Como a abertura promovida por Mohammed bin Salman (MbS) na Arábia Saudita está a afetar, direta e indiretamente, as comunidades muçulmanas fora da Península Arábica, especialmente as que vivem na diáspora europeia e africana, e aquelas que olham para a Arábia como farol religioso e cultural? Esta é a pergunta que muitos analistas da geopolítica fazem. Historicamente, a Arábia Saudita – por abrigar Meca e Medina – tem sido vista como o coração espiritual do Islão sunita. Isso confere-lhe uma autoridade simbólica única.
Muitos muçulmanos, mesmo em países não árabes, seguem modelos culturais, morais e até de vestuário oriundos da Arábia. A doutrina wahhabita, exportada pelo reino ao longo do século XX, influenciou muitas mesquitas e centros islâmicos na Europa, África, Ásia e nas Américas. Isso explica por que qualquer mudança no discurso e na prática saudita tenha efeitos de eco em outras partes do mundo islâmico.
A atual liderança saudita procura romper com o purismo wahhabita tradicional, defendendo uma versão do Islão mais moderada e “normalizada”. E isso tem desencadeado efeitos sobre o discurso religioso nas diásporas com o abandono gradual do wahhabismo clássico. Em países como a França ou a Bélgica, onde havia forte influência do islamismo salafita financiado pelos sauditas, hoje começa a haver recuo dessa influência, e maior espaço para vozes locais mais integradas e pluralistas. Em comunidades muçulmanas fora da Arábia, há choques entre líderes mais velhos (formados no conservadorismo saudita) e jovens imãs ou ativistas que rejeitam o autoritarismo religioso do passado. Se na Arábia hoje há música pop, cinema e mulheres sem abaya na televisão oficial, muitos jovens muçulmanos na Europa perguntam: “Por que razão a nossa comunidade aqui deve continuar a viver como se estivéssemos nos anos 80?”
Curiosamente, a abertura da Arábia também provocou reações de rejeição ou resistência em segmentos mais ortodoxos, que a veem como traição religiosa por submissão ao Ocidente. A abertura de MbS está a ter um efeito desestabilizador, mas também renovador nas comunidades muçulmanas fora da Arábia. É uma mudança que pode dar frutos a médio prazo, sobretudo se surgir uma teologia islâmica moderna enraizada nas realidades locais – algo que muitos estudiosos muçulmanos europeus e africanos já defendem. Há exemplos concretos de comunidades muçulmanas na Europa, incluindo Portugal, onde se pode observar este movimento de reinterpretação e abertura interna, com especial foco em jovens líderes, espaços de culto alternativos, e mudanças de atitude face à sexualidade, papel da mulher, arte e cidadania.
A comunidade muçulmana de Lisboa é historicamente diversa: inclui descendentes de indianos de Moçambique, guineenses, marroquinos, paquistaneses, entre outros. A Mesquita Central de Lisboa (Mesquita de Alvalade) continua a ser o principal centro, com orientação sunita tradicional, mas moderada e dialogante. Jovens muçulmanos lusófonos, muitos deles universitários, têm criado fóruns de debate sobre identidade muçulmana em Portugal. Em eventos organizados pela Comunidade Islâmica de Lisboa, já se discutem temas como violência doméstica, cidadania plena das mulheres e sexualidade saudável – assuntos antes tabu. Jovens muçulmanos participam ativamente no debate público nacional (ex: a socióloga Zahra Meghji), defendendo um Islão contextualizado na democracia portuguesa.
Nas últimas décadas, tem surgido uma nova geração de muçulmanos nascidos ou crescidos na Europa, que conciliam a sua identidade religiosa com os valores democráticos e seculares dos países onde vivem. Muitos desses jovens atuam como mediadores culturais entre os valores islâmicos herdados dos pais e avós e as normas sociais e educativas dos países europeus. Na Bélgica e nos Países Baixos, há ONGs dirigidas por muçulmanos jovens que trabalham com educação sexual em comunidades islâmicas, explicando que falar sobre sexualidade não é o mesmo que promover libertinagem. É uma forma de proteger as crianças de abusos e promover o consentimento e o respeito. O Islão, nas suas fontes clássicas, reconhece a sexualidade como parte da vida humana, desde que guiada por ética e responsabilidade.
