronitas eram divididos em clãs hostis; as elites sunitas privilegiadas algumas vezes se alinharam com os maronitas; cristãos ortodoxos árabes se alinharam em geral com a esquerda; os xiitas, tradicionalmente a parcela mais atrasada da população, originalmente concentrada no sul mas que a miséria e as guerras trouxeram parcialmente para Beirute, radicalizaram-se e participaram com suas próprias milícias. E os palestinos, também divididos em facções opostas, eram odiados por todos os outros.

Potências vizinhas mais fortes aproveitaram o caos para se intrometer em prol de seus próprios interesses. A Síria, apesar da sua retórica radicalmente de esquerda, não pôde suportar a ameaça de uma supremacia militar dos palestinos, mais progressistas, e mandou seu exército contra eles, o que facilitou às milícias maronitas massacrá-los em Tell al-Za’atar, Beirute, 1976. Israel interveio em 1978 para expelir os palestinos do sul do Líbano, e repetiu sua ação, muito mais maciçamente, em 1982. Nessa guerra, Israel conseguiu afastá-los de suas bases no sul e exilou a liderança da OLP de Beirute na Tunísia, provocando uma nova invasão síria na maior parte do Líbano – muito mais duradoura do que a própria invasão israelita.


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