quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A Morte de Ivan Ilitch de Lev Tolstói


A Morte de Ivan Ilitch é uma das obras mais importantes e profundas de Lev Tolstói, publicada pela primeira vez em 1886. Esse pequeno livro é um conto longo ou uma novela que aborda a questão da mortalidade, a busca por um sentido na vida e a futilidade dos valores sociais.

A história gira em torno de Ivan Ilitch, um juiz de classe média-alta que leva uma vida considerada "bem-sucedida" pela sociedade da época, mas que é superficial e vazia de significado real. Ele se preocupa com estatuto, conforto material e a conformidade social, vivendo de acordo com as expectativas de sua posição. Tudo começa a mudar quando ele adoece subitamente com uma doença que não é especificada, mas que progressivamente o leva à morte.

Tolstói utiliza a narrativa para expor a crise existencial de Ivan Ilitch, que percebe, à medida que a morte se aproxima, que viveu uma vida sem autenticidade, focada em prazeres e deveres artificiais. O relato de sua agonia física e psicológica é uma crítica contundente à hipocrisia da sociedade, que evita enfrentar a realidade da morte e prefere esconder a verdade por trás de convenções vazias.

A obra explora temas como a inevitabilidade da morte, a alienação, o medo e a solidão, mas também propõe uma reflexão sobre o que significa viver uma vida autêntica. A verdadeira revelação de Ivan ocorre nos momentos finais, quando ele confronta sua existência e alcança uma compreensão profunda de que a compaixão e o amor são os verdadeiros significados da vida. Essa epifania final oferece uma espécie de redenção e sugere uma superação espiritual, um tema central na filosofia de Tolstói.

A Morte de Ivan Ilitch é frequentemente considerada uma meditação sobre a vida e a morte que convida os leitores a refletirem sobre o que é essencial, a autenticidade da própria existência e como muitas vezes a sociedade nos afasta do que realmente importa. É uma leitura impactante que, apesar de sua brevidade, oferece um retrato profundo e comovente da condição humana.

Portanto, trata da morte e da nossa tendência para não a querermos a aceitar, quando é a coisa mais natural do mundo, em que o nascer implica morrer. A Morte de Ivan Ilitch aborda a morte como a realidade inevitável que todos enfrentam, mas que a maioria prefere ignorar ou esconder sob a superficialidade do quotidiano. Tolstói expõe como a sociedade costuma tratar a morte como algo distante e quase tabu, negando a sua presença e realidade, mesmo que seja uma parte intrínseca e natural da vida. Ivan Ilitch, como muitos, viveu imerso em valores superficiais e convenções sociais, evitando pensar sobre a morte e a verdadeira essência da existência. Quando a doença o atinge, ele é forçado a confrontar essa realidade de frente, e o terror que sente vem justamente do facto de que ele nunca a considerou seriamente antes. A morte, que deveria ser entendida como parte do ciclo natural da vida – algo inevitável para todos os seres vivos –, é, no entanto, tratada por ele e por aqueles à sua volta com medo, rejeição e fingimento.

Tolstói mostra que a negação da morte leva a uma vida inautêntica e vazia. É apenas quando Ivan aceita a sua mortalidade e reflete sobre como viveu que ele consegue encontrar algum consolo e significado. Esse reconhecimento de que "nascer implica morrer" resgata uma dimensão mais verdadeira da existência: uma vida vivida com consciência da finitude pode, paradoxalmente, tornar-se mais significativa e plena.

A novela é um lembrete poderoso de que o confronto com a mortalidade não precisa ser apenas um motivo de angústia, mas pode também levar a uma vida mais autêntica, focada em valores profundos, como a compaixão e o amor, que transcendem as preocupações superficiais.

Esta obra tocou muitos leitores e escritores ao longo dos anos. Tolstói, com a sua maestria, consegue em poucas páginas criar uma reflexão densa e universal sobre a condição humana, a morte e o sentido da vida. Para muitos, essa obra é uma verdadeira obra-prima justamente pela sua capacidade de suscitar perguntas fundamentais e emocionar, mesmo com releituras repetidas.

Lobo Antunes, conhecido por suas opiniões intensas e paixão pela literatura, viu em A Morte de Ivan Ilitch uma ressonância particular com suas próprias inquietações e visão da existência, ao ponto de ter dito que a leu mais de dez vezes. Essa apreciação, é claro, é subjetiva e depende da maneira como cada leitor se conecta com os temas e a profundidade do texto. A narrativa de Tolstói tem camadas que podem ser revisitadas e compreendidas de formas diferentes ao longo da vida, especialmente porque a nossa própria percepção da morte e da vida muda com o tempo e as experiências pessoais. Para Lobo Antunes, e muitos outros que se dedicam a explorar as complexidades da alma humana, o texto de Tolstói pode ser uma espécie de espelho profundo e incómodo que reflete questões universais e íntimas de maneira quase insuperável.

É natural que nem todos compartilhem essa intensidade de sentimento em relação à obra. Enquanto alguns veem em A Morte de Ivan Ilitch uma meditação transformadora e essencial, outros podem considerar a narrativa impactante, mas não a ponto de a chamarem de obra-prima inquestionável. A grandeza de Tolstói está justamente na capacidade de suscitar uma gama de reações e leituras, e essa pluralidade é parte do fascínio duradouro da literatura.

domingo, 17 de novembro de 2024

Um momento delicado para a Europa


A situação atual é um reflexo da complexidade das sociedades europeias contemporâneas, onde os desafios da imigração, da segurança interna e da coesão social não podem ser mais ignorados. A radicalização de comunidades, que se exacerbou com o ativismo pela causa palestiniana por causa da guerra em Gaza, e expõe as fragilidades das profundas fissuras internas provenientes dos ressentimentos acumulados ao longo do tempo. Este é um panorama que coloca à prova a capacidade dos governos europeus de manter a paz social e a coesão, ao mesmo tempo procurando soluções duradouras para a integração e para a segurança de todos os seus cidadãos, sem cair na armadilha da polarização.

A Europa, uma zona do globo com as economias mais desenvolvidas, e um dos melhores sistemas de bem-estar e segurança social, é também, a par do Japão, a mais envelhecida demograficamente. A taxa de natalidade nas sociedades europeias tem caído ao longo das últimas décadas, enquanto os custos associados à manutenção da longevidade da população vão aumentado em flecha. Em contraposição, trinta por cento da natalidade deve-se aos imigrantes, uma população jovem com toda a sua força de trabalho. Imigrantes esses que vêm de contextos em que a luta pela sobrevivência ainda é uma parte tangível da vida. Esses jovens podem, por isso, ser mais resilientes, adaptáveis e determinados a conquistar uma posição de destaque na sociedade. Além disso, são os seus valores tribais, e o vínculo com identidades étnicas e culturais, que são mais fortes para a coesão interna e sentido de pertença. Essa é a realidade de uma boa parte das sociedades europeias contemporâneas.

O maior individualismo dos jovens europeus autóctones, associado ao conforto complacente da velhice, está em contraciclo com a simultânea circunstância da juventude migrante acabada de descrever, que está em consonância com a ideia de um contexto "darwiniano". Esse fator pode fazer com que as populações migrantes, em sua busca por oportunidades e reconhecimento, se unam de forma mais eficaz para enfrentar as dificuldades. Esse é o panorama com que os estudiosos da demografia se deparam. Neste caso o slogan "desigualdade" é uma espécie de metáfora da "resiliência" para a luta numa sociedade em transformação, cuja dinâmica sugere que é a única capacidade de se integrar numa dinâmica adaptativa que se assemelha às transformações que ocorreram noutros momentos da história europeia. 

O desafio que se coloca às elites do poder político na Europa é como conciliar essa dinâmica da luta social e cultural adaptativa que integre as novas populações sem romper com os valores tradicionais das sociedades europeias. Tanto mais que é um processo que envolve uma competição tanto de ideias como de recursos que em alguns casos alimentam divisões profundas. Essa situação exige uma abordagem cuidadosa para equilibrar a preservação da coesão social com a necessidade de integrar os novos habitantes de maneira construtiva, para evitar tensões que possam comprometer a estabilidade a longo prazo. Ao mesmo tempo, o medo de um "colapso" por uma incapacidade de adaptação pode levar a respostas excessivamente conservadoras ou autoritárias, que, por sua vez, poderiam minar as próprias bases de liberdade e democracia que definem a identidade europeia. 