Alguns intelectuais muçulmanos contemporâneos vêm defendendo a necessidade de reinterpretar os textos religiosos à luz do contexto moderno. Argumentam que o Alcorão e os Hadiths não devem ser lidos de forma literalista e que muitos dos tabus culturais associados à sexualidade são mais culturais do que religiosos. O teólogo Khaled Abou El Fadl, professor da UCLA, defende que o Islão não é incompatível com os direitos humanos, inclusive no que diz respeito à educação sexual, se esta for feita com responsabilidade e dignidade. Já a escritora Asma Lamrabet (Marrocos) defende que muitas interpretações tradicionais que oprimem a sexualidade feminina são heranças patriarcais, e não prescrições islâmicas genuínas. Em países como o Reino Unido, Alemanha e Suécia, alguns professores e educadores muçulmanos praticantes participam ativamente na educação sexual, com o objetivo de tornar os conteúdos mais aceitáveis para alunos muçulmanos. Garantir que os valores centrais (respeito, saúde, consentimento) sejam compreendidos como compatíveis com a fé islâmica. O argumento central desses educadores é: “Se não educarmos os nossos filhos sobre sexualidade com base no respeito e na saúde, outros farão isso por nós, talvez de forma errada ou destrutiva.”
Desde 2016, MbS lançou o ambicioso programa "Vision 2030". Diversificar a economia para além do petróleo. Reduzir a dependência do Estado. Criar uma sociedade mais "moderna e vibrante". Atrair investimento estrangeiro e turismo internacional. Isso tem implicações diretas nas áreas de cultura, costumes e educação. Mulheres podem conduzir desde 2018 (algo impensável antes). Abolição da polícia da moralidade (mutawa) tal como existia, que impunha regras rígidas no espaço público. Eventos culturais e desportivos abertos a mulheres e famílias, como concertos, cinemas (reabertos em 2018) e Fórmula 1. Estímulo ao emprego feminino. Hoje há mulheres sauditas no setor bancário, no exército, e em cargos administrativos do Estado.
Uma das mudanças mais notáveis é que o Estado assumiu o controlo das decisões religiosas, antes monopolizadas por ulemas conservadores. O príncipe declarou publicamente que "não é mais necessário seguir interpretações rigorosas do Islão" em tudo, e que as leis civis devem refletir os tempos atuais. Práticas como o uso obrigatório da abaya (túnica feminina) em espaços públicos deixaram de ser exigidas, embora ainda comuns. O discurso religioso público está a ser gradualmente "desradicalizado", segundo palavras do próprio MbS. No entanto, a liberdade religiosa plena não existe: não há liberdade para conversão nem para culto público não islâmico.
Em menos de 10 anos, passou-se de uma sociedade austera e monástica para um país com eventos de escala global. MbS está a tentar criar uma nova imagem para o país. NEOM: cidade futurista no deserto, 500 mil milhões de dólares investidos.
O nome NEOM foi construído a partir de duas palavras. As três primeiras letras formam o prefixo latino neo, que significa "novo". A quarta letra é a abreviação de "Mostaqbal" (em árabe: مستقبل), uma palavra árabe que significa "futuro”. É uma cidade e zona económica transnacional planeada de 26 500 km2 a ser construída na região fronteiriça através de uma ponte proposta através do golfo de Acaba. Os promotores da iniciativa afirmam que será um centro de negócios global localizado numa das áreas de trânsito económico mais importantes do mundo (o mar Vermelho), onde flui quase um décimo do comércio mundial.
E assim é -- The Line (em árabe: ذا لاين) : A Linha -- uma cidade inteligente linear em construção desde abril de 2022, cuja principal premissa é a inexistência de ruas e carros e, também, o uso exclusivo de energias limpas. A cidade de 170 quilómetros de extensão faz parte do projeto: Saudi Vision 2030 - que criará cerca de 460 mil empregos e adicionará cerca de 48 biliões de dólares ao PIB do país. A Linha está planeada para ser o primeiro desenvolvimento de um projeto de 500 biliões de dólares. Os planos da cidade preveem uma população de 9 milhões. Os trabalhos de escavação foram iniciados ao longo de toda a extensão do projeto em outubro de 2022. O projeto tem enfrentado críticas sobre seu impacto no meio ambiente e na população atual da área, bem como dúvidas sobre sua viabilidade tecnológica e económica.
Turismo internacional em regiões como AlUla, antes fechadas ao público. Promoção da Arábia como hub de inovação, desporto e negócios - sediando até a Expo 2030 e a candidatura para o Mundial 2034.
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