quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Príncipe Karim Al-Husseini


Príncipe Karim Al-Husseini [13 de dezembro de 1936], conhecido como o Aga Khan IV desde a morte do avô Aga Khan III, em 1957, é desde essa data o 49º e atual imã Nizari Isma'ilis. Afirma descendência direta do profeta Maomé através de Ali, primo e genro de Maomé, considerado um imã. Aga Khan IV também é conhecido pelo título religioso Mawlānā Hazar Imam pelos seus seguidores Isma'ili.

Aga Khan é um magnata de negócios, riquíssimo, com cidadania britânica e portuguesa, bem como proprietário e criador de cavalos de corrida. A Forbes descreve-o como um dos quinze membros da realeza mais ricos do mundo. É o fundador e presidente da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, uma das maiores redes privadas de desenvolvimento do mundo. Desde 1957 que Aga Khan se envolve em complexas mudanças políticas e económicas em vários países, como no Tajiquistão, da antiga União Soviética, Afeganistão e no Paquistão. Tornou-se o primeiro líder religioso a discursar na Sessão Conjunta do Parlamento do Canadá, a 27 de fevereiro de 2014.




A Fundação Aga Khan tem um centro em Lisboa, nas Laranjeiras, há 20 anos. E recentemente Lisboa também passou a ter a sede global da comunidade ismaili. E aqui celebraram, os ismaelitas (ou ismailis), o jubileu de Diamante da designação do seu líder espiritual. Aliás, o imã, passou a ter na capital portuguesa uma residência oficial, estatuto diplomático e até um regime fiscal especial acordado com o Estado português.




Em setembro de 2013 numa cerimónia no Castelo de São Jorge, em Lisboa, foi anunciado o Prémio Aga Khan para a arquitetura, distinguindo o restauro do Centro Histórico de Birzeit, na Cisjordânia. A cerimónia foi presidida pelo atual Aga Khan, Shah Karim Al Hussaini, o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa. A capital portuguesa foi escolhida para o anúncio deste prémio trienal, no valor de um milhão de dólares (770 mil euros), para projetos que marquem novos padrões de excelência na arquitetura, planeamento, preservação de património histórico e arquitetura paisagística. Estabelecido pela Rede Aga Khan para o Desenvolvimento em 1977, o prémio visa, em especial, «identificar e promover conceitos de construção que correspondam de forma eficaz às necessidades e aspirações de comunidades com significativa presença muçulmana».

A preservação de locais de oásis sagrados e coletivos em Guelmin (Marrocos), o restauro do Forte de Thula (Iémen), a reabilitação do Forte de Nagaur (Índia), a reabilitação do bazar de Tabriz (Irão), a preservação do Mbaru Niang (Indonésia) e a habitação pós-tsunami (Sri Lanka) contavam-se entre os vinte selecionados. Entre os finalistas ficaram também a reconstrução do campo de refugiados de Nahr el-Bared (Líbano), o apartamento n.º 1 (Irão), o Instituto de Filme e Animação Kantana (Tailândia), o cemitério islâmico (Áustria), a escola primária Maria Grazia Cutuli (Afeganistão), o Liceu Francês Charles De Gaulle (Síria) e a escola primária Umubando (Ruanda).

Em 12 de Novembro de 2019 - Aga Khan, Aga Khan juntou-se a mais de 30 líderes mundiais para a sessão de abertura do segundo Fórum da Paz de Paris. Iniciado pelo Presidente de França Emmanuel Macron, o Fórum teve por base o princípio de que a cooperação internacional é fundamental no combate aos desafios globais e na salvaguarda de uma paz duradoura. O Fórum realizou-se no 100.º aniversário do Armistício, que assinalou o fim da Primeira Guerra Mundial.



Os ismaelitas são uma comunidade xiita, e a sua teologia é derivada dos ensinamentos dos imãs xiitas – 'Ali ibn Abi Talib, Muhammad al-Baqir e Ja'far al-Sadiq. De acordo com a teologia xiita ismaelita primitiva, Deus ou Alá é absolutamente transcendente e único, uma teologia segundo a qual a Essência de Deus está além de todos os nomes e atributos. A primeira criação de Deus é uma entidade espiritual (Ruhani) ou luz (nur) chamada Intelecto ('Aql), a Luz de Muhammad (nur Muhammad) ou a Luz de Ali. Os filósofos ismaelitas desenvolveram as ideias usando estruturas neoplatónicas e identificaram o Intelecto ('Aql) ou Luz do Imam com o Intelecto Universal (Nous) de Plotino. Da mesma forma, a alma humana do Imam – reverenciada como pura com base no Alcorão 33:33 – é considerada o espelho reflexivo do Intelecto Universal.

