segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Michel de Montaigne





Montaigne – enquanto testemunhava as hecatombes provocadas na França pela Reforma, de um lado os católicos leais à autoridade eclesiástica de Roma e à liderança espiritual do papa; do outro, uma variedade de congregações cristãs “reformadas”, as quais afirmavam ser corrupta a autoridade do papado romano e que, em vez disso, admitiam formas novas e purificadas de louvor, todas associadas a líderes cristãos dissidentes, como os protestantes Martinho Lutero e João Calvino – ia registando nos seus apontamentos, a que chamou “Ensaios”, conclusões ácidas da loucura dos santos. Homens de boa-vontade e fé sólida, em parte inspirados pelo exemplo de cristãos sábios como Agostinho, elaboravam uma série de crenças e condutas que aspiravam à perfeição espiritual.

O morticínio sacrificial organizado pelos fiéis cristãos dessas comunidades rivais ultrajava Montaigne. Com a sua impiedosa clareza, elas revelavam uma dura verdade: como, na busca pela perfeita virtude, o ser humano era capaz de se tornar uma perfeita besta – e “não há besta no mundo”, escreve, “a ser tão temida quanto o próprio homem”.

Os Ensaios, elaborados entre 1572 e 1592 –, valeu-lhe a posição de filósofo francês mais importante do seu tempo. Consistindo em 107 capítulos agrupados em três livros, os primeiros Ensaios têm como modelo, em parte, os breves escritos morais de Plutarco e os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio (1531), de Nicolau Maquiavel. São uma série de reflexões históricas que analisam as virtudes cívicas e marciais próprias dos povos livres; e, por fim, os Adágios de Erasmo de Roterdão, o trabalho mais popular daquele que talvez tenha sido o humanista cristão mais famoso do Renascimento.

Michel de Montaigne nasceu em 1533 no Château de Montaigne, propriedade de sua família localizada a 50 Km a leste da cidade portuária de Bordéus. Seu bisavô paterno, mercador próspero que comprava e vendia vinhos, peixes e corante índigo, adquirira o castelo três gerações antes. A família floresceu nas décadas que se seguiram. Porém, o primeiro membro a alcançar as virtudes cívicas e marciais adequadas a um homem nobre foi o pai de Michel, Pierre Eyquem de Montaigne. Nessa época, as congregações calvinistas haviam-se espalhado por toda a França. Tentativas de conciliar diferenças doutrinárias fracassavam repetidamente, e esforços para reprimir a heresia apenas criavam mártires e mais violência. Católicos queimavam calvinistas na fogueira. Protestantes incendiavam igrejas católicas.

Montaigne certamente sabia o básico sobre a linhagem de sua mãe. No entanto, ele não achava que isso tivesse implicações relevantes. Afinal, segundo ele mesmo afirma numa espinhosa passagem dos Ensaios, “os costumes e o passar do tempo são conselheiros muito mais fortes do que qualquer outra compulsão”.

Mais ou menos na época em que completou 21 anos de idade, Montaigne herdou do pai (ou talvez do tio) um cargo na Cour des Aides de Périgueux, recentemente fundada para ser o novo braço judicial do rei. Os advogados que ocupavam o posto recebiam um salário que era complementado pelos encargos cobrados de todos os envolvidos em disputas judiciais. No ano de 1557, a nova corte foi dissolvida e seus membros, incorporados ao Parlamento de Bordéus, onde Montaigne trabalhou por mais de 13 anos como magistrado.

Montaigne, na década de 1560, trabalhou algumas vezes como embaixador do Parlamento de Bordéus na corte real em Paris. No retrato de si mesmo encontrado nos Ensaios, Montaigne descreve um homem de comportamento casual, nada meticuloso no que diz respeito ao vestuário e às normas de conduta. Inquieto por natureza, ele acha difícil ficar parado. “Tenho aversão à autoridade”, escreve, e sua aversão se estende à disciplina exigida pelo autocontrolo perfeito. Montaigne, às vezes, era impulsivo. Além disso, a liberdade que tanto estima – a franqueza de seu discurso – às vezes o faz parecer indiscreto. Magistrado com acesso à corte de Paris, Montaigne passou a conhecer por dentro como a administração legislativa funcionava – uma experiência que não lhe permitia ilusões. “Agora, não é por serem justas que as leis recebem crédito, mas por serem leis”, observa sarcasticamente nos Ensaios.

