Na Califórnia, um laboratório de progressismo durante décadas, as cidades de São Francisco e Los Angeles foram símbolos desse progressismo. Leis protetoras para todas as minorias imagináveis, descriminalização de drogas leves, sanções contra a polícia, políticas de habitação tolerantes (ou negligentes), e acolhimento institucional a movimentos: Defund the Police; wokismo universitário e corporativo.
São Francisco, em particular, foi o santuário daquilo que Donald Trump abomina: o liberalismo cultural radical, a permissividade moral, a legalização de comportamentos marginais, e a celebração da diversidade em moldes ideológicos. No entanto, esse modelo está a colapsar sob o peso das suas próprias contradições. Cenas de crise urbana extrema, com sem abrigo nas ruas, explosão da criminalidade, saques em plena luz do dia, uso aberto de drogas pesadas e êxodo de empresas e cidadãos estão a transformar antigos bastiões democratas em palcos de desencanto popular. Los Angeles, com um perfil semelhante, começa a viver um movimento parecido. O eleitorado está a exigir "ordem", "decência", "autoridade". São palavras que há poucos anos soariam como tabu político nesses ambientes. O que vemos, na prática, é uma guinada para a direita, ainda que parcial, mesmo em zonas historicamente dominadas pela esquerda progressista.
Estes dois exemplos mostram quão paradoxais são as ideologias. O paradoxo aqui é revelador: a Califórnia encarna a utopia progressista que, ao tornar-se realidade institucional, ultrapassou limites sociais, económicos e humanos. A criminalidade, a desordem urbana e a insegurança não afetam os milionários do Vale do Silício, mas as camadas médias e populares. Justamente aquelas que começam a virar as costas ao modelo político dominante. E aparentemente a classe média baixa dá uma guinada conservadora, não por a direita conservadora ser virtuosa, mas por parecer realista. As pessoas não votam tanto por ideias abstratas, mas pela percepção concreta de ordem, segurança e sobrevivência. Estamos, de facto, a viver hoje, na América e na Europa, um momento de viragem política marcado pela ascensão da extrema-direita, do autoritarismo e do discurso reacionário. Em muitos círculos progressistas, este fenómeno é tratado como um mal súbito - uma irrupção de irracionalidade ou fanatismo que teria irrompido, sem mais nem menos, diretamente da cabeça dos populistas e demagogos de direita. Mas essa leitura, ainda que conveniente, é falsa porque ignora que toda a reação é, por definição, resposta a algo. E o que estamos a ver é uma reação à hegemonia cultural e política da esquerda que marcou as últimas décadas.
Durante muito tempo, o campo progressista - sobretudo nos Estados Unidos - impôs-se como a voz moral dominante. Em universidades, tribunais, redações e estúdios de cinema, consolidou-se uma ortodoxia que promovia inclusão, diversidade e reparações históricas. A luta por justiça social transformou-se em doutrina cultural, e esta, por sua vez, foi aplicada com crescente rigidez: cancelar, silenciar, rotular passaram a ser formas legítimas de impor novos valores. Assim, a guinada à direita - nos EUA como na Europa - não pode ser compreendida sem entender os fracassos percebidos (ou reais) de políticas progressistas quando colocadas à prova. Los Angeles e São Francisco são hoje, de certo modo, exemplos vivos do esgotamento de uma hegemonia cultural que, por muito tempo, se considerou moralmente inatacável.
O que começou como combate a injustiças históricas acabou por degenerar num moralismo autoritário e excludente. O discurso progressista - em vez de conquistar os moderados, os remediados, os "vive e deixa viver" - passou a demonizar quem fosse conservador de direita. Como se o conservador de direita não tivesse a mesma legitimidade, e o mesmo direito de um lugar na cidade como o progressista de esquerda. E assim se promoveu o ressentimento a apregoar as virtudes morais de esquerda. Em nome da justiça social, instalou-se uma nova censura; em nome da diversidade, impôs-se uma uniformidade ideológica. Nenhum lugar simboliza melhor este processo do que a Califórnia — e, em particular, as cidades de São Francisco e Los Angeles.
À medida que esse modelo se cristalizou, as suas contradições vieram à tona. A crise dos sem abrigo, a proliferação de acampamentos urbanos, o aumento da criminalidade, a tolerância com pequenos delitos que se tornaram rotina, e um sentimento generalizado de insegurança e abandono corroeram a legitimidade do projeto progressista. As consequências são visíveis: empresas estão a abandonar São Francisco, lojas fecham por medo de saques, e mesmo os residentes liberais começam a exigir mais policiamento, medidas de repressão, leis de ordem pública. Em Los Angeles, as eleições mais recentes demonstram esse movimento de cansaço: o eleitorado, embora ainda maioritariamente democrata, elegeu autoridades com discurso mais firme contra o crime, e crescem os apelos por políticas "realistas", antes demonizadas como "de direita".
Sem comentários:
Enviar um comentário