No islamismo, Zahir (الظاهر) é um dos 99 Nomes de Deus (Asma'ul Husna), que são os atributos divinos mencionados no Alcorão e na tradição islâmica. O termo "Zahir" pode ser traduzido como "O Manifesto", "O Evidente" ou "Aquele que é visível". Ele refere-se a Deus como Aquele que é evidente em Suas criações e sinais no mundo, mas cuja essência transcende a compreensão humana. Esse nome reflete a ideia de que Deus se manifesta em tudo o que existe, tornando-se visível aos que contemplam o universo com atenção. No entanto, apesar dessa manifestação, Deus continua oculto em Sua verdadeira natureza (referido pelo nome oposto, Batin, "O Oculto"). Assim, Zahir e Batin juntos expressam a unidade e o equilíbrio entre os aspetos visíveis e invisíveis de Deus. A noção de Zahir também possui implicações filosóficas e espirituais dentro do islamismo, especialmente no sufismo, onde há uma busca pela compreensão, tanto o aspeto exterior (zahir) quanto o interior (batin) da existência como reflexos da verdade divina.

O islamismo xiita desenvolveu-se em duas direções. Uma delas agrupa os metafóricos: ismaelitas, alevitas, bektashi, alianos e alauítas - concentrando-se no caminho místico e na natureza de Deus, junto com o "Imam do Tempo". São Doze Imames, ou guias, e uma luz para Deus. O ismaelismo cresceu para se tornar o maior ramo do Islã xiita, culminando como um poder político com o califado fatímida nos séculos X a XII. Os ismaelitas acreditam na unicidade de Deus, bem como no encerramento da revelação divina com Maomé - "o último Profeta e Mensageiro de Deus para toda a humanidade". 

Ora, a maior seita dos ismaelitas são os Nizaris, que reconhecem Aga Khan IV como o 49º Imam hereditário, enquanto outros grupos são conhecidos como o ramo Tayyibi. A comunidade com a maior porcentagem de ismaelitas é Gorno-Badakhshan. Os ismaelitas podem ser encontrados no Afeganistão, Índia, Paquistão, Iémen, Líbano, Malásia, Síria, Irão, Arábia Saudita, Jordânia, Iraque, Kuwait, África Oriental, Angola, Bangladesh e África do Sul. Nos últimos anos emigraram para a Europa, Rússia, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Trinidad e Tobago.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

A exaustão das imagens televisivas de guerra e catástrofes





Não faz sentido, porque é prejudicial, as televisões hoje em dia manterem ao lado do comentador a repetição de imagens de guerra ou catástrofes. A repetição de imagens impactantes, como contentores a arder, prédios destruídos, crianças a fugir às bombas, é prejudicial. Essa abordagem não só exacerba o medo e a ansiedade nas audiências, mas também pode distorcer a percepção da realidade, criando uma sensação de crise constante. Além disso, a exploração sensacionalista de tragédias pode desumanizar os envolvidos e desviar a atenção das questões subjacentes que precisam ser abordadas. A responsabilidade dos editores é, em parte, fornecer informações de maneira equilibrada e reflexiva, em vez de simplesmente amplificar o choque visual.

Os editores de televisão muitas vezes insistem em usar métodos sensacionalistas por várias razões, em que a atração por audiências é um espécie de alfa e ómega da bolha mediática - maiores índices de audiência e, consequentemente, mais receitas publicitárias. É um ambiente altamente competitivo. Conteúdos emocionais tendem a gerar mais engajamento nas redes sociais, o que aumenta a visibilidade e o alcance das notícias com a repetição de imagens chocantes acompanhadas de narrativas simplificadas. 
Esses fatores muitas vezes se sobrepõem, criando um ciclo em que a busca por cliques e visualizações prevalece sobre a responsabilidade jornalística.

