segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A questão da Palestina no equilíbrio instável do Médio Oriente



O equilíbrio instável de forças políticas no Médio Oriente, depois da queda do Império Otomano, foi perturbado pelo impacto vulcânico da questão da Palestina. Os britânicos tinham planeado manter o seu domínio na região através de uma transição pacífica. Todos os Estados árabes seriam independentes; alguns ficariam ligados por tratado à Grã-Bretanha; os restantes reconheceriam a primazia efetiva da Grã-Bretanha, a única grande potência com força no terreno. 

A gestão da Palestina, administrada diretamente pela Grã-Bretanha sob mandato da Sociedade das Nações desde a Primeira Guerra Mundial, seria sempre difícil, quaisquer que fossem as circunstâncias. Conciliar a promessa de uma «pátria» judaica, na qual os judeus pudessem estabelecer-se, com os direitos dos árabes que já lá estavam, revelara-se uma tarefa bastante difícil. O aumento da afluência de judeus à Palestina, que fugiam da Europa Central devido à ascensão dos nazis na Alemanha na década de 1930, viria a revelar-se o maior problema para o plano inicial desenhado em 1920. Era impossível aplacar a indignação dos árabes da Palestina com a crescente migração judaica.

A dificuldade prática e embaraço político de fazer uma barragem aos refugiados judeus; a pressão diplomática dos Estados Unidos contra essa tentativa; e a dimensão e ferocidade da campanha terrorista travada por colonos judeus - destruíram qualquer hipótese de autoridade britânica. O resultado foi o pior de todos os cenários: um território ingovernável cujo controlo era disputado entre dois inimigos aparentemente inconciliáveis.

A divisão proposta pelas Nações Unidas não pôde ser implementada. A guerra que se seguiu entre judeus e árabes (palestinianos locais e os contingentes enviados pelos Estados árabes) resultou numa vitória judaica. O novo Estado de Israel tinha força suficiente para impor uma partilha territorial que lhes era mais favorável. Mas não tinha força suficiente para obrigar os Estados árabes a aceitar este resultado como condição permanente. As divisões étnicas, religiosas e sociais – um legado, em parte, do domínio otomano e europeu – estavam profundamente enraizadas. 

Os nacionalistas do Egito tinham pouco em comum com as outras nações árabes. Os egípcios menosprezavam os governantes hachemitas do Iraque e da Jordânia, considerando-os fantoches e arrivistas, e as suas pretensões à liderança do mundo árabe como absurdas e insolentes. Os reis hachemitas estavam igualmente convictos do seu direito histórico de encabeçar a causa árabe. A sua antiga ambição era um grande Estado hachemita que unisse a Síria (perdida para os franceses em 1920) e a Palestina ao Iraque e à Jordânia. A sua inimizade mais feroz, paga na mesma moeda, era para com a casa de Saud. Afinal, foi o monarca saudita que tomou os lugares santos de Meca e Medina aos seus xarifes e transformou o Reino do Hejaz numa província da futura Arábia «Saudita». Grande parte da rivalidade entre o Egito, os hachemitas e os sauditas concentrava-se na Síria, cujos conflitos religiosos e regionais a tornavam um terreno fértil para a influência externa.

O rei do Egito insistira em enviar um exército, para aumentar o seu prestígio interno e afirmar o lugar cimeiro do Egito entre os Estados árabes. Mas ele não conseguia mostrar quaisquer progressos nas negociações para a saída dos britânicos da sua enorme Zona do Canal, o símbolo visível do estatuto subalterno do Egito. Nem nas relações com os seus antigos rivais políticos. Como a diplomacia se revelava ineficaz, avançou-se para a ação direta. A luta contra os britânicos tornou-se cada vez mais violenta. As greves, os assassinatos e outros atos de terror tiravam partido da dependência britânica de mão de obra egípcia e do estado vulnerável das instalações do pessoal britânico. A retaliação e a vingança alastraram às principais cidades do Egito. Enquanto a sensação de ordem se desfazia, o rei planeava um golpe de estado para purgar o descontentamento no Exército. Mas antes que pudesse agir, o movimento dos «Oficiais Livres» assumiu o controlo do governo em julho de 1952 e obrigou-o a fugir para o exílio.