Montaigne conheceu o jovem que se tornaria a figura mais importante de sua vida: Étienne de La Boétie (1530-1563). Dois anos e meio mais velho que Montaigne, La Boétie era um verdadeiro renascentista, um erudito formado pela Universidade de Orleães, onde o estudo do direito era visto como faceta da ampla busca pela sabedoria (e onde, em 1559, seu primeiro professor seria queimado na fogueira, acusado de ser um herege huguenote). Aos 18 anos, La Boétie escrevera o Discurso da Servidão Voluntária, dissertação contra a tirania então ensinada que demonstrava a familiaridade do autor com Platão, Aristóteles, Tácito, Dante, Thomas More, Erasmo e Maquiavel, entre outras autoridades do mundo antigo e moderno. Nos anos que se seguiram, o discurso de La Boétie circulou amplamente entre os magistrados de Bordéus. O próprio Montaigne relata a admiração juvenil que sentia diante da impressionante retórica da obra.


Depois de anos como décimo assessor da Chambre des Enquêtes, candidata-se a ascender à Grande Câmara. No dia 14 de novembro de 1569, no entanto, decidem não o aceitar, sob o pretexto de que o seu sogro é presidente e um cunhado, conselheiro. A decisão é contra ele, mas no sentido mais amplo lhe é favorável, pois com isso Montaigne tem um motivo ou pretexto para dizer adeus ao serviço público. Renuncia ao cargo – ou melhor, vende-o – e, a partir desse dia, passa a servir ao público apenas como gosta: ocasionalmente, ou quando uma tarefa especial o atrai. É difícil dizer se outros motivos secretos contribuíram para determinar sua retirada para a vida privada. Seja como for, Montaigne deve ter percebido que estava na hora de decidir, e ele não amava as decisões. A atmosfera pública novamente ficara envenenada. Os protestantes voltaram a pegar em armas, e a Noite de São Bartolomeu se aproximava. Como seu amigo La Boétie, Montaigne via seu dever político apenas em agir no sentido da conciliação e da tolerância. Por natureza, mediador nato entre os partidos, a sua verdadeira realização era serviço público. Mas esses tempos haviam terminado. A França terá de se tornar huguenote ou católica. Os próximos anos irão impor enormes responsabilidades a quem se ocupar com os destinos do país, e Montaigne é um inimigo ferrenho de qualquer responsabilidade. Quer fugir das decisões. Um sábio na época de fanatismos, busca a retirada e a fuga.


E como se fosse para cortar o caminho de volta para o mundo, manda gravar a seguinte inscrição em latim na parede de sua biblioteca:
No ano do Senhor de 1571, aos trinta e sete anos, na véspera das calendas de março, no dia do seu aniversário, Michel de Montaigne, há muito tempo desgostoso com o trabalho escravo na corte e as responsabilidades dos cargos públicos, mas ainda em posse de todas as suas forças, decidiu repousar no seio virgem das musas. Aqui, na calma e na segurança, completará o ciclo descendente de uma vida cuja maior parte já transcorreu – se o destino lhe permitir conservar essa habitação e pacífica sede de seus pais. Consagrou esse espaço à liberdade, à tranquilidade e ao lazer.

A missão a que Montaigne se impôs foi ser sincero consigo próprio, conforme a sabedoria de Píndaro que anotou: “Ser sincero é o começo de uma grande virtude”. Quem sou eu? Qui suis-je? pergunta. Três ou quatro pessoas antes dele se puseram essa questão. Ele se assusta diante da tarefa que se impôs. Sua primeira descoberta: é difícil dizer quem somos. Tenta se colocar do lado de fora, ver-se “como um outro”. Escuta, observa, se estuda e se torna, como diz, “minha metafísica e física”. Não se perde de vista e diz que há anos nada lhe escapou: “Desconheço qualquer movimento que se esconda da minha razão.” Não está mais só, ele se tornou duplo. E descobre que esse divertimento, esse “amusement”, é infindável, que esse “eu” não é imutável, que está sempre se transformando em ondas, “ondulante”, que o Montaigne de hoje não se parece com o Montaigne de ontem. Constata que só podemos desenvolver fases, estados, detalhes.