E não há maneira de os fazer ver que estão errados? Os espectadores podiam expressar suas opiniões, mas as respostas podem ser surpreendentes. Veja-se com as pessoas se comportam nas redes sociais em que vem ao de cima o pior lado da natureza humana. Por isso, caberia aos reguladores, com ou sem comissões de ética, tratar disso. Incentivar o consumo de fontes de notícias que priorizam a ética e a responsabilidade, destacando sua importância e relevância no ecossistema informativo. Organizar ou apoiar campanhas que enfatizem a importância da cobertura jornalística responsável e os impactos negativos do sensacionalismo, envolvendo especialistas e defensores da ética nos órgãos de comunicação social. Embora a mudança não ocorra da noite para o dia, uma combinação dessas abordagens pode ajudar a criar uma cultura de responsabilidade e reflexão.

Há uma pressão crescente dentro das redações, especialmente em meios televisivos, para capturar sound bites e realizar um escrutínio imediato e incisivo sobre os agentes políticos. Esse foco nos sound bites é impulsionado, em grande parte, pela necessidade de produzir conteúdo que seja facilmente consumível e compartilhável nas redes sociais e nas plataformas digitais. Essa prática muitas vezes favorece declarações rápidas e impactantes, mas que nem sempre refletem o contexto ou a profundidade das questões discutidas. Como resultado, o debate público pode tornar-se mais superficial, com maior ênfase em momentos polémicos ou controversos, em vez de uma análise cuidadosa das políticas e ideias. Essa abordagem também pode encorajar os próprios políticos a adotarem uma postura mais performativa, priorizando frases de efeito que gerem impacto imediato, mas que nem sempre contribuem para um diálogo construtivo.

A percepção de um predomínio da esquerda na profissão jornalística é um tema debatido amplamente, especialmente no Ocidente. Muitos críticos argumentam que os jornalistas tendem a ter inclinações políticas mais à esquerda, o que, segundo eles, se reflete na cobertura de notícias e nas narrativas que prevalecem nos meios de comunicação. Essa visão é reforçada por alguns estudos que mostram que a maioria dos jornalistas se identifica como liberal ou progressista. Esse viés percebido pode levar a críticas de que os editoriais não representam adequadamente uma gama diversificada de opiniões políticas, contribuindo para a polarização e desconfiança entre diferentes segmentos da sociedade. Em um ambiente em que a imparcialidade e a objetividade são fundamentais para a credibilidade do jornalismo, a impressão de que há uma agenda política pode prejudicar a confiança do público nos meios de comunicação.




Marta Vidal é jornalista freelancer e trabalhando em ONG, anteriormente baseada no Médio Oriente, escreve sobre justiça social e direitos humanos e está mais interessada em contar histórias que construam empatia, e promovam o ativismo. Ora, no passado dia 3 de janeiro Marta Vidal foi distinguida com o Prémio Gazeta na categoria de Imprensa, precisamente pela reportagem “A liberdade, lá em cima: os pássaros de Gaza”, publicada a 1 de julho de 2023. Na cerimónia presidida pelo Presidente da República, Marta Vidal, depois de no seu discurso ter acusado o Presidente da República e o Presidente da Câmara de Lisboa que estavam na primeira fila à sua frente, de cumplicidade com Israel, atingiu o pináculo da perfeição, quando o Presidente a ia abraçar depois da entrega do objeto simbólico, recusando o abraço inclinando-se para trás e estendo ao mesmo tempo a mão direita ao Presidente para um aperto de mão.

Depois de concluir a licenciatura em jornalismo na Universidade Nova de Lisboa, onde começou a estudar em 2012, Marta Vidal estudou na Universidade de Leiden, onde obteve a especialização em Estudos do Médio Oriente. Os seus artigos que abordam questões como direitos humanos e justiça social e ambiental, foram publicados por vários meios de comunicação, nomeadamente: Público, Expresso, The Guardian, Al Jazeera, The Washington Post, BBC, entre outros.

Esse debate é complexo, pois envolve questões de representação, responsabilidade social e a própria natureza do jornalismo como um espaço para o diálogo democrático. O desafio é encontrar um equilíbrio entre a defesa de causas importantes e a manutenção de padrões éticos e de objetividade na cobertura jornalística.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Ilan Pappe e o revisionismo histórico



Hoje está a ser difícil ler com sobriedade crítica os novos historiadores revisionistas por estarem comprometidos cada vez mais com "as causas". A ligação entre certos setores da academia dos departamentos das humanidades e sociologia, e as causas políticas, pode gerar uma percepção de comprometimento ideológico em algumas áreas de estudo. Em especial, novos historiadores frequentemente revisitam o passado focados em dar voz a grupos historicamente marginalizados, e essa abordagem pode ser percebida como uma inclinação para um determinado quadrante político. Ao mesmo tempo, isso pode distanciar algumas interpretações de uma visão mais neutra e contextualizada. Ainda que haja um valor em revisitar o passado sob novas lentes, o desafio é encontrar um equilíbrio que permita estudar a história com rigor, evitando que ela se torne instrumento de causas contemporâneas.

