terça-feira, 23 de janeiro de 2024

As andanças de Yehudah Halevi



Yehudah ben Samuel Halevi (em árabe transl. Abu-I-Hasan ibn Levi) nasceu em Tudela, Navarra c. 1070, foi poeta, filósofo e médico em Toledo no tempo de Afonso VI, veio a ser sepultado em Jerusalém, c. 1141. Já adolescente, Yehudah Halevi, filho de levitas, sai da Tudela cristã e empreende a longa viagem para Granada, no sul. Vinte anos tinham passado desde o massacre de Granada. Os judeus que tinham fugido já voltavam à colina de Sabika. Oravam, comerciavam e cobravam impostos, mas mostravam uma cautela diplomática na forma como desempenhavam tais deveres. Evitavam ostentações. O mais talentoso deles, Moshe ibn Ezra, vinte anos mais velho do que Halevi, pertencia a uma antiga família cortesã de Granada que sobrevivera às degolas de 1066 e voltara ao trabalho silencioso, diligente e próspero.

Halevi foi bem recebido no jardim da poesia e na casa de Moshe ibn Ezra. Guerreiros berberes de Marrocos, chamados para reforçar os Estados muçulmanos contra avanços cristãos, tiveram tanto sucesso que se voltaram contra eles e tomaram toda a Andaluzia, inclusive Granada, fazendo da região seu próprio território. Como em momentos anteriores de renovação islâmica, os guerreiros eram ascéticos, militantes, hostis à lassidão e ao luxo, e tudo isso, é escusado dizer, era nefasto para os judeus. No novo regime de puritanismo, era impensável que infiéis ocupassem cargos elevados. Os irmãos de Moshe deixaram Granada para sempre, sendo-lhes tiradas as propriedades e os bens. O poeta ali permaneceu por alguns anos mais, antes de deixar a colina de Sabika e começar uma vida difícil vagueando de fronteira a fronteira, jamais esquecendo a perdida Andaluzia. Anos depois, já na meia-idade, Halevi escreveria para Moshe versos em que recordava o tempo em que ninguém atrelava ou usava os carros das estradas errantes.

A cristandade vivia o tempo de Afonso VI de Leão e Castela, o Bravo [1047-1109]. Desde 1065, foi até à sua morte, rei de Leão; desde 1072 rei de Castela; e desde 1073 rei da Galiza, intitulado Imperator totius Hispaniæ (imperador de toda a Hispânia) desde 1077 e rei de Toledo desde 1085. Em 1109, após o falecimento do benevolente Afonso VI e enquanto se aguardava a posse de seu genro e sucessor, o rei de Aragão, ocorreu outra carnificina violenta contra os judeus.

Onde haveria um lugar seguro? Em parte alguma, pois Castela vinha dificultando a vida dos judeus, e os almorávidas, que tinham atenuado um pouco sua rudeza, estavam por isso mesmo a ponto de serem sucedidos por outra tribo guerreira, a dos almóadas, que migravam do norte de África, entre a cadeia do Atlas e o oceano, onde ocorriam ondas de limpeza puritana. Os almóadas tornariam a vida dos judeus quase insuportável, submetendo-os a ondas de violência, com destruição de sinagogas e comunidades, conversões forçadas à ponta de espada. Por ora, porém, os almorávidas se mostravam mais pacíficos, pelo menos o suficiente para que no fim da década de 1120, metesse suas coisas na carroça e pela segunda vez na vida migrasse para o sul, em direção às andorinhas da Andaluzia. O lugar onde ele pousou por algum tempo foi a cidade onde, um século e meio antes, surgira a nova poesia hebraica: a Córdoba de Hasdai.