Montaigne, o homem que mandou gravar “Que sais-je?” em sua medalha como lema, não execrava nada mais do que afirmações perentórias. Nunca tentou aconselhar os outros sobre o que não sabia precisar muito bem para si mesmo: “Isso aqui não é a minha doutrina, é o meu esforço pelo conhecimento, e não é a sabedoria de outrem, e sim a minha.” Outros podem tirar vantagens disso, ele não vê nenhum inconveniente. O que ele diz pode ser insensatez ou equívoco, mas ninguém deve ser prejudicado. “Se eu me comporto como um tolo, pago o preço, sem prejuízo para quem quer que seja, pois é uma insensatez que fica dentro de mim e não tem nenhuma consequência.”

Quando, em 1570, aos trinta e oito anos, Michel de Montaigne se retira para a sua torre, acredita ter dado à sua vida a conclusão definitiva. Como mais tarde Shakespeare, reconheceu com seu olhar perscrutador a fragilidade das coisas, “a arrogância dos cargos, a insensatez dos políticos, a humilhação do serviço na corte, o tédio do serviço de magistrado” e, acima de tudo, a sua própria inadaptação para agir no mundo. 
Não quer mais ver o mundo, quer apenas espelhar-se em seu gabinete de trabalho. Abdicou, resignou-se. Às vezes, ainda sai da torre para uma excursão; como cavaleiro da Ordem de São Miguel, viaja para o funeral de Carlos IX; quando lhe pedem, encarrega-se de vez em quando de uma mediação política, mas está decidido a não participar mais com a alma, a superar a atualidade, a ver as batalhas do duque de Guise e Coligny como a de Plateias. 

Montaigne passou dez anos em sua torre, isolado do mundo, e acreditou que fosse o fim. Mas agora reconhece o seu equívoco, ou melhor, os seus equívocos, e Montaigne é sempre o homem que admite seus enganos. O primeiro engano foi acreditar estar velho aos trinta e oito anos, preparando-se muito cedo para a morte e, na verdade, deitando-se no caixão ainda com vida. Agora tem quarenta e oito e descobre, surpreso, que os sentidos não se turvaram, mas antes ficaram mais claros, o pensamento mais lúcido, a alma mais adequada a isso, mais curiosa, mais impaciente. Não conseguimos renunciar tão cedo, fechar o livro da vida como se já estivéssemos na última página. Foi bom ler livros, passar uma hora com Platão na Grécia, fruir uma hora da sabedoria de Séneca, foi repouso e calma viver com esses companheiros de outros séculos, com os melhores do mundo. Mas, queiramos ou não, vivemos no nosso próprio século, e o ar da nossa época penetra mesmo nos espaços fechados, especialmente quando é um ar carregado, abafado, febril e tormentoso. Todos vivenciamos isso, mesmo na reclusão a alma não pode permanecer tranquila quando o país se subleva. Através da torre e das janelas sentimos a vibração da época; podemos nos permitir uma pausa, mas não podemos escapar totalmente dela.

E, depois, outro engano que Montaigne reconheceu pouco a pouco: ele buscou a liberdade, retirando-se do grande mundo da política, dos cargos e dos negócios para o mundo pequeno da casa e da família, dando-se logo conta de que apenas trocou uma amarra por outra. De nada adiantou enraizar-se em seu próprio solo, a hera e as ervas daninhas sobem pelo tronco, os pequenos roedores dos problemas roem as raízes. Não adiantou nada a torre que ele construiu e em que ninguém pode entrar. Quando olha pela janela, vê o orvalho nos campos e pensa no vinho estragado. 
Não é a solidão do anacoreta, pois ele tem posses, e posses só servem a quem tiver prazer com elas. Todas essas razões que, aos quarenta e oito anos, depois do tempo de reclusão, voltam a despertar nele um “ânimo vagabundo”. Montaigne sempre e em todo lugar buscou a liberdade e a renovação, mas a família também é uma limitação e o casamento, uma monotonia, e tem-se a impressão de que não foi totalmente feliz na vida doméstica. O casamento, afirma, tem uma utilidade própria, a ligação legal, a honra, a constância – “tudo prazeres enfadonhos e uniformes”. E Montaigne é um homem da transformação, nunca amou os prazeres enfadonhos e uniformes.