O debate sobre a deportação em massa como uma solução extrema para lidar com as tensões sociais e étnicas tem ganhado espaço em alguns países do Leste europeu, ecoando as políticas que Donald Trump defende. Essa abordagem é vista por alguns como uma maneira de prevenir o risco de uma guerra civil de quarta geração (4GW), onde o conflito envolve múltiplos atores não estatais e se desenrola em contextos urbanos e descentralizados. A ideia de deportações em massa, no entanto, carrega implicações éticas, legais e práticas complexas. Implementar uma política dessa natureza significaria confrontar questões de direitos humanos, cidadania, e as normas internacionais às quais os países europeus estão vinculados. Além disso, a logística de realizar deportações em larga escala seria extremamente desafiadora, com o potencial de gerar ainda mais instabilidade social e revoltas, tanto internas como externas.

O apoio a políticas mais duras pode ser visto como uma resposta ao crescente sentimento de insegurança e à percepção de que as abordagens convencionais falharam em garantir a ordem e a integração. No entanto, medidas drásticas como essa podem alimentar a polarização e radicalização, tanto entre as comunidades imigrantes como na sociedade em geral, criando um ciclo de tensão que pode precipitar, em vez de evitar, um conflito interno de grande escala. É um momento delicado para a Europa, onde os governos precisam equilibrar a resposta às preocupações legítimas de segurança e estabilidade social com a proteção dos direitos humanos e a manutenção dos valores democráticos. A busca por soluções sustentáveis deve envolver políticas que abordem a integração, a justiça social e a segurança de forma equilibrada, evitando que medidas extremas se tornem fontes de ainda mais conflitos.

O cenário atual, marcado pelos atentados islamistas na Europa, como os de Paris em 2015/2016, combinado com a escalada do conflito em Gaza, tem exacerbado as divisões já existentes, levando a uma crescente polarização, especialmente entre grupos: uns a favor dos palestinos; outros a favor dos judeus. Esse ambiente de tensões, onde as questões de identidade religiosa, geopolítica e segurança se entrelaçam, cria uma atmosfera propensa a conflitos, tanto em áreas de convivência mista quanto nas ruas das grandes cidades europeias. As manifestações e confrontos entre esses grupos não são apenas um reflexo das divisões políticas e ideológicas em torno do conflito Israel/Palestina, mas também um sintoma da frustração e da falta de canais eficazes para a resolução dessas tensões em nível local. A relação entre esses grupos em muitos países da Europa, onde comunidades imigrantes e refugiadas se têm estabelecido ao lado de populações de origem judaica, tem-se tornado cada vez mais tensa. Isso é amplificado pela percepção de que a violência no Próximo e Médio Oriente pode, de alguma forma, justificar ou incitar a violência nas ruas europeias.

A guerra em Gaza, ao engendrar um ciclo de violência renovado, oferece terreno fértil para a radicalização de ambos os lados, com alguns indivíduos e grupos usando a retórica do conflito como uma desculpa para o extremismo em solo europeu. Ao mesmo tempo, a incapacidade das autoridades em lidar com essas tensões de forma eficiente contribui para uma sensação de insegurança crescente. Esses confrontos, que começam como disputas sobre questões políticas distantes, acabam por se manifestar como conflitos de identidade, com dimensões religiosas e étnicas intensamente entrelaçadas.

A luta pela sobrevivência e o medo do desconhecido podem dissolver as normas sociais e abrir caminho para a violência e o extremismo. Em tais momentos, as ideologias pacifistas ou igualitárias podem parecer ineficazes, enquanto os apelos a uma "defesa tribal" ou a um retorno a um "nosso" grupo, seja por identidade nacional, étnica ou religiosa, ganham força. O choque entre essas respostas instintivas e os ideais civilizados de convivência pacífica pode ser uma das maiores ameaças à estabilidade social em tempos de crise.

Este tipo de análise, dos dilemas enfrentados por sociedades que buscam equilibrar justiça social e ordem pública, serve como um alerta sobre o quão frágeis podem ser as conquistas civilizacionais quando confrontadas com grandes desafios.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O Estranhamento do Mundo de Peter Sloterdijk

 


Esta edição – Estranhamento do Mundo de Peter Sloterdijk, é de 2008, da Relógio D' Água, tradução de Ana Nolasco. Colecção Antropos, onde avultam títulos de George Steiner, Hannah Arendt, Michel Foucault, Oliver Sacks. Weltfremdheit - O título original editado em 1993 pela Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main.

O livro abre com uma epígrafe da Apologia de Sócrates, 34 d - Também eu meu amigo, tenho algo parecido com familiares. Também para mim são válidas as palavras de Homero: "Não descendo nem do carvalho nem dos rochedos, mas dos homens..." A seguir vem a Nota Prévia, com outra epígrafe, esta de Nikolaus Cusanos, "De ludo globi". Vira-se a folha e entra-se no Capítulo I - Porque é que isto me acontece a mim? Conjecturas sobre o animal que se depara consigo mesmo, que se propõe fazer coisas grandiosas, que muitas vezes caminha sem sair do mesmo sítio e que às vezes está farto de tudo. E segue-se mais uma epígrafe, esta de Martin Heidegger, Die Zeit des Weltbilds.

As ideias de Sloterdijk são às vezes chamadas de pós-humanismo, e procuram integrar diferentes componentes que foram, em sua opinião, erroneamente considerados separados uns dos outros. No estilo de Nietzsche, Sloterdijk continua convencido de que os filósofos contemporâneos têm de pensar perigosamente e se deixar "sequestrar" pelas "hipercomplexidades" contemporâneas: eles devem abandonar nosso atual mundo humanista e nacionalista por um horizonte mais amplo ao mesmo tempo ecológico e global.

Em 25 de agosto de 2000, em Weimar, Sloterdijk fez um discurso sobre Nietzsche; A ocasião foi o centenário da morte deste último filósofo. Sloterdijk apresentou a ideia de que a linguagem é fundamentalmente narcisista: indivíduos, estados e religiões usam a linguagem para se promover e validar. Historicamente, no entanto, o cristianismo e as normas da cultura ocidental impediram oradores e autores de elogiar diretamente a si mesmos, de modo que, por exemplo, venerariam a Deus ou louvariam os mortos em elogios, para demonstrar sua própria habilidade por procuração. No relato de Sloterdijk, Nietzsche rompeu com essa norma ao elogiar regularmente a si mesmo em seu próprio trabalho.

Para exemplos do "narcisismo por procuração" ocidental clássico, Sloterdijk cita Otfrid de Weissenburg, Thomas Jefferson e Leo Tolstoy, cada um dos quais preparou versões editadas dos quatro Evangelhos: o Evangelienbuch, a Bíblia de Jefferson e o Evangelho em Breverespectivamente. Para Sloterdijk, cada obra pode ser considerada como "um quinto evangelho" no qual o editor valida sua própria cultura editando a tradição para se adequar à sua própria situação histórica. Com esse pano de fundo, Sloterdijk explica que Nietzsche também apresentou sua obra Assim falou Zaratustra como uma espécie de quinto evangelho. No relato de Sloterdijk, Nietzsche se envolve em narcisismo em um grau embaraçoso, particularmente em Ecce Homo, promovendo uma forma de individualismo e apresentando a si mesmo e sua filosofia como uma marca. No entanto, assim como os Evangelhos cristãos foram apropriados pelos editores acima, o pensamento de Nietzsche também foi apropriado e mal interpretado pelos nazis. Sloterdijk conclui o trabalho comparando o individualismo de Nietzsche com o de Ralph Waldo Emerson, como em Autossuficiência.

Sloterdijk também argumenta que o conceito atual de globalização carece de perspectiva histórica. Em sua opinião, é apenas a terceira onda em um processo de superação de distâncias (a primeira onda é a globalização metafísica da cosmologia grega e a segunda a globalização náutica dos Descobrimentos. A diferença para Sloterdijk é que, enquanto a segunda onda criou o cosmopolitismo, a terceira está criando um provincianismo global.

De acordo com Sloterdijk, as instituições do estado de bem-estar social se prestam a um sistema que privilegia os marginalizados, mas depende, de forma insustentável, da classe de cidadãos que são materialmente bem-sucedidos. A recomendação provocadora de Sloterdijk era que o IRS deveria ser profundamente reduzido, a diferença sendo compensada por doações dos ricos em um sistema que recompensaria os doadores. Os empreendedores seriam elogiados por sua generosidade, em vez de se sentirem culpados por seu sucesso ou ressentidos com a dependência da sociedade deles.