O Al Andaluz no tempo de Afonso VI e dos Almorávidas
P - Condado Portucalense. L - Leão. C - Castela. N - Navarra. A - Aragão

Em 1085, Afonso VI, aproveitando o pedido de ajuda da taifa de Toledo, contra um usurpador, sitiou esta cidade e aceitou a sua rendição a 25 de Maio. Depois desta vitória, passou a intitular-se imperador das duas religiões. A ocupação de Toledo significou a inclusão do território entre o Sistema montanhoso central da Península Ibérica e o rio Tejo no seu reino. Desta forma, pôde iniciar uma grande atividade militar contra as taifas de Córdoba, Sevilha, Badajoz e Granada. Nestas circunstâncias, os reis das taifas decidiram pedir ajuda aos almorávidas. O emir Iussufe ibne Taxufine atravessou o estreito de Gibraltar e venceu Alfonso VI na batalha de Zalaca, perto de Badajoz. Os mouros ainda cercaram Toledo, mas não lhes foi possível tomar a cidade. Nos últimos anos do seu reinado, Afonso tentou sem sucesso impedir a consolidação da dinastia almorávida no Al Andalus. Ocuparam as taifas do sul e impuseram-lhe uma nova derrota na batalha de Uclés (1108), onde morreria o seu único filho varão, Sancho Alfonsez. A coroa passaria assim para as mãos da sua filha Urraca, enquanto Teresa herdaria o Condado Portucalense.

 Tendo imaginado uma vida serena com um mentor benevolente em Granada, Halevi conheceu bem aqueles “carros das estradas errantes”. É difícil traçar com alguma correção o mapa de suas viagens, mas, ao que parece, de Granada ele foi para Lucena, cidade andaluza cuja população era predominantemente judaica e onde ele conhecia o diretor da ieshiva. Contudo, seu judaísmo a tornava um alvo preferencial para os conquistadores almorávidas, que impunham uma tributação punitiva como preço para não tornar obrigatória a conversão ao islão. Halevi transferiu-se então para Sevilha, onde ganhou a vida como poeta de aluguer, escrevendo poemas para casamentos, enterros e qualquer ocasião na vida cada vez mais difícil dos judeus da Andaluzia. Os poemas desses anos, que ainda impressionam pelo frescor e pelo coloquialismo despojado, na maior parte dos casos nascem desse estado de inconstância: despedidas, separações, ausências, saudades. Mantido “cruelmente” em cativeiro por uma “corça” e depois forçado a partir, o amante desgostoso recorre “para socorrer-se a uma maçã/ cuja fragrância lembra a mirra de teu hálito,/ a forma de teu seio/ e a cor do rubor que tinge tuas faces”.

Em algum momento na primeira década do século XII, Halevi decidiu que já estava farto dos almorávidas e cruzou a fronteira religiosa e militar, instalando-se em Toledo, na Castela cristã. Não foi como se ele estivesse entrando numa área desconhecida, pois passara a infância em Tudela, mais ao norte, na Navarra cristã. O rei Afonso VI de Castela mostrara-se hospitaleiro aos judeus precisamente por causa do conhecimento que tinham da língua e da cultura de seus inimigos muçulmanos, mas sua hospitalidade foi além da conveniência estratégica. Havia em Toledo uma comunidade judaica grande e próspera, que agora incluía o antigo mentor de Halevi, Moshe ibn Ezra, assim como o famoso Yosef ibn Ferruziel, nobre poderoso e médico pessoal do rei. Talvez tenha sido a demanda de médicos judeus que levou Halevi a se preparar para a profissão, como meio de complementar sua renda. Entretanto, embora tenha vivido ali vinte anos, casado e com três filhos, parece que nunca houve nenhum lugar onde ele se sentisse seguro ou especialmente feliz.

A medicina era penosa; Moshe ibn Ezra tinha deixado a cidade sob a sombra de um escândalo que envolvia uma sobrinha; seu amigo Shlomo ibn Ferruziel, sobrinho de Yosef, foi assassinado numa estrada, provocando uma onda de pesar e de raiva contra os cristãos. Dois dos três filhos de Halevi morreram, uma tragédia que inspirou ao pai enlutado um de seus poemas mais belos e pungentes, escrito em três vozes: a sua própria, a de sua mulher e a da criança morta: “Mesmo que eu chorasse/ rios inteiros por minha filha,/ Ainda assim ela estaria/ Numa cova de vermes./ Profundamente sepultada./ Coberta de terra./ Criança, não há clemência,/ pois a morte se interpôs entre mim e ti”.

