Apesar de o comunismo ter colapsado com o fim da URSS, a utopia marxista manteve-se de pé nas universidades e certos media da ocidental Europa/América. Mesmo após o colapso da União Soviética, o ideal marxista continuou a ter relevância em certos círculos académicos e intelectuais ocidentais. A utopia marxista, com a sua crítica ao capitalismo e à luta de classes, encontrou terreno fértil em certos campus universitários americanos das costas oeste e leste. Essa persistência do marxismo pode ser explicada pelo facto de que, enquanto sistema teórico, o marxismo oferece uma estrutura crítica para analisar as relações de poder, produção e exploração, mesmo que as suas tentativas práticas tenham fracassado em grande escala.
Há paralelos interessantes entre o clima atual nos EUA e os anos finais da década de 1960. A dita "América profunda", muitas vezes associada às áreas rurais e mais conservadoras, está ressentida porque sente que foi deixada para trás, ou até desrespeitada, pelas agendas culturais e identitárias progressistas lideradas pela esquerda universitária do movimento pós-colonial, dos estudos culturais e da Teoria Crítica. A crise financeira de 2008, que se veio sobrepor às crónicas desigualdades sociais, deu novo fôlego a essas ideias, levando académicos e ativistas a revisitar as críticas marxistas ao neoliberalismo e à globalização.
Nos anos 60/70 do século XX, a Guerra do Vietname provocou intensas divisões culturais (movimentos pelos direitos civis, protestos contra a guerra, revolução sexual, etc.). Houve uma clara divisão entre uma América mais tradicional e outra mais progressista. A eleição de Ronald Reagan na década de 80 representou uma reação conservadora a essa "revolução cultural", os americanos que ele seria alguém que proporcionaria o regresso dos valores tradicionais, e restauraria uma América que muitos acreditavam estar a ser perdida. Hoje, vemos algo semelhante, com figuras como Donald Trump canalizando o ressentimento daqueles que se sentem marginalizados pelas mudanças culturais recentes, como as questões de género, raça e imigração. Da mesma forma que Reagan se posicionou como o defensor da "América profunda" contra o que muitos viam como excessos da contracultura, Trump faz um apelo semelhante ao prometer lutar contra o "politicamente correto" e as agendas progressistas. Isso cria um ciclo em que cada lado da cultura política americana reage contra o outro, com picos de tensão em momentos de profundas mudanças sociais e políticas. O medo voltou a instalar-se na cabeça de muitas pessoas, não apenas na América, mas também na Europa.
O resultada do mandato de Ronald Reagan acabou por ser surpreendente, se concordarmos que ninguém estava à espera que o Império Soviético ruísse da maneira como ruiu. Reagan foi um dos fautores do fim da Guerra Fria. A crise da América por via da perda da guerra do Vietname, a estagflação dos anos 1970 e o sentimento de derrota geopolítica deram a perceção aos americanos de fraqueza no seu poder internacional.Reagan, no entanto, desafiou essa narrativa. Sua política externa agressiva, marcada pela intensificação da corrida armamentista e pela retórica firme contra o "Império do Mal" (como ele se referia à URSS), jogou um papel importante na viragem dos acontecimentos. A crença de Reagan em aumentar a pressão económica e militar sobre a União Soviética, em vez de buscar concessões, foi um divisor de águas. A "Iniciativa de Defesa Estratégica" (apelidada de "Guerra nas Estrelas") também era vista como um esforço ousado para explorar os limites da capacidade soviética de manter o ritmo com a tecnologia militar americana.
Poucos estavam à espera que o bloco soviético se desintegrasse tão depressa. Mas a verdade é que - a fragilidade económica da URSS, combinada com a pressão externa dos EUA, e as reformas internas de Mikhail Gorbachev (Perestroika e Glasnost) - tudo acabou por contribuir numa convergência colossal. Quando o Muro de Berlim caiu em 9 de novembro de 1989, o processo acelerou-se de tal forma que na noite de 25 de dezembro de 1991a bandeira soviética era retirada do mastro no Kremlin. Ficou claro que os EUA haviam emergido como vitoriosos na Guerra Fria, algo que poucos teriam previsto no início da década de Reagan. Portanto, a era Reagan, embora inicialmente vista com ceticismo por muitos analistas, não apenas redefiniu a estratégia dos EUA na Guerra Fria como também consolidou a posição dos Estados Unidos como a única superpotência mundial após o colapso soviético.
As conjunturas estão sempre a surpreender os pensadores situacionistas, que raramente acertam no devir da política. A política é profundamente imprevisível, e as conjunturas históricas frequentemente surpreendem até os analistas mais experientes. O fenómeno reflete uma limitação inerente à análise política, que é constantemente desafiada pela complexidade e fluidez dos eventos. Um dos grandes problemas que os analistas enfrentam é a dificuldade de levar em conta todas as variáveis que influenciam os desdobramentos políticos: fatores económicos, sociais, culturais, ideológicos, e até tecnológicos, entre outros. A história é repleta de exemplos em que previsões falharam, desde a incapacidade de prever o colapso da URSS até o impacto transformador dos atentados de 11 de setembro de 2001. Ou a recente ascensão do populismo em várias democracias ocidentais.