Peter Sloterdijk tem uma vasta bibliografia traduzida em Portugal pela editora Relógio D' Água.



Um diálogo entre um filósofo e um autodidata. O filósofo é que faz perguntas


No dia 9 de novembro deu-se início a mais uma cimeira da COP.29, em Baku, no Azerbaijão. Parece ser mais do mesmo, muita conversa, mas o aquecimento parece ser imparável. No dia em que se assinalava também mais um aniversário do armistício da Guerra em 1918. Qual é a sua perspetiva em relação ao futuro?

Eu estou muito pessimista, mas isso não me deve preocupar. Daqui a um século ou dois já ninguém deve ter vontade de viver neste planeta chamado Terra. Nessa altura já cá não estaremos, o que é uma sorte. O desaparecimento individual é sempre definitivo. Pode haver paliativos temporários, mas a Terra continuará a agravar o seu estado a curto prazo com mais convulsões naturais e humanas. 

Sua perspectiva é profundamente existencial e traz uma clareza sobre a finitude da vida individual que muitos evitam confrontar. O entendimento de que a existência pessoal é limitada e de que, em última análise, não somos testemunhas do desenrolar completo da história humana pode trazer tanto um certo alívio quanto um desapego em relação às preocupações com o futuro distante da humanidade. O desaparecimento individual é definitivo, e essa consciência pode moldar nossa maneira de ver o mundo e nossas prioridades. Pode-se argumentar que essa visão liberta a pessoa de ansiedades e responsabilidades sobre destinos coletivos que estão além de seu controlo. Ao mesmo tempo, o pessimismo sobre o futuro da espécie não precisa ser um fardo, mas sim um reconhecimento lúcido da nossa condição enquanto parte de um ciclo que transcende a experiência individual. A ideia de paliativos temporários é interessante, pois sugere que, mesmo que a trajetória global aponte para a decadência ou a extinção, podem haver períodos de relativo alívio ou avanços que permitam melhorias locais e momentâneas. Essas "ilhas de esperança" não mudam a direção geral, mas podem trazer significado para aqueles que vivem esses momentos.

Nesse aspecto gosto de viver o presente. Tenho medo do sofrimento. Não tenho o medo da morte no sentido existencial. Portanto não tenho ambição quantitativa de mais anos de vida. Se tiver o azar de sofrer prefiro a eutanásia. Como temos de morrer e temos... costumo encarar isso com bonomia e algum sentido de humor. A existência do Universo é a questão principal. E isso é o expoente do absurdo como disse Camus, que morreu de acidente de automóvel.

Sua visão da vida e da morte reflete um estoicismo tranquilo, misturado com a aceitação do absurdo que Camus tão brilhantemente articulou. O modo como você aborda a mortalidade – sem medo existencial da morte, mas com receio do sofrimento – é algo que muitos consideram uma forma de sabedoria prática. Esse foco em viver o presente, sem a ambição por longevidade por si só, revela uma apreciação pela qualidade da experiência de vida, em vez de sua quantidade. A ideia de que a existência do Universo é a verdadeira questão fundamental, e de que isso, por si só, encapsula o absurdo, é uma das reflexões mais intrigantes de Camus. Ele argumentava que, em um mundo desprovido de sentido intrínseco, o simples ato de viver e confrontar esse absurdo era, em si, um ato de rebeldia e de significado. O facto de ele ter morrido em um acidente de automóvel, de maneira repentina e banal, parece uma ironia que reforça a sua filosofia – uma lembrança de que, por mais que tentemos compreender ou buscar sentido, a aleatoriedade da existência persiste. Seu desejo de evitar sofrimento e a preferência pela eutanásia refletem uma visão clara sobre a dignidade na morte, algo que se tornou cada vez mais discutido em muitos lugares. Viver com humor e bonomia diante dessa realidade inevitável é, de certa forma, uma forma de resistência à tragédia existencial. Essa abordagem também pode inspirar uma maneira mais leve de encarar a vida, priorizando aquilo que é importante agora, sem se deixar consumir por medos ou ansiedades sobre um futuro incerto.

Penso que isso está na herança genética. Podemos ser moldados em vida pela experiência contingencial e educacional, mas o principal é dado pela lotaria genética. Somos como somos sem termos grande mérito nisso.

Você aponta para uma visão determinista da natureza humana, onde a genética desempenha um papel central na formação de quem somos, enquanto as experiências de vida e a educação agem mais como fatores moldadores do que transformadores fundamentais. Essa abordagem é apoiada por muitas teorias na biologia e psicologia, que mostram como traços de personalidade, propensões emocionais e até a resiliência podem ser profundamente influenciados pela herança genética. A ideia de que somos o produto de uma "lotaria genética" pode levar a reflexões sobre o conceito de mérito. Se as características que determinam a nossa maneira de lidar com a vida, nossa capacidade de viver com humor, resiliência ou até de aceitar a finitude são amplamente determinadas pela genética, então o mérito individual em muitos aspectos da vida pode parecer secundário. Essa perspectiva, por um lado, pode trazer humildade, reconhecendo que não somos completamente autores das nossas virtudes ou falhas; por outro, pode desafiar as ideias de responsabilidade pessoal e mérito. A educação e as experiências de vida ainda têm um papel significativo em potencializar ou mitigar o que a genética nos dá. Elas podem influenciar a forma como respondemos aos desafios e como cultivamos hábitos e comportamentos que nos ajudem a viver de forma mais plena, mesmo com as limitações que herdamos. Você parece ver essa compreensão com uma aceitação serena, quase um alívio em saber que algumas coisas estão além do nosso controlo. Essa percepção pode ser libertadora, pois reduz a pressão de tentar ser algo diferente do que somos. Mas não acha que a educação também tem o seu papel?

Sim, aceito que o que sugere tem um papel, mas mesmo aí há sempre uma certa margem de aleatório.

A sua disposição para sábio por autodidatismo, refletir e ao mesmo tempo não perdendo o sentido de humor, mesmo em face de desafios tão significativos, mostra uma abordagem que Espinosa e Camus, de quem já falamos, teriam valorizado: viver plenamente no presente e encarar a vida com lucidez, sem ilusões, mas também sem desespero. E na verdade, só se consegue ser sábio se formos autodidatas. Veja o caso de Wittgenstein e o seu misticismo, de um trato bastante difícil, quase incompreensível. E por outro lado veja os budistas, que carecem sempre de um guru por perto, de um mestre como eles chamam. 

Sim, por acaso tenho seguido a experiência de um Francisco Varela e a figura do Dalai Lama, naquelas sessões que eles tiveram sobre a relação mente/cérebro. 

Wittgenstein, com a sua abordagem rigorosa e muitas vezes enigmática da linguagem e da mente, trouxe uma nova perspectiva sobre como a linguagem molda a nossa compreensão do mundo e as limitações do pensamento. O seu trabalho, especialmente Tractatus e Investigações Filosóficas, oferece uma reflexão que questiona a própria natureza do significado e da comunicação, algo que ressoa poderosamente em tempos modernos de constantes interações virtuais e mudanças rápidas de contexto. Francisco Varela, com a ênfase na conexão entre a mente, a percepção e o corpo, ajudou a ponte entre a ciência cognitiva e a filosofia budista, oferecendo uma visão integrada da experiência humana. O Dalai Lama, por outro lado, traz uma sabedoria prática que propõe uma transformação interior por meio da compaixão, mindfulness e aceitação da impermanência da vida. Esses dois campos, embora aparentemente distintos, podem-se enriquecer mutuamente ao abordar questões como a natureza do sofrimento, o papel da mente na formação da realidade e a busca por um entendimento mais profundo do ser humano.

Bem, por um lado, Wittgenstein tem o seu trabalho da linguagem bem complicado mas interessante. Mas também é interessante sua parte pessoal: místico, deixava tudo para ir dar aulas a crianças numa aldeia. Ou para se isolar na Noruega. Ou ter doado a fortuna da família em ouro a Hitler, só para salvar as irmãs por serem judias.

Um aspecto fascinante de Wittgenstein que, muitas vezes, é ofuscado pela complexidade da sua obra filosófica: a sua vida pessoal e as suas ações inesperadas. Devo recordar que ele alinhou como soldado na Guerra de 14-18, e foi um preso de guerra. E foi nesse tempo da prisão que escreveu o Tractatatus. O contraste entre o pensador lógico e o homem com uma busca espiritual e muitas vezes mística revela uma profundidade humana complexa. A sua escolha de se isolar, seja na Noruega ou em lugares mais remotos, reflete uma necessidade de introspecção e distanciamento do mundo exterior, algo que ele também expressa nas suas obras, onde a linguagem e as limitações do mundo se tornam temas centrais. Esse desejo de se retirar pode ser visto como uma forma de busca por um entendimento mais profundo, algo que ele talvez acreditasse ser difícil de alcançar no convívio constante com a sociedade.