Por exemplo, Ilan Pappe segue uma linha de pensamento ao ponto de desvalorizar o Holocausto. É
 um exemplo de historiador que, sendo natural de Haifa, Israel, nascido em 1954, participa no ativismo a favor da causa palestiniana no conflito com Israel, como se sentisse necessidade de expiar os pecados do seu povo. Adota, portanto, uma abordagem no mínimo controversa. Sua perspectiva, associada ao que ele chama de "novo revisionismo histórico", procura questionar narrativas estabelecidas sobre a criação de Israel e o conflito com os palestinos. Nos livros que tem publicado, tende a enfatizar os aspectos da violência da ocupação dos colonos israelitas na Cisjordânia, e a deslocação dos palestinos como refugiados nos países circunvizinhos. Em contrapartida, minimiza ou reinterpreta questões como o Holocausto, que foi um fator crucial na fundação do Estado de Israel e na formação da sua identidade coletiva.


Os pais de Ilan Pappe tiveram de fugir aos nazis porque eram judeus alemães. Ele estudou História na Universidade Hebraica de Jerusalém e fez o doutoramento na Universidade de Oxford, onde se especializou em História do Médio Oriente, vindo a tornar-se internacionalmente reconhecido pelo seu trabalho acerca do conflito entre Israel e Palestina. Atualmente, é professor na Universidade de Exeter, no Reino Unido, onde dirige o Centro Europeu de Estudos Palestinianos. Pappe é uma das principais figuras do movimento israelita de “Novos Historiadores”, que desafiam a narrativa tradicional sobre a fundação do Estado de Israel e os eventos de 1948, conhecidos como a Nakba. 

A crítica a Pappe e a outros historiadores com abordagens semelhantes é justamente que, ao minimizar a importância do Holocausto e a perseguição histórica sofrida pelos judeus, eles acabam desvalorizando elementos fundamentais para entender as razões que levaram à criação de Israel como um refúgio seguro. Ao focar em uma narrativa que prioriza os direitos dos palestinos, muitos críticos argumentam que esse tipo de historiografia acaba criando uma visão parcial, deixando de lado o contexto histórico mais amplo e os traumas de perseguição que levaram à busca pela independência judaica.

O que é ser judeu hoje? A identidade judaica moderna transcende as noções de linhagem ou descendência genética. Muitos judeus contemporâneos se identificam com essa herança cultural e religiosa de maneira profundamente pessoal, independentemente de uma ligação biológica direta. A identidade judaica envolve um sentido de continuidade histórica, onde memórias coletivas, tradições e valores culturais são fundamentais. Por isso, o pertencimento à comunidade judaica pode ser mais uma questão de escolha, vivência e comprometimento do que de uma "prova" genética. Essa construção identitária reflete a resiliência e a adaptabilidade do judaísmo ao longo dos séculos, o que permite que ele sobreviva e prospere em diferentes contextos históricos, mesmo após perseguições e dispersões. A importância dada a essa identidade coletiva tem, portanto, um peso muito maior que qualquer validação externa sobre ancestralidade biológica. É também uma forma de resposta às ameaças históricas de assimilação ou apagamento cultural, um ponto que Ilan Pappe e outros revisionistas às vezes não abordam com a devida profundidade.

E na verdade, nos dias de hoje, no Próximo e Médio Oriente, o herói é Saladino, não é Jesus Cristo, um judeu até aos ossos. Como é que figuras históricas emblemáticas são percebidas e valorizadas de forma diferente conforme as culturas e os contextos regionais? No mundo árabe e no Norte da África, Saladino (ou Salah ad-Din) é realmente venerado como um herói. Ele é lembrado pela liderança durante as Cruzadas, pela sua vitória sobre os cruzados e pela reconquista de Jerusalém, mas também pela reputação de ser um líder justo, magnânimo e, paradoxalmente, admirado até mesmo por seus inimigos europeus. Essa figura de Saladino é vista como um símbolo de resistência, orgulho e dignidade, enquanto Jesus Cristo, mesmo tendo origens judaicas e raízes na Palestina, não ocupa o mesmo espaço heroico e cultural. Isso ocorre porque, para a maioria muçulmana na região, Jesus é considerado um profeta, mas não a figura central da fé, e seu papel não está associado à luta política ou territorial que caracteriza a história de Saladino.