O judaísmo de Halevi não é místico. Longe disso, o médico (por maior que fosse sua relutância) esforça-se para explicar ao rei cazar que os judeus eram, desde a Antiguidade, peritos em astronomia, que tinham dado ao mundo calendários (adotados por todos os povos desde então para dividir o tempo) e o dia de descanso na semana (que também se tornara universal). A Torá, ele insistia, podia parecer excêntrica, mas, como os rabinos e sábios do Talmude faziam o possível para explicar, na verdade estava recheada de instruções materiais, como por exemplo as maneiras de determinar, nos animais, manchas e defeitos que os tornavam impróprios para o sacrifício e o consumo humano. Não surpreende, pois, que a atitude de Halevi em relação a questões sagradas sobrenaturais seja poética: a essência de Deus encoberta à vista da razão, ausente do mundo do trabalho, encarnada apenas em formas de nomes divinos, mas impondo verbalização e vocalização em comum, seja na oração, seja em canções ou poemas.

O fim lógico de seu afastamento da cultura muçulmana e cristã era a jornada pessoal de regresso à própria Sião. O facto de Jerusalém estar agora nas mãos dos cruzados e de os judeus terem sido massacrados ali tornava esse chamamento mais urgente. A intensificação da fé fazia Halevi prestar atenção a sua voz interior, que lhe dizia que, quando houvesse um número suficiente de judeus no monte das Oliveiras, voltado para o monte do Templo, a shechiná retornaria ao santuário em ruínas que ela abandonara, e quando ela se manifestasse, até o Messias poderia reaparecer. No Kuzari, seu alter ego rabínico dissera ao rei, como estímulo à conversão, que boas intenções de nada valiam sem ações que as acompanhassem. Por isso, ele agora censurava a si próprio com frequência, consumido pela sensação de estar apenas parcialmente vivo no exílio, que ele descrevia como uma espécie de sono. A Arca, ele escrevera no Kuzari, era um coração, e agora era evidente que o seu se achava a leste da Sefarad: da península Ibérica.

No verão de 1140, Yehudah Halevi arruma suas coisas e parte. Com ele viajam Yitzhak ibn Ezra, marido da filha sobrevivente, que deixa na Espanha a mulher e um filho, Yehudah, assim chamado em homenagem ao avô, e um certo Shlomo ibn Gabbai. O poeta faz estardalhaço ao se separar da casa, do país e da mulher de tantos anos, a quem ele não parece ser muito ligado. 
Cartas preservadas na Guenizá do Cairo mostram Halevi como objeto de algo semelhante a um culto entre os abastados, os devotos e aqueles com aspirações culturais em Alexandria e no Cairo. Essas pessoas trocam cartas em que se dizem emocionadas com a chegada iminente de Halevi, ou preocupadas com sua demora. Há uma intensa competição entre admiradores que pretendiam lhe dar mostras de hospitalidade, demonstrações de ciúme mortal quando se diz que o Grande Poeta preferiu a casa de fulano, mas, de forma inexplicável, não a de beltrano. 

Ao que parece, Halevi foi tomado de surpresa com tudo isso e, assim que se recuperou dos enjoos da viagem marítima, pôs-se a refletir. Não tinha ido para lá como um peregrino, despojado de bens e vaidades terrenas, só querendo chegar à Palestina o mais depressa possível, para ali “beijar o pó, tão doce na boca quanto o mel”, de suas ruínas sagradas? No entanto, depois de todos os sofrimentos da jornada marítima, pensar em outra viagem, quer por terra, pela rota das caravanas, quer de novo pelo mar, até Acre, parecia um tanto intimidante para seus velhos ossos. Aliás, era iminente Rosh Hashaná (o Ano-Novo), e a seguir o Dia do Perdão, daí a pouco a Festa dos Tabernáculos e logo o Regozijo da Torá (como ele não havia de regozijar-se?), uma festa atrás da outra, e ao fim de todas o mau tempo faria de uma segunda viagem pelo mar uma perspectiva aterradora. E as pessoas em Alexandria eram tão amáveis, cada qual buscando ser mais hospitaleira, sobretudo Aharon al-Ammani, o pilar da comunidade, que abrira suas portas e, bem, insistira de verdade em que ele descansasse um pouco em sua mansão, tão bela, com seu bustan de árvores bem cuidadas e fontes murmurantes…

