quinta-feira, 4 de agosto de 2022

A somatologia pós-moderna



Somatologia é o ramo da ciência que estuda os aspetos anatómicos e fisiológicos relativos ao corpo. Para a nova somatologia um corpo velho não serve. Depois de Merleau-Ponty, Michel Foucault apareceu com a ideia da passagem a objeto do corpo sujeito. Para Merleau-Ponty o corpo está onde deve estar na sua existência no espaço e no tempo. O corpo do sujeito um dia desaparece, mas o sujeito do corpo pode continuar por muito tempo na memória de outros sujeitos. Para a nova somatologia, o corpo é o que o sujeito queira fazer com ele, implicando a existência de uma interioridade passível de alienação. Para os adeptos do pós-modernismo o corpo humano tem uma ontologia que transcende a biologia, pela capacidade de o sujeito fazer dele algo mais, a começar pela linguagem que é a verdadeira marca de água da humanidade. A linguagem foi a dádiva que o humano, demasiado humano, recebeu da natureza para se erguer acima da natureza biológica e animal.

Como criaturas linguísticas temos vantagem sobre os outros animais em todos os aspetos. De certa forma, a linguagem nos emancipa das limitações grotescas da nossa biologia, permitindo abstrairmo-nos da natureza e criar outros mundos. Mundos esses que necessariamente inclui o corpo para ser submetido aos processos de transformação. A linguagem liberta-nos da prisão dos nossos sentidos, e se torna uma forma de trazermos o nosso mundo dentro de nós. Só uma criatura linguística poderia ter história, ao contrário de uma minhoca que imaginamos sempre igualzinha.

É assim, digamos, o novo paradigma platónico do pós-modernismo, de trazer de novo para o nosso mundo o 'mundo das ideias'. Somos criaturas “culturais” em vez de “naturais”. Mas como podemos integrar, como seres culturais, um corpo com o tipo de corpos que temos dependentes da natureza? Todos nascemos prematuramente, incapazes de tomarmos conta de nós mesmos. A nossa natureza contém um abismo para dentro do qual a cultura tem mover-se de imediato, que de outro modo não sobreviveríamos. E esse mergulho da cultura constitui para nós o alfa e o ómega da nossa graça. Umas vezes engraçados, outras vezes desgraçados.

O pós-modernismo, dado o seu temor do natural, exceto quando ele se manifesta sob a forma de florestas tropicais, tende a negligenciar o facto de os seres humanos habitarem uma fronteira no limiar entre a natureza e a cultura. Se os modernistas fizeram reduções no sentido do naturalismo, os pós-modernistas fazem-no no sentido multiculturalista. O culturalismo milita na forma reducionista, tal como o fizeram os modernistas com o cientificismo e o economicismo. E o corpo é o sinal mais palpável dessa intermediação — talvez mais que a linguagem. Se está em questão substituir o discurso da alma pelo discurso do corpo, então não faz sentido o discurso de ter um corpo, mas sim, o discurso de ser um corpo. Se o meu corpo representa algo que uso e possuo na analogia de um titeriteiro, então poder-se-ia pensar que eu teria necessidade de outro corpo dentro desse para fazer o uso, e assim por diante, numa regressão infinita.

Merleau-Ponty convoca-nos para o ‘eu corpóreo’, natureza situada e encarnada do ser. A verdade do corpo não reside, como os liberais gostam de pensar, em algum lugar na tensão impossível entre duas versões de corporeidade em termos fenomenológicos. Não é de todo verdade que tenho um corpo, nem de todo verdade que sou um corpo. Esse impasse permeia toda a psicanálise, que reconhece que o corpo se constrói na linguagem, mas que também sabe que nunca vai estar totalmente à vontade lá. Para Jacques Lacan, o corpo se articula por signos só para se descobrir traído por eles.

A nova somatologia nos devolve à condição de criaturas num mundo abstraído, e isso consiste numa de suas conquistas duradouras; mas ao tirar o fantasma da máquina, ela corre o risco de difundir a própria subjetividade como sendo nada mais que um mito humanista. Para alcançar a felicidade eu preciso às vezes renunciar a pequenos prazeres; e se a noção de felicidade não fosse tão obscura e maltratada como é, presumivelmente não teríamos nos sobrecarregado com aqueles discursos intricados conhecidos como Filosofia da Moral, que se encarrega, entre outras funções, de examinar em que consiste a felicidade humana e como se faz para alcançá-la.

Agora a vida boa tornou-se uma questão privada, enquanto a iniciativa de possibilitá-la permanece pública. Muitos teóricos da antiguidade jamais conceberiam essa distinção entre o ético e o político. A ideologia do humanismo cívico ou republicano vê um em termos do outro: eu exercitar a virtude, realizar meus potenciais e capacidades como ser autónomo significa, entre outras coisas, eu participar com os outros da administração da polis. Não pode existir essa tal de virtude privada, nem uma conceção de vida boa que seja só minha.

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