segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O mundo nem tanto essencial como relacional



Essencialismo não significa forçosamente que todas as propriedades de uma coisa são essenciais a ela. Mas também é excessivo assumir que há sempre um hiato intransponível entre o conhecedor e o conhecido. Podemos concordar com Hegel: o mundo é relacional por natureza, e o conhecimento também. Não se pode afirmar que há sempre uma propriedade central que caracteriza aquilo que uma coisa é. 

O essencialismo não é necessariamente uma forma de reducionismo. É conhecido o exemplo do ‘barco de Teseu’. O navio com que Teseu e os jovens de Atenas regressaram de Creta tinha trinta remos, e foi preservado pelos atenienses até ao tempo de Demétrio de Falero. À medida que partes do navio apodreciam eram substituídas por tábuas novas. Os filósofos discutiam o ser e a essência das coisas quando se lembraram de utilizar o barco de Teseu como modelo prático da discussão teórica. O que podia diferenciar o barco inicial do barco atualmente existente? Ao fim de muito tempo, o mesmo barco já não tinha nada do barco inicial. Assim, não podia ser a substância material o elemento essencial da identidade do navio, mas sim a sua forma. Ou o seu nome. Todas as tábuas foram substituídas por tábuas novas ao longo do tempo. Será que isso modificou a natureza essencial do barco?

Agora passemos para a natureza humana. Podemos argumentar que o que se considera essencial nos seres humanos e em suas instituições varia historicamente. Não se encontram muitos filósofos que duvidariam que existem certas propriedades que fazem de uma coisa o que ela é, ou que as coisas que pertencem à mesma classe devem ter algo em comum, mesmo que esse algo não passe de uma série de “semelhanças de família”. A ideia de essencialismo não significa forçosamente que todas as propriedades de uma coisa são essenciais a ela. Por exemplo, Karl Marx defendia ideias essencialistas; Jeremy Bentham, um utilitarista, era um crítico convicto do essencialismo; John Locke, pai do liberalismo inglês e investidor no comércio de escravos, acreditava que algumas propriedades eram essenciais, enquanto outras eram meramente nominais ou contingentes. 

Uma essência humana é ser cultural. Não porque a cultura seja tudo para os seres humanos, mas porque a cultura faz parte da sua natureza. A natureza humana é sempre corporizada em algum modo cultural específico, assim como todas as línguas que se falam são específicas. Certo tipo de humanistas liberais desvalorizam isso, afirmando que existe uma essência central de valores imutáveis por baixo da insignificância relativa de nossas diferenças culturais. Isto dificulta a nossa visão do que se propõe aqui como culturalmente específico. Afirmar que todas as línguas são específicas significaria que não há essa coisa genérica chamada linguagem que é única na vida animal. 

Departamentos das academias de estudos culturais, de cultura pós-moderna, que ensinam uma forma de nominalismo filosófico através de categorias gerais irreais, acabaram por imprimir um preconceito em relação ao que os empiristas modernos chamaram factos. Conceitos como “feminismo”, que cobrem um campo complexo de crenças e atividades, geraram imensas controvérsias e desentendimentos quanto ao significado de iluminismo e modernidade. Uma linguagem “perfeita” não teria qualquer serventia para a vida social. Hoje em dia podemos encontrar pessoas que rejeitam a teoria do valor do trabalho, a ideia da falsa consciência, o modelo de base e superestrutura, a noção de revolução política, os princípios do materialismo dialético, a doutrina do conflito entre as forças e as relações de produção. E essas pessoas ainda insistem em se intitular marxistas. Por isso, não basta dizer-se feminista e ao mesmo tempo obrigar mulheres a trabalhar em excesso em troca de um salário de fome. De feminista não teria nada, embora assim pensasse. Não acreditaríamos nele, por mais que proclamasse com impostura a validade de sua experiência. O pós-modernismo opõe-se ao essencialismo; mas também se opõe às metanarrativas da razão crítica universal. 