Que seu casamento não foi uma união por amor, e sim pela razão, e que condenava essas uniões por amor, defendendo mais o “casamento por razão”, ele repetiu incontáveis vezes, precisando que apenas se submetera a um “hábito”. Durante séculos foi rigidamente criticado por, em sua inquebrantável sinceridade, ter assegurado mais às mulheres que aos homens o direito de ter um amante; muitos biógrafos duvidaram, por isso, da paternidade de seus últimos rebentos. Vê-se que os dez anos de solidão foram bons, mas suficientes e até excessivos. Ele sente que está esclerosando, tornando-se pequeno e medíocre, e a vida inteira Montaigne sempre se defendeu contra o imobilismo. Com o instinto que sempre dita ao homem criativo quando deve modificar sua vida, ele reconhece o momento correto. Levou o manuscrito de seus Ensaios para a impressão e os dois volumes, essa cristalização de sua vida, estão impressos; um ciclo terminou, ele deixou os livros para trás como a pele de uma serpente, para empregar a expressão favorita de Goethe. Agora chegou a hora de recomeçar. Ele expirou, agora deve inspirar. Enraizou-se, agora precisa voltar a se desenraizar. Começa um novo trecho de sua vida. No dia 22de junho de 1580, aos quarenta e oito anos, depois de uma reclusão voluntária de dez anos – Montaigne nunca fez nada a não ser por livre vontade –, ele parte para uma viagem que o separa por dois anos da mulher e da torre e da pátria e do trabalho, de tudo menos de si próprio.

Sua vida, durante muito tempo, foi sempre igual. Agora, ele quer outra coisa, e quanto mais diferente, melhor! Aqueles que se satisfazem em casa que sejam felizes nessa limitação; ele não os inveja. Só a mudança o seduz, só dela espera algum ganho. Nada o atrai mais nessa viagem do que o facto de que tudo será diferente, a língua e o céu e os costumes e as pessoas, a atmosfera e as cozinhas, as ruas e a cama. Montaigne viaja para se libertar, e durante toda a viagem ele dá um exemplo de liberdade. Ele viaja, por assim dizer, sem rumo. Evita tudo o que lembra qualquer compromisso, ainda que seja um compromisso consigo mesmo. Não faz planos. Que a estrada o leve para onde quiser, que o humor o conduza para onde for. Ele quer, por assim dizer, se deixar viajar, mais do que viajar. Em Bordéus, o sr. Michel de Montaigne não quer saber onde o sr. Michel de Montaigne vai querer estar na semana seguinte, em Paris ou Augsburg. Quem determinará isso com toda a liberdade será o outro Montaigne, o Montaigne de Augsburg ou o Montaigne de Paris. Quer se manter livre em relação a si próprio.

Ele não busca atrações, pois tudo o que é diferente lhe parece digno de ser visto. Ao contrário, quando um lugar é muito famoso, ele prefere evitá-lo, porque muitos outros já o viram e descreveram. Roma, a meta de todos, é-lhe quase desagradável antecipadamente por ser a meta de todos, e o seu secretário anota no diário: “Acredito que, se estivesse totalmente sozinho, ele teria preferido viajar até Cracóvia ou, por terra, para a Grécia, do que rodar a Itália.” Esse é sempre o princípio de Montaigne: quanto mais diferente, melhor, e mesmo que não encontre o que esperava ou outros o fizeram esperar, não fica descontente. 

Com uma última inquietação – perceptível na resposta que ele dá – parece que, em casa, tentam reter o viajante impetuoso. “O que acontecerá se caíres doente no estrangeiro?”. De facto, há três anos Montaigne sofre do mal que atinge todos os eruditos de sua época, consequência provável de uma vida sedentária e alimentação mal equilibrada. Como Erasmo, como Calvino, sofre de pedras na vesícula, e parece uma dura prova passar meses a cavalo em estradas estranhas. Mas Montaigne, que parte não apenas para reencontrar a sua liberdade, mas, se possível, também a sua saúde, dá de ombros, indiferente: “Se estiver mal à direita, vou para a esquerda, se eu não me sentir bem para subir no cavalo, paro. Se eu esqueci alguma coisa, volto – ainda é o meu caminho.” Da mesma forma, tem uma resposta para a preocupação de que ele possa morrer no estrangeiro: se ele devesse temer isso, não poderia nem sair da paróquia de Montaigne, e menos ainda das fronteiras da França. A morte está por toda a parte, e ele preferiria encontrá-la a cavalo do que na cama.