Assim, Halevi se deixou ficar ali por mais de dois meses, com o genro e o amigo, grato pela pródiga hospitalidade que Ammani lhe proporcionava, pela excelente mesa, pela tranquilidade do pátio, onde só era incomodado pelos admiradores que batiam na porta, desejosos de tocar a fímbria de seu caftan. O inverno se aproximava, impedindo a viagem por via marítima, mas se Halevi desejava mesmo partir, tanto quanto dizia, sempre podia ir para Fustat, onde outros entusiastas, entre os quais seu velho amigo Halfon ibn Natanael, ansiavam pelo prazer de sua companhia, e conseguir um lugar numa caravana que estivesse de partida para a Terra Santa. Antes de Chanuká, ele fez a viagem Nilo acima, hospedando-se com o nagid, o chefe da comunidade do Cairo, Shmuel ibn Ananias, que tentou, sem exageros, conter toda a gente que queria cobri-lo de homenagens. Num dia de inverno, ao que parece, Halevi tentou empreender a viagem por terra, tão espinhosa, a seu modo, quanto a travessia marítima, montado num camelo sacolejante por horas sem fim, através de uma rota que o levava muito mais ao sul do que as caravanas normais. Quer por causa do desconforto, quer por se sentir mal ou nervoso, ele desistiu da viagem e voltou para Fustat, recebendo pela primeira vez comentários de censura, gestos desaprovadores e frases como “não lhe disse?” por parte daqueles que lhe haviam repetido que aquela viagem era dura demais para um idoso de sessenta e tantos anos. Afinal, o que havia de tão errado no Egito?

O poema, que tratava de duas espécies de anseio, tornou-se logo tão popular que Halevi não pôde deixar de escrever outro, para seu anfitrião al-Ammani em Alexandria, de uma sensualidade ainda mais explícita, sobre aquelas mocinhas com todos os adornos pesados nos pulsos e nos tornozelos, “carregadas de sinos argênteos de maçãs e romãs”, o cabelo “negro como a tristeza de adeuses” ou tão claros que “um olhar ao sol que neles fulge queima a vista […] sedutoras, ágeis ou esguias, eu poderia apaixonar-me por todas elas e por suas perigosas bocas rubras”.52 Na segunda metade do poema, Halevi retorna, de maneira apropriada, à devoção, imaginando a si mesmo como um peregrino descalço em Sião, inundando a terra com suas lágrimas. Entretanto, o olhar cobiçoso dos versos anteriores, vindo de um ancião, eram tão perturbadores que um cidadão que organizara a fracassada caravana por terra se queixou de sua frivolidade a al-Ammani, que, por sua vez, não parece ter se importado nem um pouco.

Durante séculos, judeus quiseram saber o que fora feito dele. Benjamim de Tudela, viajante da cidade natal de Halevi, afirmou ter visto seu túmulo perto de Tiberíades, junto do mar da Galileia. Entretanto, não houve testemunhas posteriores que confirmassem essa informação, e, em vista da fama de Halevi e da constância das peregrinações de judeus, parece improvável que esse local tenha sido objeto de incúria. Seja como for, a nostalgia judaica por Jerusalém projetou-se em Yehudah Halevi, que sofreu por ela com mais eloquência e angústia do que qualquer outro poeta judeu antes ou depois dele, uma história que poderia se igualar à intensidade daquela ânsia. No século XVI, o judeu italiano Gedaliah ibn Yahya afirmou, numa coletânea publicada em Veneza, em 1586, que Halevi havia de facto chegado às portas de Jerusalém, onde morreu espezinhado pelos cascos do cavalo de um árabe.

Será crível que Halevi tenha chegado tão longe? Supondo-se que ele tenha sobrevivido à viagem relativamente curta de Alexandria a Acre, no fim de maio ou começo de junho de 1141, teria sido possível que ele chegasse a Jerusalém perto do dia do jejum do Nove de Av, que naquele ano caiu em 18 de julho, quando a proibição da presença de judeus era suspensa para que pudessem lamentar a destruição do Templo de Salomão e do Segundo Templo? A velha prática de caminhar em torno do perímetro da cidade e de rezar junto às portas não era bem-vista pelos cruzados, mas Halevi pode ter conseguido subir o monte das Oliveiras para dali contemplar o monte do Templo, onde o Domo da Rocha tinha sido transformado numa igreja cristã. Seria bem de seu feitio, tendo chegado tão longe, querer se aproximar de uma porta e talvez até se prostrar no chão, que, segundo ele dissera repetidas vezes, teria o perfume da mirra e seria doce como o mel.

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