quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Cristal de Lotário




Cristal de rocha que mostra Susana e os anciãos, provavelmente feito na Alemanha

Este objeto que está ligado a um rei cujas tentativas prolongadas de se divorciar da rainha tinham a intenção de salvaguardar o reino, data de 855-869 d.C. O fracasso provavelmente o matou e decerto pôs um ponto final não apenas em sua linhagem, mas também em seu reino. Um cristal de rocha entalhado, com uma inscrição em latim que significa: “Lotário, rei dos francos, me fez ser fabricado.”

O Cristal de Lotário, também conhecido como Cristal de Susana, é um disco de cristal de rocha com 18 cm de diâmetro que traz entalhada uma história bíblica (ou, de acordo com algumas tradições, apócrifa) em oito cenas distintas. A história passa-se na Babilónia, onde a bela e jovem Susana é casada com um rico mercador. Enquanto ela se banha no pomar do marido, dois homens mais velhos entram sem permissão e tentam violá-la. Ela pede socorro às servas, e os dois anciãos, furiosos, a acusam, falsamente, de adultério. Vemos em seguida Susana ser levada para apedrejamento. Mas nesse momento o jovem e brilhante profeta Daniel intervém e põe em dúvida a validade das provas que a condenaram. 

Separando os anciãos, Daniel faz a cada um deles uma pergunta, um clássico de tribunal. Os homens dão respostas contraditórias, ficando clara a falsificação da acusação. Eles é que são mortos à pedrada, acusados de perjúrio. Na cena final Susana é declarada inocente e dá graças a Deus. Daniel teria uma sorte extraordinária se acreditasse que tinha destruído as testemunhas e revelado a desonestidade delas fazendo uma única pergunta a cada uma. Mas o princípio é claro, e Daniel era sem dúvida um interrogador muito hábil.

Cada cena no cristal é uma obra-prima de entalhe em miniatura, e em todas o artista achou espaço para incluir também um pequeno texto em latim, explicando os acontecimentos. Na cena final, há uma frase contundente: Et salvatus est sanguis innoxius in die illa — E naquele dia sangue inocente foi poupado. É nessa cena que encontramos o texto que menciona o rei Lotário. O rei que encomendou o Cristal de Susana descendia de uma das grandes figuras da Europa medieval: Carlos Magno. Por volta do ano 800, Carlos Magno, rei dos francos, criou um império que cobria a maior parte da Europa Ocidental, incluindo o norte da Itália, o oeste da Alemanha e a França moderna. Era o maior Estado que a Europa Ocidental via desde a queda de Roma, e a estabilidade e a prosperidade do império de Carlos Magno proporcionaram um grande florescimento das artes nos anos que se seguiram, a “Renascença Carolíngia”.

É uma joia que foi apreciada em quase todas as épocas. Durante a maior parte de sua existência ficou na abadia de Waulsort, na Bélgica moderna, centro do império de Carlos Magno. Estava ali, sem dúvida, no século XII, quando o cronista da abadia descreve-a claramente: Este cobiçado tesouro foi feito (…) a pedido do famoso Lotário, rei dos francos. Um berilo colocado no meio contém uma representação de como, para Daniel, Susana foi maldosamente condenada pelos velhos juízes. [A pedra] mostra a habilidade de sua arte pela variedade da obra.

A joia provavelmente permaneceu em Waulsort até as tropas revolucionárias francesas saquearem a abadia nos anos 1790. Talvez tenham sido elas a estragarem o cristal — que sem dúvida havia sido feito para a realeza, pela qual tinham desprezo — no rio Mosa, próximo dali. Estava rachado quando o encontraram, mas, fora isso, encontrava-se em perfeito estado, pois o cristal de rocha é de uma resistência extraordinária. É duríssimo, não pode ser cinzelado, e para desbastá-lo é preciso usar pós abrasivos. O processo devia tomar um tempo imenso e exigir grande habilidade artesanal, razão pela qual cristais como este eram objetos de luxo valiosíssimos. Não conhecemos a finalidade original do Cristal de Susana — possivelmente uma oferenda para um santuário —, mas ele era, em todos os aspectos, um objeto digno de um rei.