No dia 22 de junho de 1580, Montaigne cruza o portão do seu castelo rumo à liberdade. Acompanham-no o cunhado, alguns amigos e um irmão de vinte anos. Infeliz escolha: companheiros que ele considerará depois como não sendo os melhores, e eles, de sua parte, haverão de sofrer bastante com o modo insólito, caprichoso e muito pessoal de Montaigne de “visitar os países desconhecidos”. Não é a partida de um grande senhor, mas, de qualquer maneira, um empreendimento de porte. O mais importante é que ele sai sem levar preconceitos, arrogância ou opiniões peremptórias. O caminho o leva primeiro a Paris, a cidade que sempre amou e que sempre o encanta novamente. Alguns exemplares do seu livro já o precederam, mas ele leva consigo dois volumes para entregar ao rei. Na verdade, Henrique III não está muito a fim disso; como de hábito, está em guerra. Mas como todo o mundo na corte lê o livro e parece encantado, ele também o lê e convida Montaigne a assistir ao cerco de La Fère. Interessado em tudo, depois de muitos anos Montaigne volta a ver a guerra de verdade e, ao mesmo tempo, seus horrores, pois um de seus amigos, Philibert de Gramont, é morto lá por uma bala. Ele acompanha os restos mortais para Soissons e começa no dia 5 de setembro de 1580 o notável Diário. 

A primeira visita os leva à estação de banhos de Plombières, onde Montaigne tenta curar a sua moléstia com uma temporada de dez dias; depois para Basileia, Schaffhausen, Constança, Augsburg, Munique e o Tirol, então Verona, Vicenza, Pádua, Veneza e, de lá, passando por Ferrara, Bolonha e Florença, até Roma, onde Montaigne chega no dia 15 de novembro. O relato de viagem não é nenhuma obra-prima, tanto mais que só uma mínima parte foi escrita por Montaigne, e nem tudo em sua língua. Não mostra o artista em Montaigne, mas nos mostra o homem com todas as suas qualidades e até suas pequenas fraquezas.

Montaigne está de bom humor e a curiosidade é maior do que sua doença. O homem de quarenta e oito anos, que sempre zomba de sua “idade avançada”, supera todos os jovens em persistência. Já desde cedo na sela, tendo comido apenas um pedaço de pão, ele parte. Os maus albergues mais o divertem do que incomodam. Sua maior alegria é ver gente, pessoas e costumes sempre diferentes e novos. Por toda parte, procura gente, e gente de outras condições sociais. Montaigne vê a Suíça e a Itália enquanto vida. Para ele, toda vida tem o mesmo valor. Ele assiste à missa do papa, é recebido por ele, mantém longas conversações com os altos dignitários eclesiásticos que lhe dão conselhos respeitosos para a próxima edição do seu livro e só pedem ao grande cético que abandone a palavra “fortuna”, a qual emprega com muita frequência, substituindo-a por “Deus” ou “Divina Providência”. Permite que o festejem, é solenemente nomeado cidadão de Roma, e até se esforça por isso, orgulhoso com essa honraria. A doença estraga-lhe a última parte de sua viagem. Ele faz um tratamento nos banhos de Luca, e o tratamento é bárbaro. Seu ódio aos médicos o leva a inventar terapias; livre de tudo, ele quer também ser o seu próprio médico. 

Quando, no dia 7 de setembro de 1581, ele recebe a carta comunicando ter sido nomeado à revelia e “por unanimidade” prefeito de Bordéus, pedindo que, “por amor à pátria, aceite o cargo” – na verdade, uma carga para Montaigne –, ele não parece decidido a renunciar à sua liberdade. Sente-se doente e tão torturado pelas pedras biliares que, às vezes, considera até o suicídio. “Se não for possível eliminar esses sofrimentos, temos que ter coragem e dar logo um fim, é o único remédio, a única regra e ciência.” Para que ainda aceitar um cargo, depois que ele identificou sua própria tarefa interna, ainda por cima um cargo que só lhe trará trabalho, mas nem dinheiro, nem honras de qualquer espécie? Mas quando Montaigne chega ao seu castelo, encontra uma carta do rei datada do dia 25 de novembro e que transforma nitidamente o mero desejo dos cidadãos de Bordéus em uma ordem. O rei começa educadamente com sua alegria em ratificar uma escolha feita sem intervenção de Montaigne, na sua ausência – portanto, de maneira absolutamente espontânea. Mas ordena que assuma o serviço “sem desculpas nem adiamento”. E a última frase corta qualquer possibilidade de recusa: “E, assim, dareis um passo que me será muito agradável, e o contrário me desagradaria grandemente.” Não há como desobedecer a tal ordem real. Com o mesmo desprazer com que herdou de seu pai os cálculos biliares, ele assume então esse outro legado, a prefeitura da cidade.

