segunda-feira, 21 de julho de 2025

A deriva populista e as relações de causa e efeito - passado ~> presente


A narrativa - que imputa aos protagonistas políticos atuais todo o mal que está a acontecer agora nas nossas cidades, com a ascensão da extrema direita - é falsa. Como se não houvesse uma continuidade entre passado e presente. E esse passado foi um longo período em que todo o ocidente andou anestesiado com as narrativas populistas de esquerda eufemisticamente apelidado de esplendor wokista. Portanto, a esquerda, que agora está em perda a favor da extrema-direita, comporta-se como se fosse agnóstica em relação aos mecanismos de causa e efeito. Como se cada momento partisse do zero, e a lástima ética que estamos a viver não tivesse nada a ver com as incompetências políticas que a precederam. 

A tendência de alguns setores progressistas é para interpretarem a ascensão da extrema-direita, e do autoritarismo contemporâneo, como um “fenómeno ex nihilo”. Como se estivesse desligado das dinâmicas políticas e culturais que o antecederam, dominadas por uma hegemonia cultural e política progressista, muitas vezes expressa por meio de narrativas populistas de esquerda, e especialmente marcada pela ascensão do "wokismo". O avanço da extrema-direita e do autoritarismo é mais uma reação do que uma irrupção espontânea. Reação a uma hegemonia anterior, frequentemente marcada por discursos que muitos sentiram como moralistas, condescendentes, ou descolados da realidade material de grande parte da população. O campo progressista -- ao dominar o discurso cultural das duas primeiras décadas deste novo milénio, especialmente nas universidades, nos média não apenas do entretenimento das audiências, mas também da opinião informada -- gerou um ressentimento em certos segmentos da sociedade. Ao assumirem uma postura muitas vezes intransigente em temas identitários e culturais, acabaram afastando setores populares, que antes eram a sua base, e abriram espaço para que discursos mais autoritários ou nacionalistas aparecessem.

Ignorar essa relação de causa e efeito é uma forma de negar responsabilidade histórica. E essa negação pode, paradoxalmente, fortalecer ainda mais a narrativa da direita radical, que se apresenta como resposta legítima a décadas de imposições culturais e políticas por elites progressistas da moral certa. Claro que isso não exime a extrema-direita de suas próprias patologias e perigos. Mas ajuda a compreender o fenómeno de forma mais completa, recusando a ideia simplista de que estamos diante de um “mal absoluto” que surgiu do nada, ou que a história começou com Donald Trump, Giorgia Meloni ou André Ventura.

A História Não Começou Ontem: a extrema-direita é uma reação/resposta à hegemonia cultural da esquerda. Durante décadas, assistimos à consolidação de uma hegemonia cultural e ideológica de esquerda, especialmente nas universidades, nos meios de comunicação, na indústria do entretenimento e até nos tribunais da moral pública de uma certa bolha mediática. Esse domínio consolidou-se através de um discurso que, embora partisse de motivações justas, como a defesa das minorias, o combate ao racismo, o feminismo ou a inclusão LGBTQIA+, degenerou frequentemente num moralismo punitivo, numa ortodoxia ideológica, e num afastamento progressivo da realidade vivida pela maioria das pessoas. Foi o que se veio a chamar de “wokismo”. Não foi apenas uma luta contra injustiças históricas; foi também, muitas vezes, uma tentativa de impor uma nova gramática moral sem debate, rotulando discordantes como atrasados, opressores, ou inimigos da humanidade. Não se tratava mais de convencer, mas de corrigir, silenciar, envergonhar. A linguagem do ressentimento começou, paradoxalmente, a brotar não entre os oprimidos, mas entre os acusados. Mas o alvo acabou por se deslocar para as camadas populares mais desfavorecidas, tradicionalmente uma base significativa da esquerda, agora convertidas em alvos de desprezo cultural. Por conseguinte, trata-se de uma narrativa falsamente humanista, porque hipócrita e deslocada da realidade da vida nua e crua dessas pessoas.

É neste contexto que a extrema-direita avança. Não como um projeto coerente, mas como reação instintiva, muitas vezes caótica, ao que foi percebido como uma imposição moralista e autoritária da esquerda cultural elitista. Quando as classes médias e populares se sentem humilhadas, não apenas exploradas, o terreno fica lavrado para a sementeira de demagogos que prometem restaurar a "ordem natural", resgatar valores tradicionais e atacar as "elites progressistas". Ignorar essa cadeia de causa e efeito é um erro analítico e uma falta de honestidade política. A história não começou com Trump, Le Pen, Meloni ou Ventura. Eles são o sintoma, não a origem. Se a esquerda não for capaz de refletir criticamente sobre os excessos da sua hegemonia cultural do passado, continuará presa a uma narrativa autoindulgente e incompleta, incapaz de compreender o fenómeno. E sem essa compreensão não será capaz de enfrentar estes anos que se nos apresentam pela frente de um mundo muito perigoso, mas do qual a esquerda também não se pode eximir da quota de responsabilidades dos fatores que estiveram na base do "como se chegou aqui".

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