Na época em que o cristal foi feito, o império de Carlos Magno já se fragmentara, e todo o Nordeste da Europa estava dividido entre três membros de sua família conflituosa e profundamente desequilibrada. As rixas resultaram na divisão do império em três partes: 1) Reino oriental, que mais tarde iria ser a Alemanha; 2) Reino Ocidental que viria a ser a França; 3) Reino Central, de Lotário, a Lotaríngia, que ia da Bélgica moderna passando pela Provença até a Itália. Esse Reino Central sempre foi o mais fraco dos três, constantemente ameaçado por tios perversos dos dois lados. A Lotaríngia precisava ser capaz de se defender: necessitava de um rei forte.

Carlos, o Calvo, no Ocidente, e Luís, o Germânico, no Oriente, lançavam olhares de cobiça sobre o reino da Lotaríngia. Teutberga, era a mulher de Lotário. Mas não teve filhos dela.
 Então recrutou seus dois bispos, de Colónia e de Tréveris, para que anulassem o casamento com base na relação incestuosa de Teutberga com o irmão. O esforço de Lotário para se divorciar da mulher e se casar com uma amante não era um capricho egoísta: ele precisava de um herdeiro legítimo, pois essa era a única possibilidade de preservar a herança e o reino. Porém o divórcio real, ontem como hoje, é dinamite política.

Os bispos de Colónia e Tréveris, na verdade, arrancaram da rainha, talvez mediante tortura, a confissão de que ela cometera incesto com o irmão. Mas Teutberga apelou ao papa, que a absolveu depois de investigar o caso. Foi um imenso revés dinástico para Lotário, mas parece que ele aceitou a decisão papal. Embora continuasse tentando achar outra maneira de se divorciar, tudo indica que admitiu publicamente que as alegações contra Teutberga eram infundadas e que a mulher difamada era de todo inocente.

Devido às fortes semelhanças com a história de Susana, é sempre irresistível ver no cristal uma ligação com o drama da realeza. Talvez tenha sido feito como um presente para Teutberga, a fim de demonstrar a sinceridade de Lotário ao reconhecer que ela não tinha culpa — se for o caso, é uma espécie de declaração privada, que assinala uma trégua temporária em suas disputas conjugais. Contudo, aspectos do tratamento dado à cena final sugerem que o cristal decerto tem um significado bem maior. Na última cena, o artista se afasta do texto bíblico e mostra Susana sendo declarada inocente por um rei que preside o julgamento, e a inscrição menciona especificamente Lotário. A mensagem é clara: uma das obrigações do rei é assegurar que a justiça seja feita — em suma, o rei precisa garantir e respeitar o império da lei, mesmo que para ele isso tenha um alto custo pessoal. A justiça é quase a virtude definidora da realeza.

O Cristal de Lotário, ou de Susana foi feito para um rei sem herdeiros em um reino sem futuro. Em 869, quando Lotário morreu sem conseguir o divórcio, os tios de facto partilharam suas terras, e tudo que hoje resta da Lotaríngia é o nome da região francesa da Lorena. Por mais de mil anos, até 1945, o Reino Central de Lotário foi acirradamente disputado pelos sucessores de seus perversos tios, a França e a Alemanha. Se Lotário tivesse conseguido o divórcio e um herdeiro legítimo, a Lorena poderia hoje igualar-se à Espanha, à França e à Alemanha como um dos grandes países da Europa continental. A Lotaríngia pereceu, mas o princípio que o Cristal de Lotário proclama sobreviveu: uma obrigação fundamental do governante de um Estado é garantir que a justiça seja feita, sem parcialidade, em tribunal aberto. A inocência deve ser protegida. O Cristal de Lotário é uma das primeiras imagens europeias da noção do império da lei.


Sem comentários:

Enviar um comentário