Sua primeira providência, correspondendo à sua extraordinária sinceridade, é advertir seus eleitores que não esperem dele uma dedicação total como a de seu pai, cuja alma viu “cruelmente conturbada por esses fardos públicos” e que sacrificou seus melhores anos, sua saúde e seu lar a essa responsabilidade. Ele sabe que não tem ódio, ambição, cobiça ou violência, mas também conhece seus defeitos: faltam-lhe a memória, a vigilância, experiência e energia. Como sempre, Montaigne está determinado a conservar para si o que tem de último, de melhor, “sua essência”, a cumprir tudo o que dele se exige com todo o cuidado e toda fidelidade, mas não mais do que isso. Para manifestar externamente que não vai se afastar de si próprio, permanece em seu castelo de Montaigne, em vez de ir para Bordéus. Mas parece que, como em seus escritos, mesmo investindo apenas uma parte do seu esforço, das suas preocupações e do seu tempo, ainda consegue mais do que outros, graças à rapidez do seu julgamento e ao seu profundo conhecimento do mundo. Prova de que a insatisfação não era grande é que, em julho de 1583, ao final do seu primeiro mandato, os burgueses o reelegem por mais dois anos.

Durante muitos anos, os poderosos tinham olhado para Montaigne com certa desconfiança que os homens de partido e políticos profissionais sempre têm em relação ao homem livre e independente. Acusaram-no de passividade em uma época na qual, como ele diz, “o mundo inteiro era ativo demais”. Mas agora, depois das horríveis devastações da guerra civil, depois que o fanatismo foi às raias do absurdo, o apartidarismo, até então visto como defeito, de repente se torna uma vantagem na política, e um homem que sempre se manteve livre de julgamentos e preconceitos, que se manteve entre os partidos, incorruptível por vantagens ou fama, torna-se o mediador ideal. A situação na França passou por estranhas mudanças. Depois da morte do duque d’Anjou, Henrique de Navarra (futuro Henrique IV), marido da filha de Catarina de Médici, é segundo a lei sálica o herdeiro legítimo do trono de Henrique III. Mas Henrique de Navarra é huguenote e chefe do partido huguenote. Com isso, está em franca oposição à corte, que tenta reprimir os huguenotes; ao castelo real, de cujas janelas saiu, uma década antes, a ordem para a Noite de São Bartolomeu; e o partido adversário dos Guise tenta impedir a sucessão legítima. 

Mas, como Henrique de Navarra não tem a intenção de renunciar ao seu direito, a nova guerra civil parece inevitável, se o entendimento entre ele e o rei Henrique III não for possível. Para essa grande missão de importância histórica universal, que deve assegurar a paz na França, um homem como Montaigne parece ser o mediador ideal, não apenas por causa do seu temperamento tolerante, mas também porque pessoalmente ele é homem de confiança tanto do rei Henrique III como do copretendente ao trono, Henrique de Navarra. Uma espécie de amizade o liga a esse jovem príncipe, e Montaigne a conserva mesmo em um tempo em que Henrique de Navarra é excomungado pela Igreja e Montaigne precisa confessar ao seu pároco como sendo pecado ter mantido a relação com ele, como escreverá mais tarde. Henrique de Navarra visita Montaigne em seu castelo em 1584 com um séquito de quarenta nobres e toda a sua criadagem e dorme na sua cama. Confia-lhe as missões mais secretas, e a probidade e fidelidade com que Montaigne as cumpriu ficam provadas pelo facto de que, alguns anos mais tarde, quando explode uma nova crise, a mais grave de todas, entre Henrique III e o futuro Henrique IV ambos o chamam novamente para ser mediador.

No ano de 1585, o segundo mandato de Montaigne como prefeito de Bordéus teria terminado, e ele poderia ter tido uma despedida gloriosa, com discursos e honras. Mas o destino não quer uma saída tão bela para ele. Ele resistiu com firmeza e energia enquanto a cidade estava ameaçada na nova guerra civil entre os huguenotes e as ligas. Armou a cidade, manteve vigília de dia e até de noite com os soldados e preparou a defesa. Mas diante de outro inimigo, a peste que atinge Bordéus nesse ano, ele foge em pânico e abandona a cidade. Para sua natureza egocêntrica, a saúde sempre foi o mais importante. Ele nunca foi nenhum herói, nem jamais pretendeu ser.