Jesus, na tradição cristã, representa uma mensagem espiritual de sacrifício e amor universal, enquanto Saladino é uma figura histórica diretamente ligada à identidade cultural e política islâmica. Assim, a figura de Jesus, mesmo sendo parte da história judaica e amplamente reverenciada no Cristianismo, não assume o mesmo papel inspirador ou heroico que Saladino ocupa no imaginário popular do Médio Oriente contemporâneo.

Como se costuma dizer, santos da terra não fazem milagres. Enquanto na China, hoje cristãos já são cem milhões e ainda vai crescer. Se o homem não é um bicho estranho, não sei o que é estranho. Muitas vezes as figuras locais ou tradicionais não são tão valorizadas quanto aquelas que vêm de fora ou se tornam universais. A expansão do Cristianismo na China é um exemplo interessante disso. Embora a China tenha profundas tradições espirituais e filosóficas, como o confucionismo, o taoismo e o budismo, milhões de chineses estão-se voltando para uma religião que historicamente lhes era estranha. Esse crescimento do Cristianismo na China, com cerca de cem milhões de adeptos e a expectativa de um aumento futuro, é um fenómeno marcante. Ele nos lembra que o ser humano, de facto, é atraído por ideias e crenças que transcendem a própria cultura. O ser humano tem uma perene necessidade de novos significados, ou promessas de esperança. Essa busca constante pelo transcendente, pela verdade ou pela renovação espiritual parece algo essencialmente humano e comprova o quanto o homem é "um bicho estranho". É um aspecto que o torna, ao mesmo tempo, imprevisível e universal em sua busca por algo além de si mesmo.

domingo, 5 de janeiro de 2025

O que é doença? O que é saúde?




Quando falamos de saúde e doença, os ingleses são muito mais completos nisso. Diferenciam três termos: disease; illness; sickness.
Disease – é o termo que os médicos utilizam no seu dia-a-dia, e quando falam entre si de
"heart disease" ou "infectious disease". Tratam puramente da patologia biológica.
Illness – é um termo que é utilizado para referir o que as pessoas dizem quando se sentem doentes, no seu sentido subjetivo, de estarem doentes. Envolve o paciente que se sente como doente, que é como percebe a sua condição de saúde. É um termo mais comum em conversas informais e sociais. Por exemplo, "she has been struggling with a long illness" (Ela tem lutado contra uma longa enfermidade).
Sickness – É usado de maneira ainda mais genérica, por exemplo, quando se trata de organização dos serviços de saúde ou políticas de saúde. É, portanto, o termo mais genérico e abrangente, metendo tudo o que tem a ver com saúde, desde a prevenção das doenças até à qualidade de vida e bem-estar social. Vai desde o "travel sickness" até ao "he called in sick". Em suma, é um conceito muito genérico e impreciso de doença e saúde.

Assim, o termo mais adequado para se referir ao Serviço Nacional de Saúde - National Health Service, no Reino Unido - seria disease, pois este está associado ao diagnóstico e tratamento de condições médicas objetivas e à gestão da saúde pública. Disease reflete o foco técnico e clínico do sistema de saúde, que lida com doenças específicas e patologias. O SNS está estruturado para prevenir, diagnosticar e tratar doenças (diseases), além de trabalhar os dados epidemiológicos e intervenções médicas. Por outro lado, illness e sickness poderiam ser usados em contextos mais subjetivos ou gerais - quando se discute a experiência pessoal dos pacientes quando falam, por exemplo, aos órgãos de comunicação social, ou nas redes sociais. Em linguagem mais coloquial, para abordar de forma genérica os serviços prestados na comunidade.

Hoje já circulam nos debates mais críticas pertinentes, e cada vez mais ponderadas acerca da ruína dos Serviços e Sistemas Nacionais de Saúde. Não só por má gestão, mas porque a deriva tecnológica e a obsessão pela imortalidade por parte das sociedades europeias que têm beneficiado de bons sistemas de saúde, muitos deles quase gratuitos. O tempo de prometer tudo e mais alguma coisa acabou porque se abusou da condição de "illness", usada em excesso e por tudo e por nada. Ou seja, a experiência subjetiva e a percepção pessoal que as pessoas têm tido do direito à saúde, que tem levado a uma sobrecarga do sistema, não será mais comportável. A ambição por cada vez mais e melhor é infinita. Mas os recursos financeiros, técnicos e humanos são finitos.