O novo regime empenhou-se em restaurar a ordem. Esmagou a Irmandade Muçulmana, um movimento islamita que gozava de amplo apoio popular. Aceitou a perda de influência egípcia no alto Nilo quando os britânicos prometeram a independência, como Estado separado, ao Sudão, rejeitando a exigência do Cairo para que se respeitasse a «unidade do vale do Nilo». Acima de tudo, conseguiu a anuência britânica para uma retirada da base da Zona do Canal através da concessão de um direito de retorno se a sua utilização fosse necessária para repelir um ataque externo (isto é, uma invasão soviética) à região do Médio Oriente. Os britânicos tinham chegado à conclusão de que, com a dissuasão nuclear que podiam exercer por ar, a base era redundante na sua forma existente, além de politicamente onerosa. O que provavelmente esperavam era que o novo regime de Nasser se concentrasse nas reformas internas. O Egito, pensavam, exerceria pouca influência no mundo árabe. Entretanto, eles reorganizariam o seu domínio em torno de uma aliança mais próxima com os Estados hachemitas e um novo pacto militar. A influência americana, que tinha sido útil para o acordo do Suez, estaria do seu lado. O Egito ficaria isolado e submisso. Mas a resposta de Nasser não veio a permitir que isso acontecesse. Na verdade, a sua espantosa revolta contra o «sistema» britânico foi o evento crucial da descolonização do Médio Oriente.

Nasser tinha todas as razões para desconfiar dos britânicos e conspirar para os afastar do Médio Oriente. O Sudão já não pertencia ao Egito. Havia grande animosidade contra Israel. O Ocidente árabe (o Mashreq) estava a ser vedado à influência egípcia e talvez até ao seu comércio. Sem mercados nem petróleo, Nasser enfrentava a estagnação interna e a crescente agitação social. Tornar-se-ia perigosamente dependente da ajuda económica do Ocidente. O seu regime era inexperiente. Nasser lançou um contra-ataque. Converteu-se ao pan-arabismo. Com aprovação saudita, apoiou a fação anti iraquiana na política síria. Incentivou a Jordânia a opor-se ao pacto. Depois, em setembro de 1955, deu-se um golpe espetacular. Nasser rompeu o embargo ao armamento imposto pelo Ocidente e negociou um fornecimento do bloco soviético. O Egito seria então uma verdadeira potência militar. No início de 1956 já tinha declarado uma guerra política aberta à influência da Grã-Bretanha no Médio Oriente. O nível crescente de violência ao longo das fronteiras com Israel serviu-lhe de vantagem. Com o que pareceu uma facilidade espantosa, ele tomou a iniciativa na política regional. Transformou o Egito no paladino da causa árabe e o sentimento panárabe numa força dinâmica. A reação em Londres foi de pânico e ira.

A Crise do Suez em 1956 resultou diretamente deste confronto. O fator decisivo foi o bloqueio em Washington de um empréstimo para pagar a Grande Barragem de Assuão, no Egito. Nasser expropriou o canal de Suez, que pertencia na altura à Grã-Bretanha e à França. Parecia um gesto de bravata, mas talvez Nasser adivinhasse que os britânicos teriam dificuldade em derrotá-lo. Já não tinham tropas na antiga base do Suez. Um ataque declarado enfureceria toda a opinião árabe. A pressão internacional (através das Nações Unidas) provavelmente não lhes traria o que realmente desejavam: a derrota política de Nasser. Este pode também ter percebido que a hostilidade implacável de Londres não era plenamente partilhada em Washington. Com efeito, a resposta, quando surgiu, revelou a fraqueza política da Grã-Bretanha. Mal dissimulada como uma intervenção entre as forças do Egito e de Israel (que invadiu a península do Sinai), a ocupação anglo-francesa do canal de Suez pretendia humilhar Nasser e garantir a sua queda. A explicação para a sobrevivência de Nasser era o enorme apoio da opinião patriótica árabe ao seu ato de desafio, que convenceu o presidente Eisenhower de que permitir uma vitória dos britânicos reforçaria o sentimento árabe contra o Ocidente, abriria a porta à influência soviética e prejudicaria os interesses americanos. Ironicamente, a fragilidade económica que ajudara a incitar os britânicos à sua luta com Nasser – o receio de que a influência deste prejudicasse as suas fontes vitais de petróleo – revelou-se então decisiva. Sem a anuência de Washington, eles enfrentariam o colapso financeiro. Os britânicos retiraram-se, humilhados. Nasser ficou com o canal. Não foi ele que caiu na armadilha política mas o primeiro-ministro britânico, Anthony Eden.