Quase ninguém acredita que a História vai deslizando tranquilamente para um objetivo predeterminado. Mas todo o mundo acredita em propósitos e intenções, de projetos definidos e direcionados por seus fins específicos. E a maioria das pessoas, salvo alguns epígonos do estruturalismo, aceitam a noção de condições necessárias: a proposição banal de que há momentos em que, para chegar a Y, é preciso antes ter alcançado X. Se isso representa uma verdade óbvia para os indivíduos, o mesmo se aplica à história em geral. E, nesse sentido, pelo menos nesse sentido ínfimo, a História é uma questão de Necessidade e não de “vale-tudo”. 
Não existe, portanto, a possibilidade de uma escolha simplista entre a História como formato de história; e a História como um grande caos. Se as narrativas são o que vivemos e relatamos, não há então como ver a História material como um texto de todo insolúvel, à espera dos arranjos artificiosos do relato selecionado ao acaso por algum teórico. Essa é a visão privilegiada daqueles sortudos o bastante para desconhecer que os projetos históricos às vezes têm metas muitíssimo determinadas segundo a perspectiva de suas vítimas. 

Se a História é fundamentalmente aleatória, no sentido, por exemplo, de que não há relações causais significativas entre uma parte dela e outra, torna-se difícil saber como se poderia evitar, digamos, um Hitler ou um Stalin. Não seria possível construir o socialismo nas condições mais impróprias, sem a ajuda de forças produtivas desenvolvidas, de aliados abastados, de vizinhos não hostis, de camponeses cooperativos, de uma tradição liberal e democrática vigorosa, de uma sociedade civil funcionando bem, de uma classe trabalhadora razoavelmente bem preparada e afins. 

É difícil imaginar uma condição humana mais desejável, independentemente de ela poder um dia realizar-se, como a que Marx tinha em mente com o comunismo, em que o indivíduo viveria enfim em plenitude. Não existe teleologia uma vez que esse estado de coisas até agora está presente de maneira imprecisa no fim da História, esperando pacientemente que o alcancemos. A teleologia em geral envolve a admissão de que há algum potencial no presente que poderia resultar num tipo específico de futuro. O que não quer dizer, entretanto, que esse potencial se esconde dentro do presente, como se de uma semente se tratasse. Trata-se de um sentido que diz mais respeito ao individual que ao histórico, e que vamos encontrar na discussão de Aristóteles sobre a vida boa. A ética de Aristóteles não é do tipo moderno, concentrada ao estilo kantiano nos conceitos de dever, do sujeito moral solitário e da correção ou incorreção de suas ações isoláveis. Ela enfoca mais a ideia de virtude, o que equivale a dizer a forma, substância e qualidade de uma vida inteira em seu contexto social prático. A virtude é uma questão da realização gratificante, plena das forças humanas da pessoa, ao mesmo tempo uma prática e um objeto de prática. 

A condição humana representa um conjunto de ideias teleológicas uma vez que envolvem a trajetória de uma vida inteira no seu devido desenrolar. O que quer que se pense disso, essas são noções sugestivas que Kant nos deixou com os seus fetiches de dever, imperativos, proibições, a supressão do prazer e afins. Isto não quer dizer que essas ideias não têm lugar no discurso moral (muitas proibições são progressivas), apenas que as poucas incursões que o pós-modernismo fez até agora no campo da ética infelizmente basearam-se nessa terminologia kantiana. Assim como alguns marxistas mecanicistas da Segunda Internacional se voltaram incongruentemente para Kant em busca de seus valores morais, porque estava se provando impossível gerar esses valores fora de seus pontos de vista positivistas da história, o pós-modernismo, que tem sua própria versão de positivismo, pelo menos no seu receio da profundidade metafísica, também parece ter resolvido repetir o gesto. E também nesse sentido ele é um filho da modernidade que se arroga ter suplantado.


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