Estes tipos de cenários ocorrem porque os sistemas políticos são caóticos e não seguem trajetórias lineares. Pequenos eventos ou decisões podem desencadear mudanças sísmicas, e a política global está frequentemente sujeita a forças que operam além do controlo dos próprios atores políticos. Além disso, os acontecimentos são muitas vezes moldados por contingências e por figuras inesperadas que surgem no cenário, alterando o curso da história. A imprevisibilidade das conjunturas é o que torna a política tão desafiadora para a gente que gosta de pensar. Marxistas, liberais, conservadores e outros grupos ideológicos tentam aplicar modelos interpretativos que, embora úteis para entender tendências, muitas vezes falham em capturar a dinâmica imprevisível de eventos específicos. Em essência, os "pensadores situacionistas" ou aqueles que tentam compreender a conjuntura atual se deparam com a complexidade do real, onde forças contraditórias se encontram, e o devir se revela como um espaço onde o inesperado prevalece, sempre escapando das molduras teóricas fixadas na indolência do tempo.
O "Rust Belt" a dar lugar ao "One Belt One Road" é uma ironia subtil muito poderosa. O "Rust Belt" dos Estados Unidos simboliza o declínio industrial das regiões que, no século XX, foram o coração da produção manufatureira americana. Essas áreas, que prosperaram com a industrialização, entraram em declínio nas últimas décadas devido à globalização, desindustrialização e o deslocamento de empresas para países com mão de obra mais barata. O "Rust Belt" tornou-se um símbolo de estagnação, ressentimento e perda de oportunidades, contribuindo para a emergência de figuras políticas como Donald Trump, que prometeram revitalizar essas regiões.
Por outro lado, o "One Belt, One Road" (ou Iniciativa do Cinturão e Rota) é o grandioso projeto geopolítico e económico da China, que busca reviver as antigas rotas comerciais da Rota da Seda e expandir a influência chinesa globalmente por meio de investimentos em infraestrutura, comércio e desenvolvimento económico em dezenas de países. Enquanto o "Rust Belt" representa a decadência da antiga hegemonia industrial americana, o "One Belt, One Road" reflete a ascensão da China como uma potência económica e geopolítica global, capaz de ditar novas dinâmicas de poder no século XXI.
A ironia reside no contraste entre esses dois mundos: enquanto uma potência industrial (os EUA) luta para reverter o seu declínio nas regiões que antes lideravam o crescimento económico global, outra (a China) surge com uma visão expansiva de integração e desenvolvimento global. O slogan chinês evoca um sentido de progresso e expansão, enquanto o americano carrega o peso da nostalgia e da perda. É quase como se o centro de gravidade da economia global estivesse mudando simbolicamente de um cinturão ("belt") enferrujado para um novo, dinâmico e globalmente interconectado. Esse contraste também reflete a deslocação de poder económico e industrial do Ocidente para o Oriente, com a China aproveitando a sua força económica para construir novas redes globais enquanto os EUA enfrentam desafios internos e externos.
O que é espantoso é a China marxista ter florescido a par do neoliberalismo de Reagan e Tatcher. O florescimento simultâneo do neoliberalismo, representado por figuras como Reagan e Thatcher, e da utopia marxista na China, teve também como contraponto as próprias universidades onde Reagan e Tatcher faziam os seus estragos ao comunismo com o neoliberalismo. E o que aconteceu de intrigante foi a luta nessas universidades do marxismo contra o neoliberalismo. Enquanto o neoliberalismo promovia o mercado livre, a desregulamentação e o individualismo económico, as ideias marxistas, com o seu foco na luta de classes e na crítica ao capitalismo, mantiveram um apelo significativo, especialmente em ambientes intelectuais das academias ocidentais. Essa coexistência paradoxal pode ser explicada por uma série de fatores.
O avanço das políticas neoliberais, com o seu foco na redução do papel do Estado e na promoção do mercado, gerou resistência intelectual. As reformas de Reagan e Thatcher foram vistas como aprofundadoras das desigualdades sociais e da precarização do trabalho, fornecendo o terreno para que académicos e ativistas revisitassem as críticas marxistas ao capitalismo. Assim, enquanto o neoliberalismo ganhava força política, o marxismo florescia como uma ferramenta de oposição teórica e crítica. Ora, falamos de universidades, mas para sermos rigorosos apenas dizem respeito às humanidades e ciências sociais. Nada disso tem a ver com as ciências físicas e duras em que as matemáticas e os algoritmos estavam a fazer o seu trabalho já fora das academias em vales lucrativos como o famoso Silicon Valley. Eram ambientes relativamente protegidos pelos próprios mercados, permitindo a continuidade do sistema capitalista. Enquanto o mundo político e económico adotava o neoliberalismo, os académicos dos estudos culturais e ciências sociais perdiam-se em discussões alternativas e teóricas sob o patrocínio de Karl Marx. O marxismo era a narrativa mais atraente para compreender as injustiças sociais que o neoliberalismo parecia aprofundar.
A coexistência entre o avanço do neoliberalismo e o florescimento da crítica marxista pôde ser vista como parte de uma dialética social e intelectual. Enquanto o poder político e económico seguia um caminho, as críticas intelectuais e académicas procuravam resistir, apresentando alternativas teóricas, mesmo que essas permanecessem maioritariamente dentro das universidades e não ganhassem força política significativa na sociedade mais ampla.