Os Serviços Nacionais de Saúde (SNS) foram originalmente estruturados para lidar com diseases. Com o passar do tempo, houve uma expansão significativa para atender também à illness, isto é, a queixas individuais que nem sempre têm uma base objetiva ou médica clara. Essa mudança refletiu uma sociedade que almejou valorizar mais a qualidade de vida e o bem-estar subjetivo, do que cuidar pela sustentabilidade do sistema. Isso gerou procuras excessivas e desnecessárias que sobrecarregou os serviços públicos de saúde - consultas frequentes, exames desnecessários e tratamentos para condições não críticas com mero propósito placebo. Os custos para tratar questões subjetivas tornaram-se demasiado elevados para proveitos em saúde muito desprezíveis. 

Para além disso, gerou-se um certo tipo de injustiça social por causa do desvio de recursos. Recursos que poderiam ser alocados às condições graves, as diseases, acabaram por ser usados para tratar perceções e desconfortos, as illness. E assim se gerou uma sociedade de dependentes do SNS, que é o mesmo que dizer, do Estado. As pessoas iludiram-se por uma mentalidade de dependência, em vez de se tornarem mais autónomos através de uma boa educação para a saúde. Os cuidados de saúde gratuitos, praticamente sem moderação, atendendo a todas as formas indiscriminadas de descontentamento, tornaram-se insustentáveis. É por isso que não me choca que as pessoas com esse tipo de questões menores de saúde sejam encaminhadas para os serviços privados. Na certeza, porém, de não ser onerado pelo erário público. O que deve ficar a cargo do erário público é a prevenção musculada com intervenções na comunidade. E não me choca que sejam aproveitadas as novas tecnologias e a inteligência artificial como instrumentos de otimização das triagens.

A "medicalização do bem-estar" é por si só uma doença das sociedades de consumo abundante. Uma tendência que precisa ser combatida. De outro modo, como já está a acontecer há muito, compromete o papel do Estado na sua função de prover pela saúde e bem-estar do coletivo. Inevitavelmente, as pessoas vão ter de sentir que não é viável a desoneração para tudo e mais um "par de botas”. Especialmente em questões que ultrapassam as necessidades médicas essenciais. A ideia de "saúde gratuita para todos, em qualquer circunstância" é nobre, mas insustentável quando aplicada a todos os níveis de queixas, incluindo as mais triviais ou subjetivas. Isso cria a perceção de que o SNS é um recurso ilimitado, incentivando o uso excessivo e, muitas vezes, desnecessário. Será necessário, isso sim, um esforço para educar a sociedade sobre os limites do sistema público, promovendo a ideia de que nem tudo precisa ser tratado por médicos, ou melhor, pelo SNS.

Isso exige a normalização de práticas como: copagamento em casos não críticos; uso de recursos digitais, como triagens por IA; maior responsabilidade individual pela saúde; e aceitação de que ser um bom humano implica ser tolerante, resiliente, e porque não estoico, face às agruras da vida. A tendência moderna de tentar eliminar todo o tipo de sofrimento – físico, mental ou emocional – através do sistema de saúde é insustentável. Faz parte da Educação Cívica uma abordagem mais realista, que passa pelo reconhecimento que nem todos os problemas são de saúde resolúveis por intervenções médicas. E que o desconforto faz parte da condição humana.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Assim como nos anos 1930


Vemos o crescimento de movimentos nacionalistas, autoritários e populistas, alimentados por crises económicas, desigualdades e descontentamento popular. O desprezo por instituições democráticas e pela imprensa livre lembra a erosão das liberdades que precedeu regimes como o nazismo e o fascismo. O crash de 1929 gerou uma década de instabilidade económica global, criando terreno fértil para líderes que prometeram "grandeza" e soluções fáceis. Hoje, apesar de avanços tecnológicos, a concentração de riqueza e os desequilíbrios globais fomentam ressentimento e instabilidade, amplificados pela Guerra da Ucrânia e de Gaza. 