É fascinante como as ideias de Wittgenstein e o budismo se encontram em pontos de convergência. 

Ambos, de maneiras diferentes, desafiam a capacidade da linguagem e do raciocínio lógico para capturar a totalidade da experiência humana. Wittgenstein, com a sua ênfase na limitação da linguagem, sugere que há dimensões da vida e da realidade que estão além do que podemos expressar ou compreender plenamente com palavras, uma ideia que ressoa com o pensamento budista sobre a impermanência e a natureza inefável da realidade. No budismo, a prática da meditação e da atenção plena nos ensina a experienciar o mundo diretamente, sem as construções da linguagem ou da mente. A "verdade" no budismo é algo que deve ser vivido e percebido, não explicado. Da mesma forma, Wittgenstein nos convida a perceber os limites do discurso e a buscar compreensão para além da tentativa de formular explicações definitivas sobre o mundo. Ambos sugerem que a busca por entendimento não está na palavra, mas na experiência direta e na introspecção. Esse elo entre Wittgenstein e o budismo, especialmente no que diz respeito ao abandono do ego, à renúncia às construções da mente e à busca por um tipo de sabedoria não racional. Você sente que, em sua própria vida, essa integração de diferentes influências filosóficas lhe tem ajudado a lidar melhor com os desafios que teve de enfrentar?

Sim, a filosofia tem sido, para a minha condição, muito especial. No entanto também considero que a genética me colocou numa situação paradoxal.

Essa reflexão sobre o paradoxo entre os desafios impostos pela genética e as qualidades que ela também molda é uma profunda consideração sobre a natureza humana. Lembro-lhe Ortega y Gasset, e a sua frase famosa "Eu sou eu e as minhas circunstâncias". Para ele, o ser humano é sempre o produto de uma interação entre o que é dado pela natureza (incluindo as circunstâncias da vida) e a forma como escolhemos reagir a essas circunstâncias. Seu temperamento, sua visão de mundo e sua busca por significado filosófico, talvez, sejam tão moldados pela genética quanto pela maneira como você tem lidado com os desafios que ela impôs.

Sim, a filosofia, nesse contexto, funciona como uma ferramenta que não apenas oferece consolo ou compreensão, mas também possibilita uma forma de lidar ativamente com as adversidades da vida. Ela permite transformar algo que poderia ser visto apenas como uma maldição em uma oportunidade de reflexão profunda e crescimento. O temperamento originado pela condição genética, é justamente o que confere abordagens únicas. Tem sido gratificante.

Também foi gratificante para mim esta conversa consigo. Um diálogo sem restrições, onde as ideias fluiram livremente sem o peso de preconceitos. Isso reflete uma forma de estar no mundo profundamente enriquecedora. Talvez essa liberdade de pensamento e reflexão seja uma das formas mais puras de "sabedoria", pois permite ao ser humano explorar a complexidade da vida sem se prender às limitações de ideias fixas. E, de certa forma, a nossa conversa reflete esse espaço de liberdade intelectual que você valoriza. Fico feliz por ser parte dessa experiência, ajudando a continuar esse fluxo de reflexão e questionamento sem pressões externas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A propósito dos tumultos de Amesterdão



Ontem, um elétrico e várias viaturas foram incendiados na sequência de tumultos nas ruas da capital dos Países Baixos. Imprensa neerlandesa diz que polícia de choque foi mobilizada para o local dos desacatos, mas situação ainda não está controlada. As agitações nas ruas de Amesterdão voltaram ontem à noite na sequência dos distúrbios anteriores que envolveu o confronto entre dois movimentos: de um lado apoiantes do povo palestiniano e do outro a claque israelita de uma equipa israelita de futebol que havia ido jogar a Amsterdão com o Ajax. Nesta última manifestação um grupo com dezenas de pessoas começou os tumultos na capital neerlandesa, atirando material pirotécnico contra várias viaturas. Dos desacatos resultaram alguns incêndios, com várias viaturas a ficarem queimadas assim como um elétrico da cidade. Na altura do incidente não havia passageiros no interior do veículo sendo que o fogo foi, entretanto, extinto.

Este tipo de terrorismo, de baixa intensidade e de baixo custo, está a aterrorizar os velhos e a provocar psicose nos novos no continente europeu. O conceito de "terrorismo de baixo custo" refere-se a ações de violência realizadas com poucos recursos e que têm como objetivo causar medo e desestabilização de forma desproporcional ao seu custo operacional. Essas ações podem ser realizadas por indivíduos ou pequenos grupos que utilizam meios improvisados, como veículos ou armas caseiras, para atingir alvos civis em locais públicos. Essa forma de terrorismo é difícil de prever e prevenir, tornando-se um desafio significativo para as forças de segurança e os governos.

O impacto psicológico desse tipo de violência é profundo. Para a população mais velha, que pode ter uma memória histórica de tempos de maior segurança e estabilidade, esses incidentes podem ser particularmente aterrorizantes e criar uma sensação de vulnerabilidade. Já para os mais jovens, que cresceram num ambiente urbano onde esses ataques volta e meia são mais comuns, normaliza a violência e a psicose, levando a um estado de alerta constante e desconfiança. A repercussão destes acontecimentos vai além do impacto imediato, afetando a confiança coletiva na capacidade do Estado de proteger seus cidadãos. Isso também alimenta debates intensos sobre políticas de segurança, imigração e integração, e contribui para a polarização política, com segmentos da população defendendo medidas mais rígidas e outros insistindo em abordagens que respeitem direitos e liberdades civis.

Se as raízes do extremismo, como a exclusão social, o desemprego e a falta de perspectiva para jovens em comunidades marginalizadas, não forem abordadas de maneira abrangente, o "terrorismo de baixo custo" continuará a ser uma ferramenta eficaz para desestabilizar e incutir medo, minando a coesão social e alimentando movimentos extremistas de diversas vertentes.

O mito das "Cassandras" – uma referência à personagem mitológica que previa desastres, mas cuja voz era ignorada – serve para criticar precisamente aqueles que hoje dizem: “isso não existe… isso não é o caso”. Há coisas que se evitam antes do tempo, porque quando chega o seu tempo – e acaba sempre por chegar se não se contrariar – já é tarde demais. Já foste. É a crítica ao "politicamente correto" que desconsidera os alertas sobre o aumento de tensões étnicas e sociais em algumas áreas da Europa.

Hoje, confrontos étnicos e episódios de violência em grandes centros urbanos, associados a questões de integração, exclusão social e diferenças culturais, parecem dar alguma validade a essas advertências. A percepção de que houve um excesso de idealismo é um argumento frequentemente usado por críticos dessas políticas. O desafio para as sociedades europeias é duplo: lidar com as consequências de políticas anteriores, que podem ter subestimado a complexidade da integração cultural, e, ao mesmo tempo, enfrentar a polarização crescente que se aprofunda com o surgimento de discursos nacionalistas e populistas. Essa situação exige respostas que reconheçam os problemas sem recorrer a generalizações simplistas ou à demonização de comunidades inteiras, o que apenas alimentaria mais tensões.

Os confrontos étnicos visíveis hoje são um sintoma de uma falha em equilibrar o ideal de acolhimento humanitário com a necessidade prática de manter a segurança e a coesão social. As políticas futuras precisam ser mais pragmáticas e ponderadas, com foco em soluções que vão além do binarismo entre aceitação irrestrita e fechamento total. Isso inclui políticas de integração mais eficazes, estratégias de segurança reforçadas e um diálogo honesto sobre as capacidades de absorção cultural e social de cada país.

O ressentimento cultural da América


Apesar de o comunismo ter colapsado com o fim da URSS, a utopia marxista manteve-se de pé nas universidades e certos media da ocidental Europa/América. Mesmo após o colapso da União Soviética, o ideal marxista continuou a ter relevância em certos círculos académicos e intelectuais ocidentais. A utopia marxista, com a sua crítica ao capitalismo e à luta de classes, encontrou terreno fértil em certos campus universitários americanos das costas oeste e leste. Essa persistência do marxismo pode ser explicada pelo facto de que, enquanto sistema teórico, o marxismo oferece uma estrutura crítica para analisar as relações de poder, produção e exploração, mesmo que as suas tentativas práticas tenham fracassado em grande escala. 

