sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Ramsés II



Ramsés II governou o Egito pelo período incrivelmente longo de 66 anos, presidindo uma era dourada de prosperidade e poder imperial. Durante o seu reinado as enchentes do Nilo produziram uma série de safras de excepcional fartura. Foi também um prodigioso empreendedor. Logo depois de assumir o trono, em 1279 a.C., partiu em campanhas militares para o norte e o sul, cobriu a terra de monumentos e foi visto como um governante tão bem-sucedido que nove faraós posteriores adotaram seu nome. Ainda era adorado como um deus nos tempos de Cleópatra, mais de mil anos depois.

Ética e escrúpulos eram conceitos que ainda não tinham sido inventados no tempo de Ramsés II. Para poupar tempo e dinheiro, simplesmente alterava as inscrições de esculturas preexistentes, que passaram a levar o seu nome e a louvar suas façanhas. Ergueu por todas as partes do reino vastos templos como Abu Simbel, e imagens gigantescas esculpidas e talhadas diretamente nas encostas rochosas do vale do Nilo. Os americanos foram atrás,  como se vê nos rostos de presidentes americanos esculpidos no monte Rushmore.

No extremo norte do Egito, de frente para as potências vizinhas do Mediterrâneo e da Mesopotâmia, fundou uma nova capital, modestamente chamada de Pi-Ramsés Aa-nakhtu, a “Casa de Ramsés II, Grande e Vitorioso”. Um complexo memorial em Tebas, perto da moderna Luxor, esmaga qualquer veleidade dos povos vizinhos. Um templo onde seria venerado em vida e depois cultuado como um deus por toda a eternidade. Ocupa uma área imensa, do tamanho de quatro campos de futebol, contendo templo, palácio e tesouros.



Ramsés II em Luxor

Há algo de muito humilde, uma celebração do que um povo pode fazer unido, porque essa é a outra coisa extraordinária da arquitetura e da escultura egípcias, o envolvimento de um número imenso de pessoas e o facto de ser um ato coletivo de celebração da própria capacidade de realizar. Isso é muito importante. Esta escultura de sorriso sereno não é criação de um artista individual, mas uma conquista de toda a sociedade — o resultado de um imenso e complexo processo de engenharia e logística. O granito da escultura veio de uma pedreira em Assuã, mais de 150 Km ao sul, rio Nilo acima, e foi extraído em um único bloco colossal. A estátua inteira devia pesar originalmente cerca de vinte toneladas. Em seguida, o bloco foi modelado em linhas gerais, antes de ser transportado, em trenós de madeira puxados por grandes equipas de operários, da pedreira para uma jangada que desceu o Nilo até Luxor. 

Rebocada do rio, a pedra foi submetida à fase mais refinada do trabalho. Uma enorme quantidade de mão de obra e organização foi necessária para erguer uma só estátua como esta, e toda a força de trabalho precisava ser treinada, administrada, coordenada e, se não era paga — muitos seriam escravos —, pelo menos alimentada e abrigada. Para produzir esta escultura, uma máquina burocrática alfabetizada e versada em números, além de muito bem oleada, era essencial — a mesma usada também para administrar o comércio internacional do Egito e organizar e equipar seus exércitos.

Ramsés sem dúvida tinha grande habilidade e alcançou êxitos reais, mas, como todos os mestres supremos da propaganda, na falta de êxito ele inventava. Não era nada excepcional em combate, mas conseguia mobilizar um exército considerável e abastecê-lo com armas e equipamento. Fosse qual fosse o resultado das batalhas, o discurso oficial era sempre o mesmo: os triunfos de Ramsés. 

Ele compreendia muito bem que ser visível era fundamental para o êxito da monarquia, por isso ergueu todas as estátuas colossais que pôde e com muita rapidez. Construiu templos para os deuses tradicionais do Egito, e esse tipo de atividade tem sido interpretado como exibicionista, mas é preciso situar tudo isso no contexto dos requisitos da monarquia. As pessoas necessitavam de um líder forte, e para elas líder forte era um rei que fazia campanhas no exterior em benefício do Egito e era bem visível dentro do Egito. Podemos até examinar o que pode ser tido como “manipulação favorável” dos registros da batalha de Kadesh, em seu quinto ano, que terminou em empate técnico. Ele voltou para o Egito e ordenou que o registro dessa batalha fosse inscrito em sete templos, apresentando-a como um êxito extraordinário e afirmando que ele sozinho tinha derrotado os hititas. Portanto, foi tudo manipulação desonesta com finalidade política, e ele entendeu perfeitamente como usá-la.

Esse rei não apenas convenceu o povo da sua grandeza: determinou também a imagem do Egito imperial para o mundo inteiro. Mais tarde, os europeus ficariam fascinados. Por volta de 1800, as agressivas potências rivais — na época franceses e britânicos — competiram entre si para ficar com a imagem de Ramsés. Os soldados de Napoleão tentaram remover a estátua em 1798, mas não conseguiram. Há um buraco do tamanho de uma bola de tênis aberto no tronco, pouco acima do peito direito, que segundo especialistas é resultado dessa tentativa. Em 1799, a estátua estava quebrada.



Ramsés II no Museu Britânico

Quando chegou à Inglaterra, era, de longe, a maior escultura egípcia que o público britânico já vira, o que dava uma ideia da escala colossal das realizações egípcias. Só a parte superior do corpo tem 2,5 metros de altura e pesa sete toneladas. Os faraós tinham compreendido o poder da escala, e com esse propósito faziam-se temer e ser reverenciados. 
Em 1816, o busto foi removido, de forma bastante apropriada, por um homem forte de circo que se tornara comerciante de antiguidades chamado Giovanni Battista Belzoni. Usando um sistema hidráulico especialmente projetado, Belzoni reuniu centenas de operários para arrastar o busto em cilindros de madeira até às margens do Nilo, quase o mesmo método usado antes para levá-lo até o Ramesseum. É uma poderosa demonstração dos feitos de Ramsés o facto de que transportar apenas metade da estátua foi considerado uma grande façanha técnica três mil anos depois. A carga imensa seguiu para o Cairo, depois para Alexandria, e por fim para Londres. Ao chegar lá, surpreendeu a todos, provocando uma revolução no modo como os europeus viam a história de sua cultura. O Ramsés do British Museum foi uma das primeiras obras a contestarem a noção tradicional de que a grande arte começara na Grécia.

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