quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A Estética em Baumgarten e os seus particulares



A Estética, como conceito, nasceu como um discurso sobre o corpo. Para Baumgarten, o termo grego “aisthesis” não tem a ver com arte, mas com a sensação e percepção humanas em contraponto com o pensamento e o domínio dos conceitos e das ideias. Assim, no tempo de Baumgarten, em meados do século XVIII, a estética não é tanto a distinção entre “arte” e “vida”, mas entre material e imaterial; entre coisas e pensamentos; sensações e ideias; entre o que está ligado à nossa vida e o que eleva para recessos da mente sombria. 
Alexander Gottlieb Baumgarten (Berlim, 17 de julho de 1714 –  Frankfurt do Oder, 27 de maio de 1762) foi um filósofo e educador alemão que cunhou o termo estética e estabeleceu essa disciplina como um campo distinto da investigação filosófica.

A demanda por uma estética, na Alemanha do século XVIII, é, entre outras coisas, uma resposta ao problema do absolutismo político. A Alemanha desse período era um território com um emparcelamento de estados feudais absolutistas, marcados por particularismos idiossincráticos de uma cultura que não era comum mas tinha muitas coisas em comum como a língua germânica e o Sacro Império Romano Germânico. Os príncipes ligavam os seus caprichos ao Sacro Império através de intrincadas burocracias. E o campesinato era mantido em condições de submissão feudal. Abaixo deste controlo autocrático, uma burguesia ineficaz era imobilizada pela política mercantilista da nobreza, com a indústria controlada pelo Estado e o comércio pelos impostos submetido ao poder generalizado dos tribunais. 

Entretanto, os estratos profissionais e intelectuais do povo alemão iam crescendo a bom ritmo, produzindo, pela primeira vez, no final do século XVIII, uma casta considerável de gente erudita que exercia uma liderança cultural e espiritual para além dos interesses da aristocracia. Sem bases no poder político e económico, no entanto, esse esclarecimento burguês mantinha-se em muitos aspetos hipotecado ao absolutismo feudal, marcado por um profundo respeito à autoridade. O caso de Immanuel Kant, corajoso Aufklärer e súbdito dócil do rei da Prússia, pode ser tomado como o pináculo do paradigma. O que germina no século XVIII com o novo e estranho discurso da Estética não é um desafio à autoridade política. No entanto, pode ser lido como sintomático do dilema ideológico inerente ao poder absolutista. Este poder necessita, para seus próprios propósitos, de algo que dê conta da vida “sensível”, pois sem um entendimento dela nenhum domínio pode ser seguro. O mundo dos sentimentos e das sensações não pode ser simplesmente ignorado como “subjetivo”. Kant, desdenhosamente, desmascara o “egoísmo do gosto” catapultando-o para dentro do escopo da crítica da razão.

E é assim que Baumgarten agarra a abstração genérica da Estética à Razão, e os seus particulares aos sentidos. A Estética, sendo agarrada pela Razão, estende-se aos sentidos numa espécie de fusão. Na sua interpenetração orgânica, os elementos da representação estética resistem àquela discriminação em unidades discretas característica do pensamento conceptual. A Estética, escreve Baumgarten, é a “irmã” da Lógica, uma espécie de rácio inferior da razão no nível das sensações. Sua função é ordenar este domínio em representações claras ou perfeitamente determinadas, de uma forma semelhante às operações da razão propriamente dita. A Estética nasceu do reconhecimento de que o mundo da perceção e da experiência não pode ser simplesmente derivado de leis universais abstratas, mas requer um discurso mais apropriado à manifestação dos particulares ao nível do corpo. Como uma espécie de pensamento concreto, ou análogo sensual do conceito, a estética participa ao mesmo tempo do racional e do real, suspensa entre os dois. Podemos concordar sobre o belo, não a partir de argumentações e análises, mas bastando olhar para ver, nascendo de um consenso espontâneo da própria vida corpórea, trazendo consigo a promessa de que essa vida, apesar de toda a sua obscuridade e arbitrariedade aparentes, possa funcionar, de algum modo, muito semelhante a uma lei. Isto é, nós podemos ver parte do significado da Estética entre o rigor do entendimento e a errância fugidia dos sentimentos.

Husserl em “A Crise da Ciência Europeia” procura precisamente resgatar o mundo-da-vida à opacidade da razão ocidental, desligada de modo alarmante das suas raízes somáticas. A filosofia não pode cumprir o seu papel fundacional se deixar o mundo-da-vida abandonado ao anonimato. O corpo, antes mesmo de chegar a pensar, é sempre um organismo sensivelmente experimentador e está em seu mundo de um modo bastante diverso do de um objeto aprisionado no espaço e no tempo. O conhecimento científico de uma realidade objetiva é sempre fundado numa intuição dada a priori a um corpo preceptivo situado no mundo. Husserl observa que um racionalismo mal dirigido ignorou este facto.

Husserl, vítima do fascismo nos anos de 1930, avisa que é preciso recuperar o ‘Lebenswelt’ para uma nova “ciência universal da subjetividade”. Husserl adverte para considerarmos o mundo-da-vida, que nos envolve de modo concreto, intuitivamente, com seus seres reais.  ele fala, no sentido original do termo, como um esteta. Não se trata, certamente, de nos abandonarmos ao “fluxo heraclitiano totalmente subjetivo e aparentemente incompreensível” de nossa experiência quotidiana, mas de formalizá-lo rigorosamente. Pois o mundo-da-vida mostra uma estrutura geral, e esta estrutura, à qual tudo o que existe relativamente está ligado, não é relativa.

Será deixada a Merleau-Ponty a tarefa de desenvolver este “retorno à história vivida e à palavra falada”. Ao fazê-lo, ele deve colocar em questão a pretensão de que se trata de “um passo preparatório a ser seguido pela atividade propriamente filosófica da constituição universal”. Os costumes, as devoções, a intuição e a opinião devem agora dar coerência a uma ordem social, que de outro modo se mantém atomizada e abstrata. Ao derrubar o poder absolutista, cada sujeito deve funcionar como sua própria sede de autogoverno. Contar com o sentimento como fonte da coesão social não é algo tão precário quanto parece. É na própria carne que se pode criar uma existência verdadeiramente cooperativa.

Não é fácil aderir ao apelo do gosto e ao sentimento como alternativas à autocracia. Há uma enorme diferença política entre uma lei que o sujeito realmente cria para si mesmo dentro do estilo democrático radical, e um decreto que desce do alto e é simplesmente “legitimado” pelo sujeito. O consenso livre pode ser assim a antítese do poder opressor, ou uma forma sedutora de conluio com ele. A Estética é assim, desde o início, um conceito contraditório, de dupla entrada. A Estética oferece à classe média um modelo extremamente versátil para as suas aspirações políticas, exemplificando novas formas de autonomia e autodeterminação, modificando as relações entre lei e desejo, moralidade e conhecimento. E assim se reformulam os vínculos entre o individual e o coletivo, revendo as relações sociais com base nos costumes, nos afetos e na simpatia.

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