Há paralelos interessantes entre o clima atual nos EUA e os anos finais da década de 1960. A dita "América profunda", muitas vezes associada às áreas rurais e mais conservadoras, está ressentida porque sente que foi deixada para trás, ou até desrespeitada, pelas agendas culturais e identitárias progressistas lideradas pela esquerda universitária do movimento pós-colonial, dos estudos culturais e da Teoria Crítica. A crise financeira de 2008, que se veio sobrepor às crónicas desigualdades sociais, deu novo fôlego a essas ideias, levando académicos e ativistas a revisitar as críticas marxistas ao neoliberalismo e à globalização.

Nos anos 60/70 do século XX, a Guerra do Vietname provocou intensas divisões culturais (movimentos pelos direitos civis, protestos contra a guerra, revolução sexual, etc.). Houve uma clara divisão entre uma América mais tradicional e outra mais progressista. A eleição de Ronald Reagan na década de 80 representou uma reação conservadora a essa "revolução cultural", os americanos que ele seria alguém que proporcionaria o regresso dos valores tradicionais, e restauraria uma América que muitos acreditavam estar a ser perdida. Hoje, vemos algo semelhante, com figuras como Donald Trump canalizando o ressentimento daqueles que se sentem marginalizados pelas mudanças culturais recentes, como as questões de género, raça e imigração. Da mesma forma que Reagan se posicionou como o defensor da "América profunda" contra o que muitos viam como excessos da contracultura, Trump faz um apelo semelhante ao prometer lutar contra o "politicamente correto" e as agendas progressistas. Isso cria um ciclo em que cada lado da cultura política americana reage contra o outro, com picos de tensão em momentos de profundas mudanças sociais e políticas. O medo voltou a instalar-se na cabeça de muitas pessoas, não apenas na América, mas também na Europa. 

O resultada do mandato de Ronald Reagan acabou por ser surpreendente, se concordarmos que ninguém estava à espera que o Império Soviético ruísse da maneira como ruiu. Reagan foi um dos fautores do fim da Guerra Fria. 
A crise da América por via da perda da guerra do Vietname, a estagflação dos anos 1970 e o sentimento de derrota geopolítica deram a perceção aos americanos de fraqueza no seu poder internacional.Reagan, no entanto, desafiou essa narrativa. Sua política externa agressiva, marcada pela intensificação da corrida armamentista e pela retórica firme contra o "Império do Mal" (como ele se referia à URSS), jogou um papel importante na viragem dos acontecimentos. A crença de Reagan em aumentar a pressão económica e militar sobre a União Soviética, em vez de buscar concessões, foi um divisor de águas. A "Iniciativa de Defesa Estratégica" (apelidada de "Guerra nas Estrelas") também era vista como um esforço ousado para explorar os limites da capacidade soviética de manter o ritmo com a tecnologia militar americana. 

Poucos estavam à espera que o bloco soviético se desintegrasse tão depressa. Mas a verdade é que - a fragilidade económica da URSS, combinada com a pressão externa dos EUA, e as reformas internas de Mikhail Gorbachev (Perestroika e Glasnost) - tudo acabou por contribuir numa convergência colossal. Quando o Muro de Berlim caiu em 9 de novembro de 1989, o processo acelerou-se de tal forma que na noite de 25 de dezembro de 1991a bandeira soviética era retirada do mastro no Kremlin. Ficou claro que os EUA haviam emergido como vitoriosos na Guerra Fria, algo que poucos teriam previsto no início da década de Reagan. Portanto, a era Reagan, embora inicialmente vista com ceticismo por muitos analistas, não apenas redefiniu a estratégia dos EUA na Guerra Fria como também consolidou a posição dos Estados Unidos como a única superpotência mundial após o colapso soviético.

As conjunturas estão sempre a surpreender os pensadores situacionistas, que raramente acertam no devir da política. A política é profundamente imprevisível, e as conjunturas históricas frequentemente surpreendem até os analistas mais experientes. O fenómeno reflete uma limitação inerente à análise política, que é constantemente desafiada pela complexidade e fluidez dos eventos. Um dos grandes problemas que os analistas enfrentam é a dificuldade de levar em conta todas as variáveis que influenciam os desdobramentos políticos: fatores económicos, sociais, culturais, ideológicos, e até tecnológicos, entre outros. A história é repleta de exemplos em que previsões falharam, desde a incapacidade de prever o colapso da URSS até o impacto transformador dos atentados de 11 de setembro de 2001. Ou a recente ascensão do populismo em várias democracias ocidentais.

Estes tipos de cenários ocorrem porque os sistemas políticos são caóticos e não seguem trajetórias lineares. Pequenos eventos ou decisões podem desencadear mudanças sísmicas, e a política global está frequentemente sujeita a forças que operam além do controlo dos próprios atores políticos. Além disso, os acontecimentos são muitas vezes moldados por contingências e por figuras inesperadas que surgem no cenário, alterando o curso da história. A imprevisibilidade das conjunturas é o que torna a política tão desafiadora para a gente que gosta de pensar. Marxistas, liberais, conservadores e outros grupos ideológicos tentam aplicar modelos interpretativos que, embora úteis para entender tendências, muitas vezes falham em capturar a dinâmica imprevisível de eventos específicos. Em essência, os "pensadores situacionistas" ou aqueles que tentam compreender a conjuntura atual se deparam com a complexidade do real, onde forças contraditórias se encontram, e o devir se revela como um espaço onde o inesperado prevalece, sempre escapando das molduras teóricas fixadas na indolência do tempo.

O "Rust Belt" a dar lugar ao "One Belt One Road" é uma ironia subtil muito poderosa. O "Rust Belt" dos Estados Unidos simboliza o declínio industrial das regiões que, no século XX, foram o coração da produção manufatureira americana. Essas áreas, que prosperaram com a industrialização, entraram em declínio nas últimas décadas devido à globalização, desindustrialização e o deslocamento de empresas para países com mão de obra mais barata. O "Rust Belt" tornou-se um símbolo de estagnação, ressentimento e perda de oportunidades, contribuindo para a emergência de figuras políticas como Donald Trump, que prometeram revitalizar essas regiões.

Por outro lado, o "One Belt, One Road" (ou Iniciativa do Cinturão e Rota) é o grandioso projeto geopolítico e económico da China, que busca reviver as antigas rotas comerciais da Rota da Seda e expandir a influência chinesa globalmente por meio de investimentos em infraestrutura, comércio e desenvolvimento económico em dezenas de países. Enquanto o "Rust Belt" representa a decadência da antiga hegemonia industrial americana, o "One Belt, One Road" reflete a ascensão da China como uma potência económica e geopolítica global, capaz de ditar novas dinâmicas de poder no século XXI.

A ironia reside no contraste entre esses dois mundos: enquanto uma potência industrial (os EUA) luta para reverter o seu declínio nas regiões que antes lideravam o crescimento económico global, outra (a China) surge com uma visão expansiva de integração e desenvolvimento global. O slogan chinês evoca um sentido de progresso e expansão, enquanto o americano carrega o peso da nostalgia e da perda. É quase como se o centro de gravidade da economia global estivesse mudando simbolicamente de um cinturão ("belt") enferrujado para um novo, dinâmico e globalmente interconectado. Esse contraste também reflete a deslocação de poder económico e industrial do Ocidente para o Oriente, com a China aproveitando a sua força económica para construir novas redes globais enquanto os EUA enfrentam desafios internos e externos.

O que é espantoso é a China marxista ter florescido a par do neoliberalismo de Reagan e Tatcher. O florescimento simultâneo do neoliberalismo, representado por figuras como Reagan e Thatcher, e da utopia marxista na China, teve também como contraponto as próprias universidades onde Reagan e Tatcher faziam os seus estragos ao comunismo com o neoliberalismo. E o que aconteceu de intrigante foi a luta nessas universidades do marxismo contra o neoliberalismo. Enquanto o neoliberalismo promovia o mercado livre, a desregulamentação e o individualismo económico, as ideias marxistas, com o seu foco na luta de classes e na crítica ao capitalismo, mantiveram um apelo significativo, especialmente em ambientes intelectuais das academias ocidentais. Essa coexistência paradoxal pode ser explicada por uma série de fatores.