 Menos de dois anos depois da sua vitória no Suez, Nasser atraiu a Síria para uma união política, formando a República Árabe Unida. O mesmo ano (1958) assistiu ao fim do domínio hachemita no Iraque. Nasser tinha ainda de lidar com o poder americano (os Estados Unidos e a Grã-Bretanha intervieram em conjunto para impedir o derrube dos governos da Jordânia e do Líbano por fações pró-Nasser). Prometia-se um fim para a injustiça palestiniana, através do esforço coletivo de uma nação revitalizada. A solidariedade panárabe sob liderança egípcia (o novo regime iraquiano de tendências comunistas fora cuidadosamente isolado) abriu novas perspetivas de esperança. Podia negociar melhores condições com as potências estrangeiras. Podia usar a arma do petróleo (a produção de petróleo aumentou rapidamente nos anos 50). Podia até ser capaz de resolver a questão da Palestina.

Os britânicos permaneceram no Golfo e apoiaram os governantes locais contra o desafio político de Nasser. A elite árabe instruída e as suas ideias deslocavam-se facilmente entre eles. As estruturas do Estado eram fracas e podiam ser facilmente penetradas pela influência externa. Em 1960 isso já tinha começado a mudar. Novas elites locais começaram a gerir o aparelho do Estado. A união com a Síria desfez-se passados três anos. O Estado de Israel revelou-se muito mais resistente do que se esperaria, e o apoio que recebia dos americanos não mostrava qualquer sinal de diminuir: no início dos anos 60 dir-se-ia até que estava a aumentar. 

Uma ironia: a riqueza petrolífera da região estava por baixo do solo dos Estados menos inclinados a seguir o exemplo ideológico de Cairo. O desastre da Guerra dos Seis Dias em 1967, travada entre Israel e o Egito, Jordânia e Síria, foi uma lembrança dolorosa de que a riqueza mineral não era equivalente a poder, e que os petrodólares não significavam poderio industrial. Em 1970, o ano da morte prematura de Nasser, a promessa da liberdade já se havia transformado no problema árabe. Os três maiores Estados no Médio Oriente eram o Egito, a Turquia e o Irão. No Egito, Anwar Sadat, fez regressar o país a um entendimento com o Ocidente. No final dos anos 70 o Egito era já o segundo maior beneficiário (depois de Israel) da ajuda americana.

O enorme avanço do poder soviético no final da guerra e a confissão pública de Estaline dos seus planos para os Estreitos – «É impossível aceitar uma situação em que Turquia tem uma mão na traqueia da Rússia», declarou ele em Ialta – empurraram Ancara decididamente para o campo ocidental. Ao abrigo da Doutrina Truman (1947), a Turquia foi incluída na esfera da ajuda e proteção americanas, ainda que indefinidas na altura. Em 1955 já se havia tornado membro pleno da NATO. De uma forma que Kemal Atatürk dificilmente podia ter imaginado, o padrão do conflito da Guerra Fria abrira a porta para a aceitação da Turquia como parte do Ocidente. No final do século a sua pretensão a fazer parte a União Europeia era já amplamente reconhecida. Os conflitos com a Grécia e em torno do futuro do Chipre (que a Turquia invadiu e dividiu nos anos 70) dificultaram as relações. Dentro da própria Turquia, a questão fundamental durante grande parte do meio século depois de 1945 foi saber até que ponto o grandioso projeto de Atatürk de um forte Estado burocrático, com uma base industrial moderna e uma cultura secular, era compatível com a democracia representativa (a Turquia de Atatürk fora um Estado de partido único) e uma economia aberta (não dominada pelo Estado).

Entretanto em África começou a luta pela independência dos povos africanos sob o poder colonial europeu. Como no Médio Oriente ou no resto da Ásia, a descolonização em África não trouxe nada de bom. Os novos líderes africanos herdaram as fraquezas dos seus antecessores coloniais – cujo lugar ocuparam depois de uma brevíssima transição. A etnia regional ou local era muito mais forte do que o nacionalismo. Construir identidades nacionais sem vernáculos comuns representava um enorme desafio. O legado tribal do domínio colonial estava profundamente arraigado: com efeito, em muitas zonas de África, criar novas formas de etnicidade tribal foi o meio normal de adaptação à dimensão mais ampla da vida económica e social. Entretanto, a pressão para aumentar o papel do Estado era enorme, quer nos serviços sociais quer no desenvolvimento económico. A necessidade imperativa de qualquer novo regime era encontrar fontes externas de ajuda financeira e militar, antes que perdesse a sua pretensão à lealdade dos seus seguidores. Era um contexto perfeito para as maiores potências mundiais aumentarem a sua influência num novo modelo pós-colonial. Se tivessem motivos para o fazer, os meios para construir novos impérios estavam à sua disposição.