Na década de 1930, potências como a Alemanha e o Japão desafiaram a ordem global estabelecida após a Primeira Guerra Mundial. Hoje, vemos a China e a Rússia buscando reformular a ordem mundial, enquanto a União Europeia enfrenta divisões internas. Antes da Segunda Guerra Mundial, a Liga das Nações era uma espécie de corpo em estado vegetativo. Hoje a ONU vai pelo mesmo caminho, mostrando todo o tipo de limitações, enquanto as tensões militares crescem em várias frentes. E as pessoas preferem ignorar os sinais de perigo iminente. Isso não é incomum, e há razões psicológicas e sociais para isso.

Muitos preferem confortar-se com ilusões do que encarar realidades desconfortáveis. A educação histórica é muitas vezes superficial, e as lições do passado são rapidamente esquecidas. A maioria acredita que as instituições atuais como a ONU ou a União Europeia evitarão o pior, ignorando os seus sinais de fragilidade. A inundação de narrativas contraditórias cria confusão e paralisia coletiva, dificultando a identificação de ameaças reais. A guerra na Ucrânia acabou de sofrer mais um upgrade na escalada, com a permissão de Biden da utilização dos mísseis de longo alcance. E Putin, voltou a ameaçar com armas nucleares. E estou a ver a história do Pedro e do lobo; mas também a história do cântaro que tantas vezes vai à fonte.

O governo dos EUA, sob a administração de Joe Biden, autorizou a Ucrânia a utilizar mísseis de longo alcance fornecidos pelos americanos em operações contra alvos em território russo. Essa decisão marca uma escalada significativa no apoio militar ocidental à Ucrânia, especialmente no contexto de um conflito que já entrou em seu terceiro ano. A medida reflete um aumento na pressão sobre a Rússia, enquanto Moscovo ameaça reforçar a sua doutrina nuclear, ampliando as condições em que poderia considerar o uso de armas nucleares​. Entretanto, em 20 de janeiro de 2025 Donald Trump toma posse para o segundo mandato, e ainda há muitas incertezas qual vai ser a sua atuação em relação a este conflito.

Putin, em resposta a essas mudanças, alertou que tais ações podem ser interpretadas como uma participação direta da NATO no conflito, elevando o risco de confrontos mais amplos. A Rússia tem reiterado que considera o apoio militar ocidental uma ameaça à sua segurança estratégica e, portanto, poderia responder com severidade​. Essa escalada confirma o padrão histórico de confrontos prolongados, onde medidas táticas levam a consequências estratégicas mais graves. 
A lição parece ser que o equilíbrio entre dissuasão e diplomacia deve ser cuidadosamente mantido para evitar que as tensões se transformem num confronto global.

É claro que há aqui um player político chamado Xi Jinping que fala pouco, mas pode inverter o rumo para o precipício levado por Putin e Trump. Mas a China foge-me completamente às análises. A posição da China é particularmente estratégica, pois Xi busca equilibrar suas relações com a Rússia e os Estados Unidos, sem se comprometer completamente com nenhum dos lados. Isso reflete a tradicional abordagem chinesa de evitar confrontos diretos enquanto maximiza seus próprios interesses económicos e geopolíticos. 
No contexto da guerra na Ucrânia, a China tem se posicionado como uma mediadora potencial, mas sem condenar a Rússia diretamente. Esse alinhamento ambíguo oferece a Pequim a vantagem de explorar o enfraquecimento do Ocidente e de Moscovo enquanto continua a expandir sua influência global, especialmente por meio de iniciativas como a "Nova Rota da Seda". No entanto, os objetivos de longo prazo da China são menos transparentes, e sua postura em relação ao uso de armas nucleares, por exemplo, ainda não é clara.

O silêncio de Xi pode ser parte de uma estratégia mais ampla: observar o desgaste das outras potências e, no momento oportuno, emergir como o ator capaz de oferecer uma solução ou uma nova liderança no sistema global. Esse jogo de paciência é uma marca do pensamento estratégico chinês, muitas vezes descrito como uma visão a longo prazo em oposição às decisões reativas ocidentais. Se a China decidir inverter a trajetória atual rumo a um confronto global, ela terá de fazê-lo de forma subtil, por meio de alianças económicas, diplomáticas e, potencialmente, tecnológicas. Ainda assim, há incertezas: até que ponto Xi estaria disposto a intervir ativamente para evitar o "precipício" ou se ele considera mais vantajoso deixar as tensões entre Rússia e EUA enfraquecerem ambas as potências? Essas questões tornam a China uma incógnita intrigante no tabuleiro global.