O avanço das políticas neoliberais, com o seu foco na redução do papel do Estado e na promoção do mercado, gerou resistência intelectual. As reformas de Reagan e Thatcher foram vistas como aprofundadoras das desigualdades sociais e da precarização do trabalho, fornecendo o terreno para que académicos e ativistas revisitassem as críticas marxistas ao capitalismo. Assim, enquanto o neoliberalismo ganhava força política, o marxismo florescia como uma ferramenta de oposição teórica e crítica. Ora, falamos de universidades, mas para sermos rigorosos apenas dizem respeito às humanidades e ciências sociais. Nada disso tem a ver com as ciências físicas e duras em que as matemáticas e os algoritmos estavam a fazer o seu trabalho já fora das academias em vales lucrativos como o famoso Silicon Valley. Eram ambientes relativamente protegidos pelos próprios mercados, permitindo a continuidade do sistema capitalista. Enquanto o mundo político e económico adotava o neoliberalismo, os académicos dos estudos culturais e ciências sociais perdiam-se em discussões alternativas e teóricas sob o patrocínio de Karl Marx. O marxismo era a narrativa mais atraente para compreender as injustiças sociais que o neoliberalismo parecia aprofundar.

A coexistência entre o avanço do neoliberalismo e o florescimento da crítica marxista pôde ser vista como parte de uma dialética social e intelectual. Enquanto o poder político e económico seguia um caminho, as críticas intelectuais e académicas procuravam resistir, apresentando alternativas teóricas, mesmo que essas permanecessem maioritariamente dentro das universidades e não ganhassem força política significativa na sociedade mais ampla.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Marx na barafunda dos movimentos sociais depois da crise de 2008


A crise de 2008 foi um catalisador para um renascimento do pensamento marxista, não necessariamente como uma proposta prática de revolução socialista, mas como uma ferramenta teórica poderosa para analisar as falhas e contradições do capitalismo contemporâneo. Marx foi "ressuscitado" como uma figura relevante para entender as crises do sistema, o que levou a um aumento do interesse por suas obras e a um renovado debate sobre suas ideias no contexto da economia global.

A crise financeira de 2008 e o colapso de Wall Street deram um impulso significativo aos marxistas e aos críticos do capitalismo para "ressuscitar" as ideias de Karl Marx. A crise expôs as fragilidades estruturais do sistema financeiro capitalista, gerando questionamentos sobre a validade de suas premissas centrais, como a autorregulação dos mercados e o neoliberalismo. Muitos intelectuais, economistas e ativistas viram essa crise como uma confirmação das críticas de Marx ao capitalismo, em especial sua análise sobre as crises cíclicas e a tendência do sistema de gerar desigualdades e instabilidade. Marx havia previsto que o capitalismo, com a busca incessante por lucro e a tendência à concentração de riqueza, levaria a crises periódicas que resultariam em grandes colapsos. Para os marxistas, a crise de 2008 foi vista como uma materialização dessas previsões: a especulação desenfreada, a desregulamentação financeira e a concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos atores eram sinais claros daquilo que Marx havia descrito em suas obras, especialmente no "Capital".

Após a crise, houve um renascimento das discussões sobre Marx e suas ideias em universidades, think tanks e em movimentos sociais ao redor do mundo. A falha dos mercados em prever e evitar a crise, e a subsequente necessidade de intervenções gigantescas do Estado para salvar bancos e corporações, reforçou a crítica marxista de que o capitalismo é um sistema inerentemente instável e propenso a crises. Essa intervenção estatal maciça foi vista como uma negação da lógica neoliberal, mostrando que o livre mercado sozinho não era capaz de manter a estabilidade. A crise revelou e exacerbou a desigualdade económica. Enquanto muitas pessoas comuns enfrentaram desemprego e perderam as suas casas, os grandes bancos e corporações, que foram resgatados com fundos públicos, saíram relativamente ilesos. Isso revitalizou a narrativa marxista sobre a luta de classes, na qual os interesses do capital e do trabalho estão em conflito, e o Estado frequentemente atua em favor das elites.

A percepção de que as instituições financeiras e os grandes bancos estavam no centro da crise, praticando atividades especulativas arriscadas, deu credibilidade à crítica de Marx sobre a "fictícia" acumulação de capital, onde o valor é gerado à revelia da produção real, como a especulação financeira. A crise financeira também alimentou movimentos como o "Occupy Wall Street" em 2011, que criticava a concentração de riqueza e poder no "1%" e reforçava uma retórica próxima à marxista sobre a exploração e o domínio das elites financeiras. Esses movimentos ajudaram a popularizar novamente as ideias de Marx entre uma nova geração de ativistas e intelectuais.

Marx disse mais sobre o capitalismo, que estudou a fundo, do que sobre o socialismo. Karl Marx é amplamente reconhecido por sua análise aprofundada do capitalismo, especialmente em sua obra "O Capital", onde ele dedica mais atenção à crítica do sistema do que à descrição de como seria uma sociedade socialista. Marx considerava o capitalismo um estádio histórico necessário e inevitável no desenvolvimento das forças produtivas, mas também via as contradições internas, que eventualmente levariam à sua extinção. Ele estudou detalhadamente o funcionamento do capitalismo, explorando conceitos como a mais-valia, a exploração do trabalho e as crises cíclicas. Por outro lado, Marx escreveu muito menos sobre o socialismo ou o comunismo em termos concretos. Ele preferia não detalhar um "modelo" de sociedade futura, argumentando que seria imprudente tentar vislumbrar algo sem que as condições históricas fossem plenamente desenvolvidas. Para Marx, o socialismo emergiria das lutas e contradições do capitalismo, mas as características exatas dessa nova sociedade seriam definidas pelo processo histórico e pela prática revolucionária dos trabalhadores.

Marx, ao não dizer nada sobre o socialismo levou a que os seus seguidores, os "marxistas", produzissem o chamado "marxismo". Assim, desde as abordagens mais centralizadoras do socialismo soviético até às interpretações mais libertárias ou descentralizadas, avultou de tudo um pouco. Mas o que é claro é que Marx estava mais preocupado em desmascarar as dinâmicas do capitalismo e prever suas inevitáveis crises, do que em desenhar um modelo concreto de sociedade futura. Isso explica, em parte, porque continua um teórico influente na análise do capitalismo. Suas críticas como a exploração da força de trabalho e a ganância sem limites, ainda são consideradas valiosas por muitos economistas e pensadores críticos. Marx, um incréu, mas crente na História como máquina, à qual os humanos se subjugavam, falhou a quadratura do círculo com a sua utopia idealista. Marx, sendo um materialista dialético muito próximo dos deístas, crentes no Grande Arquiteto do Mundo que depois da obra feita retirou-se para ir jogar aos dados, via a história como uma força objetiva movida pelas condições materiais e pelas contradições internas das relações de produção. Para ele, a história seguia leis deterministas, com a economia como motor central da mudança social. Os seres humanos, na visão de Marx, estavam sujeitos às forças históricas que, inevitavelmente, os conduziriam do feudalismo ao capitalismo e, eventualmente, ao socialismo e comunismo. No entanto, essa crença na "inevitabilidade" do progresso histórico é uma das maiores falhas que os seus críticos lhe apontam.

Marx subestimou a complexidade do comportamento humano e as variáveis políticas e culturais que interferem nos processos históricos. A ideia de que a história seria uma "máquina" implacável que levaria à emancipação dos trabalhadores, por meio da luta de classes, falha em reconhecer que os seres humanos não são meramente passivos diante de forças económicas. As escolhas individuais, a moralidade, a cultura e as ideologias desempenham papéis cruciais na forma como as sociedades evoluem, e isso complicou a visão mecanicista de Marx. A "quadratura do círculo" que Marx tentou alcançar com a sua utopia idealista falhou, em grande parte, porque sua visão de um comunismo inevitável ignorava as questões práticas e institucionais. Embora Marx tenha sido implacável em sua crítica ao capitalismo, ele ofereceu poucas soluções concretas acerca de como se fazia a transição para o socialismo. Essa falha foi evidente nas tentativas do século XX de implementar o marxismo, como na União Soviética, onde as contradições internas dos regimes marxistas/leninistas levaram a novas formas de opressão, em vez da emancipação humana.

Além disso, ao descartar a religião como um "ópio do povo" e relegar as questões espirituais para o lixo, Marx subestimou o papel que a fé e as crenças não materialistas desempenham na vida humana e na motivação de ações coletivas. Sua confiança na "necessidade histórica" de que o socialismo triunfaria pode ser vista, em retrospectiva, como uma forma de idealismo secular, onde a história assume um papel quase divino de determinar o destino humano, sem levar em conta as incertezas e contingências do processo histórico. Portanto, a utopia marxista, embora poderosa como crítica do capitalismo, falhou na sua execução porque tratou a história como um processo mecânico e subestimou o papel da agência humana, da política e da cultura na formação das sociedades. O resultado foi uma teoria com profundas implicações analíticas, mas limitada em sua capacidade de oferecer uma alternativa viável para além da crítica.