O caso do Irão foi o mais intrigante. O Irão fora ocupado por forças soviéticas e britânicas em 1941, em parte para travar as aproximações de Reza Xá à Alemanha e sobretudo para garantir o livre-trânsito dos abastecimentos da Grã-Bretanha para uma Rússia cercada de inimigos. Reza Xá abdicou e foi para o exílio. O resultado foi o desmoronamento do seu Estado autoritário. Notáveis ressentidos (a poderosa classe latifundiária), movimentos radicais nas cidades (como o Partido Tudeh), líderes tribais (dos Qashgai e Bakhtiari) e minorias étnicas (curdos, árabes e azerbaijanos) contestaram a autoridade do novo xá e competiram pelo favor das potências ocupantes. No final da guerra, esta instabilidade aumentou. O Exército Vermelho permaneceu no Azerbaijão iraniano até 1946. Os efeitos da inflação do tempo da guerra arruinaram a economia. Os apoiantes do xá competiam com os radicais e os notáveis pelo controlo do Majlis, ou parlamento. O governo enfrentava a resistência crescente de grupos tribais, provinciais e étnicos. Em 1949, contudo, o xá já estava perto de reafirmar o seu controlo, talvez porque a alternativa fosse uma maior fragmentação do Estado iraniano e um ciclo interminável de agitação social.

Mas antes que isso pudesse acontecer, eclodiu uma grande crise. Para restabelecer a sua posição, o xá quisera aumentar as receitas da principal fonte de riqueza iraniana: os vastos campos petrolíferos no Sudoeste do país, controlados pela britânica Anglo-Iranian Oil Company (a BP). Em julho de 1949, o chamado «acordo suplementar» propôs aumentar os direitos que a companhia pagava de 15% para 20%, com outros aumentos programados. Mas este acordo deparou com dois grandes obstáculos. O primeiro foi o receio entre os adversários do regime de que esta nova riqueza consolidaria o restabelecimento do poder do xá segundo os padrões anteriores à guerra. O segundo foi a oposição muito mais ampla da opinião iraniana à continuação do controlo estrangeiro de um recurso fundamental do Irão e à influência que a companhia supostamente exercia. Entretanto, enquanto a questão era debatida no Majlis, ficou-se a saber que a Aramco, a Arab-American Oil Company, oferecera uma participação de 50% nos lucros ao seu governo anfitrião na Arábia Saudita. Enquanto prosseguiam as negociações com a Anglo-Iranian, a temperatura política subiu e em março de 1951 o Majlis aprovou uma lei para nacionalizar a companhia. Poucos dias depois Mohamed Mossadeq, um antigo adversário do xá e do seu pai, tomava posse como primeiro-ministro.

O resultado foi um impasse. A proposta britânica de uma intervenção armada foi vetada em Washington, onde a abordagem de Londres era considerada imprudente e retrógrada. O grande contingente britânico foi retirado dos campos e da refinaria de Abadan. As grandes companhias petrolíferas, temendo que outros pudessem seguir o exemplo iraniano, impuseram um boicote internacional ao petróleo iraniano, que se revelou bastante eficaz. Mossadeq parecia à beira de conseguir uma revolução constitucional, mas a sua base de apoio – nunca muito coesa – começou então a desagregar-se. No Ocidente ele era visto como um perigoso demagogo, abrindo caminho para o domínio comunista. Em agosto de 1953 Mossadeq foi derrubado por um golpe militar, ajudado e financiado em parte por agentes americanos com algum apoio britânico, e substituído por um primeiro-ministro fiel ao xá. Segundo um novo acordo petrolífero, o petróleo do Irão seria vendido através de um cartel de companhias britânicas e americanas. As receitas do petróleo do xá aumentaram dez vezes entre 1954-1955 e 1960-1961. E quinze vezes em 1973-1974. O mesmo aconteceu ao seu poder militar e político. No início dos anos 60, já estava firmemente estabelecido como aliado importante do Ocidente, cujo valor como baluarte contra o avanço dos soviéticos no Sul era afetado periodicamente pelo receio de que a sua ambição de se tornar senhor do Golfo provocasse um conflito com os Estados árabes da região.



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