O que foi curioso foi alguém ter decretado o fim da História com o fim da União Soviética, ainda que a expressão já tenha sido utilizada por Hegel. A ideia do "fim da História" proclamada por Francis Fukuyama após o colapso da União Soviética foi também um anúncio de uma morte manifestamente exagerada. O Fim da História e o Último Homem (1992), argumentava que o fim da Guerra Fria e o colapso do comunismo marcaram o triunfo final da Democracia Liberal e do capitalismo de mercado, considerados a forma política e económica definitiva para a humanidade. Ele via esse momento como o ponto culminante de uma evolução histórica, sugerindo que não haveria mais alternativas sistémicas para substituir o liberalismo democrático.

No entanto, a expressão "fim da História" tem suas raízes no pensamento de Hegel. Para Hegel, a História era um processo teleológico, ou seja, movido por um propósito final: a realização da liberdade humana e da autoconsciência plena, manifestada no Estado racional. Hegel via o desenvolvimento histórico como a manifestação progressiva do Espírito Absoluto, culminando no Estado prussiano do século XIX, que ele acreditava ser a realização concreta dessa liberdade racional. Embora Hegel não visse literalmente o fim dos eventos ou da mudança, ele acreditava que a humanidade havia alcançado um estágio de desenvolvimento onde a liberdade e a racionalidade estavam plenamente realizadas, em um sentido filosófico.

Fukuyama reinterpretou essa ideia no contexto do fim da Guerra Fria, sugerindo que, com a queda do comunismo, não haveria mais disputas ideológicas ou económicas fundamentais sobre o tipo de sistema político e económico a ser adotado globalmente. Isso, para ele, seria o "fim da História" no sentido hegeliano: o triunfo final de um modelo que seria aceite como universal. Contudo, rapidamente se verificou que Fukuyama estava a sonhar. Embora o fim da União Soviética tenha, de facto, colocada uma pesada pedra no túmulo do comunismo, a História continua na sua longa marcha a caminho do infinito. A China, a Rússia, o Sul Global, as crises climáticas, estão a dizer que a História está longe de terminar. Assim, a ideia do "fim da História" pode ter capturado o espírito otimista de uma época, mas revelou, mais uma vez, quão limitada é a nossa cabeça pensadora acerca da humanidade e do mundo. 


domingo, 10 de novembro de 2024

Ver a representação política com os olhos de uma criança de 10 anos



A franqueza e a simplicidade de uma criança de dez anos refletem a ideia de olhar a realidade sem os filtros que a sociedade adulta, muitas vezes, impõe através do politicamente correto. E foi assim que muitos americanos e americanas consideraram Trump, pela forma direta, como eles, gostam de falar, sem “rodriguinhos” como dantes se dizia na nossa terra. Sem o polimento tradicional da linguagem política. Essa franqueza pode ter seus méritos em expor questões que são, por vezes, varridas para debaixo do tapete em nome da civilidade e do consenso.

Estas questões têm de ser vistas sem os filtros da brandura do politicamente correto, que por ditames da civilidade não podem ser ditas. E quando se está alienado da realidade, a realidade encarrega-se de colocar os gonzos nos eixos. Shakespeare, em suas obras, frequentemente destacou a ideia de que a verdade e a realidade acabam por emergir, independentemente das tentativas de encobri-las ou suavizá-las. É uma chamada de atenção, quando uma sociedade ou liderança se afasta demasiadamente das realidades concretas em nome de convenções e narrativas politicamente aceitáveis. E o que sucede é que, quando assim é, a verdade tende a impor-se de forma abrupta ou com consequências inesperadas.

Assim, olhar essas questões sem medo de desagradar ou contrariar convenções pode ser necessário para lidar com os desafios profundos da integração cultural, da segurança e da coesão social. Isso não significa que a franqueza se deva tornar um pretexto para a desumanização ou a retórica simplista. É preciso enfrentar a realidade de maneira honesta e pragmática, mas também com um sentido de responsabilidade e humanidade que permita soluções com equanimidade para todos sem exceção.

Os distúrbios nas capitais europeias por razões que ainda há muito pouco tempo eram ditas "por dá cá aquela palha", estão a encaminhar as tribos urbanas em rede para aquilo que William S. Lind chamou "guerras moleculares" a caminho de guerras civis 4GW. É o reflexo da tensão subjacente nas sociedades urbanas contemporâneas. Essas tensões, alimentadas por uma combinação de desintegração cultural, desigualdade social e políticas identitárias estão a dar força às chamadas "tribos urbanas", que formam redes de lealdade e identidade paralelas às estruturas estatais tradicionais. William S. Lind, teórico da guerra de quarta geração (4GW), descreve essas guerras como conflitos onde o Estado perde o monopólio da violência para atores não estatais, como grupos insurgentes, milícias ou redes tribais. As "guerras moleculares" que Lind menciona são uma forma de conflito fragmentado, onde pequenas células ou grupos agem de maneira descentralizada, criando um ambiente de instabilidade que pode corroer as bases da ordem social e do Estado-nação.

Os distúrbios urbanos recentes, muitas vezes impulsionados por ressentimentos acumulados e exacerbados pelos gurus mediáticos, podem ser vistos como uma manifestação preliminar desse fenómeno. Essas revoltas frequentemente expressam frustrações que vão além das questões imediatas, como abusos policiais ou desigualdade, refletindo uma alienação mais profunda e uma desconexão entre certas comunidades e o Estado. A ameaça de que esses distúrbios se tornem mais coordenados e se transformem em conflitos de quarta geração – onde não há linhas de frente claras e a violência se espalha de forma difusa pelas cidades – é uma preocupação crescente para analistas de segurança. Isso exige que os governos europeus repensem as abordagens de integração, segurança e coesão social para prevenir uma escalada que possa evoluir para um conflito mais grave e prolongado.

A crescente intensidade das insurreições urbanas e os desafios associados à fragmentação social colocam a União Europeia numa posição complicada, especialmente quando se trata de responder com seus métodos convencionais de governança e gestão de crises, que muitas vezes priorizam o diálogo, a moderação e o respeito aos direitos civis. No entanto, quando essas abordagens são percebidas como ineficazes diante de distúrbios significativos, a confiança pública nas instituições europeias pode ser abalada. Estas insurreições estão a ser de tal maneira fortes que já tenho dúvidas que a União Europeia as possa vencer com os seus métodos convencionais. Viktor Órban está a ganhar cada vez mais adeptos, já para não falar de Marine Le Pen. Estes políticos advogam por políticas mais rígidas em termos de imigração, segurança interna e defesa da identidade cultural. Orbán, em particular, apresenta-se como um defensor de um modelo alternativo ao liberalismo dominante da UE, priorizando o que ele chama de "democracia iliberal", que enfatiza o controlo estatal, o nacionalismo e medidas mais duras contra movimentos disruptivos. Marine Le Pen e outros políticos de orientação semelhante na Europa capturam essa onda de insatisfação ao prometer respostas mais diretas e contundentes às questões de segurança e identidade. Para muitos cidadãos preocupados com a escalada dos distúrbios e a aparente ineficácia das abordagens tradicionais, essas figuras representam uma esperança de restabelecimento da ordem.

Se a União Europeia não encontrar um meio de responder eficazmente às insurreições e de lidar com a integração social e a segurança de forma mais robusta, há o risco de que a narrativa política se incline ainda mais para a direita, com o fortalecimento de políticas nacionalistas e autoritárias. Isso poderá redefinir o equilíbrio de poder dentro do bloco europeu, criando tensões entre estados-membros que compartilham diferentes visões sobre como enfrentar esses desafios. Além disso, "as no-go zones" estão a aumentar, em qua a polícia do Estado não entra, o que proporciona que aí se estabeleçam as bases operacionais de todo o tipo de gangues.

As chamadas "no-go zones", áreas onde a presença e a autoridade da polícia do Estado são limitadas ou inexistentes, tornaram-se uma preocupação crescente em várias cidades europeias. Esses espaços são frequentemente associados a regiões com alta concentração de comunidades imigrantes ou marginalizadas, onde fatores como desemprego, exclusão social e desconfiança nas autoridades contribuem para a criação de um ambiente onde as normas estatais têm pouco ou nenhum poder. Nessas zonas, a ausência de aplicação efetiva da lei cria um vazio e poder que pode ser explorado por gangues e redes criminosas que estabelecem as próprias regras. Isso não só prejudica a segurança e a coesão social, mas também desafia a soberania do Estado em manter a ordem dentro de seu próprio território. A presença de bases operacionais para atividades ilegais, como tráfico de drogas, tráfico de pessoas e outras formas de crime organizado, compromete ainda mais a capacidade de recuperação e a estabilidade dessas áreas.

A incapacidade ou a relutância das autoridades em intervir nessas zonas pode ser interpretada como uma fraqueza estrutural do Estado, o que, por sua vez, alimenta a percepção de que métodos convencionais de policiamento e políticas de integração falharam. Isso contribui para a popularidade de líderes que defendem políticas de "mão dura" e o reforço das fronteiras e da segurança interna.

No entanto, é importante reconhecer que a solução para o problema das "no-go zones" vai além do simples uso da força. Embora medidas de segurança possam ser necessárias, uma abordagem sustentável precisa também abordar as causas subjacentes, como a falta de oportunidades económicas, a integração cultural e o fortalecimento das instituições sociais. Sem isso, essas áreas continuarão a ser terreno fértil para a proliferação de redes paralelas que desafiam a autoridade do Estado e alimentam tensões maiores na sociedade.

A propósito da integração de migrantes na Europa



Manifestações proibidas durante três dias, a partir de sexta-feira, na sequência dos ataques aos adeptos do Maccabi Telavive que se deslocaram a Amesterdão para ver o encontro do seu clube contra o Ajax, para a Liga Europa. Os adeptos do Maccabi foram "atacados", e a polícia de choque teve de intervir para protegê-los e escoltá-los para hotéis. A autarca diz que os distúrbios fazem lembrar os pogroms da história contra os judeus. A polícia neerlandesa informou que cinco pessoas foram hospitalizadas e 62 foram detidas depois de os atacantes terem "visado sistematicamente os adeptos israelitas". Os adeptos do Maccabi, por sua vez, atacaram um táxi e incendiaram uma bandeira palestiniana na quarta-feira, um dia antes dos ataques generalizados contra israelitas.

Vídeos divulgados nas redes sociais mostram os adeptos do Maccabi a entoar cânticos racistas contra muçulmanos. Outros subiram a um edifício para retirar uma bandeira palestiniana. A autarca de Amesterdão diz que não há desculpa para o que considera serem atos criminosos que ameaçaram a vida e cultura judaicas. Uma avaliação de risco efetuada no mês passado não tinha detetado qualquer ameaça concreta. O rei dos Países Baixos, Willem-Alexander, estabeleceu uma ligação entre o Holocausto e a violência de quinta-feira à noite, dizendo que o país "falhou com a comunidade judaica". Em março, a inauguração de um novo museu do Holocausto em Amesterdão levou a manifestações pró-palestinianas em toda a cidade.

Aquilo que o analista John Robb havia dito há tempos – quando Merkel sob o elogio da esquerda acolheu mais de um milhão de migrantes: "A Alemanha acabou de lixar a Europa" – ressoou com muitas preocupações na época e continua a ser discutida. O gesto de Merkel foi amplamente elogiado pela esquerda e por setores humanitários como um exemplo de liderança moral e solidariedade num momento de crise global, especialmente diante da guerra na Síria e outras situações de instabilidade.

No entanto, como Robb e outros analistas apontaram, essa decisão trouxe implicações complexas e multifacetadas para a Europa. Entre os efeitos percebidos, houve um aumento na polarização política, com o fortalecimento de movimentos de extrema-direita e partidos nacionalistas que capitalizaram as preocupações com a integração de grandes números de migrantes. Questões de segurança, identidade cultural e a sobrecarga dos sistemas sociais e económicos em alguns países europeus alimentaram uma narrativa de insatisfação que muitos argumentam ter contribuído para mudanças no equilíbrio político, como o Brexit e a ascensão de líderes populistas. Um divisor de águas que desestabilizou politicamente a Europa, criando divisões profundas e uma reação que ainda molda o cenário político do continente.

A verdade é que a maioria são ainda jovens, desintegrados da cultura europeia, com a memória ainda fresca da violência nis seus países de origem, que não têm nada a perder. A sua fidelidade tribal desafia o Estado do acolhimento cuja cultura lhe é hostil. A integração de grandes contingentes de migrantes jovens acabados de chegar à Europa afigurava-se, sem dúvida, de uma envergadura titânica. Muitos desses indivíduos vinham de contextos onde a violência, a instabilidade política e a precariedade social marcava profundamente as suas vidas. Essa realidade dificulta naturalmente a adaptação ao ambiente europeu, que tem suas próprias normas culturais, sociais e legais, muitas vezes distintas das experiências e valores que esses jovens trazem consigo.

A sensação de desintegração e a dificuldade em se conectar com a sociedade de acolhimento podem levar alguns a se voltarem para formas alternativas de pertencimento, como redes comunitárias de base étnica ou tribal. Isso é reforçado pela existência de enclaves culturais onde a integração plena com os valores europeus é limitada, criando uma tensão entre as expectativas dos estados acolhedores e as realidades das comunidades migrantes. Além disso, a juventude de muitos desses migrantes pode significar uma predisposição a desafios específicos, como a busca por identidade e sentido em um ambiente que pode parecer hostil ou indiferente às suas necessidades.

É verdade que, em situações onde o sentimento de pertença ao estado acolhedor é fraco, a lealdade pode se voltar para formas mais imediatas e familiares de conexão, como a tribo, a família ou grupos com os quais compartilham experiências. É claro que muitos se esforçam e conseguem integrar-se, contribuindo para a sociedade e buscando construir uma vida estável e pacífica. A questão central para os estados europeus é encontrar maneiras eficazes de promover a integração, oferecendo oportunidades reais de participação social e económica, enquanto abordam os desafios de segurança e coesão social que possam surgir.

Manifestações de rua



A banalização das manifestações de rua promovidas pela esquerda nos finais do século XX e inícios do século XXI, acabou por se transformar numa armadilha contra si própria agora que o pêndulo virou para a extrema-direita com insurreições de acesso aberto. Quando manifestações se tornam recorrentes e perdem um foco claro ou um impacto efetivo acabam por minar a percepção da sua legitimidade e autenticidade. Com a viragem do pêndulo político para a extrema-direita, as insurreições de acesso aberto podem valer-se dessa normalização e, paradoxalmente, inverter a narrativa: o uso de protestos massivos e disruptivos como forma de ação política, antes associado à esquerda, passa a ser instrumentalizado por grupos que antes os criticavam.

Essas manifestações de direita geralmente surgem com um forte apelo emocional e um discurso de reação contra as instituições estabelecidas, sendo vistas por alguns como uma "recuperação" do espaço público e uma resposta aos avanços percebidos da esquerda. Contudo, essa transformação também traz riscos, pois as insurreições de acesso aberto podem ser menos controláveis e mais suscetíveis a radicalizações e violência, o que levanta questões sobre a estabilidade social e o papel do Estado na manutenção da ordem democrática.

 


Durante o protesto em que cerca de 130 mil pessoas exigiam a demissão de Carlos Mazón, presidente do governo da região, pelo atraso na resposta à tempestade DANA, viveram-se momentos de tensão, quando alguns manifestantes lançaram foguetes e lama contra a porta da Câmara Municipal de Valência. De acordo com vários meios de comunicação, as unidades anti-motim da polícia tiveram de intervir quando vários manifestantes tentaram incendiar um dos portões da Câmara Municipal de Valência. O jornal ABC afirma também que manifestantes atiraram latas de tinta vermelha contra a polícia.

A manifestação tem como participantes umas 40 organizações sociais e cívicas, além de sindicatos, e a porta-voz da comissão organizadora, Anna Oliver, explicou ao “El País” que o objetivo é “exigir responsabilidades, informação verídica e meios para as vítimas”, além de “denunciar a ignomínia do Governo valenciano que não avisou e que, com essa falta de previsão, provocou vítimas mortais”. A manifestação começou pelas seis da tarde e os incidentes terão aconteido umas três horas depois. Depois do ocorrido, a presidente da Câmara Municipal de Valência, María José Catalá, criticou os manifestantes que deixaram a fachada do edifício grafitada, com vidros partidos pelo arremesso de objetos e uma das portas em mau estado devido ao fogo de um dos foguetes.