Na cidade de Bordéus, morrem dezessete mil pessoas, metade da população, em menos de seis meses. Quem tem carro, cavalo, foge; só o “povo menor” fica para trás. A peste também chega à casa de Montaigne. Assim ele decide abandoná-la. Todos saem. Ele sofre pesadas perdas de património, precisa deixar para trás a casa vazia e desprotegida, onde qualquer um pode pegar o que quiser, o que deve ter acontecido. Sem sobretudo, vestido como está, foge de casa e não sabe para onde, pois ninguém acolhe a família fugida de uma cidade pestilenta. “Os amigos tinham medo dela, todos tinham medo, o medo tomava conta das pessoas junto às quais se buscava abrigo, e era preciso mudar para outro lugar de repente, quando uma única pessoa começava a se queixar de uma dor na ponta do dedo.” A viagem é terrível; no caminho veem os campos abandonados, as aldeias vazias, os cadáveres insepultos. Durante seis meses ele é obrigado a “servir miseravelmente de guia dessa caravana”, enquanto os jurados, aos quais deixara a administração da cidade, escrevem uma carta depois da outra. Visivelmente exasperados com a fuga de Montaigne, exigem seu retorno e lhe anunciam finalmente que seu mandato expirou. Mas Montaigne não volta nem para a data da despedida.

Um pouco de glória, um pouco de honra, um pouco de dignidade se perderam durante essa fuga em pânico da peste. Mas a “essência” se salvou. Em dezembro, depois que a peste terminou, Montaigne volta para o seu castelo após errar por seis meses e retoma a antiga tarefa: buscar a si mesmo, conhecer-se a si mesmo. Começa a escrever um novo livro de ensaios, o terceiro. Voltou a ter paz, está livre dos incómodos, exceto a dor dos cálculos. Ficar quieto, até chegar a morte, que já o “tocou várias vezes com as mãos”. 

Mas mais uma vez, o mundo o chama. A situação entre Henrique de Navarra e Henrique III ficou perigosamente tensa. O rei mandou um exército comandado por Joyeuse contra o herdeiro do trono, e Henrique de Navarra aniquilou completamente esse exército em Coutras no dia 23 de outubro de 1587. Agora, Henrique de Navarra poderia marchar contra Paris na condição de vencedor, obtendo à força seu legítimo direito ou até o trono. Mas sua sabedoria o dissuade de colocar seu êxito em risco. Quer tentar negociar mais uma vez. Três dias depois dessa batalha, uma tropa de cavaleiros parte rumo ao castelo de Montaigne. O comandante pede para entrar, o que lhe é imediatamente concedido. É Henrique de Navarra que depois de sua vitória vem pedir conselho a Montaigne sobre a melhor forma de explorar essa vitória, diplomática e pacificamente. É uma missão secreta. Quer que Montaigne viaje para Paris na condição de mediador e transmita ao rei suas propostas. Parece que não foi nada menos do que o ponto decisivo que depois garantiria a paz na França e a sua grandeza por vários séculos: a conversão de Henrique de Navarra ao catolicismo.

Em pleno inverno, Montaigne empreende imediatamente a viagem. Na mala, leva um exemplar corrigido dos ensaios e o manuscrito do novo livro, o terceiro. Mas não será uma viagem tranquila. No caminho, é assaltado e saqueado por soldados. Pela segunda vez, experimenta na própria pele a guerra civil, e mal chega a Paris, onde o rei não se encontra, é detido e levado para a Bastilha. É verdade que passa apenas um dia lá, porque Catarina de Médici logo manda libertá-lo. No entanto, mais uma vez o homem que busca a liberdade por toda parte experimentou também dessa forma o que significa ser privado da liberdade. Ele viaja então ainda para Chartres, Rouen e Blois para conversar com o rei. Com isso, sua missão termina e ele volta para o seu castelo.

No velho castelo, ocupa o seu gabinete na torre. Envelheceu, os cabelos caíram, uma careca redonda, ele cortou a bela barba castanha desde que começou a ficar grisalha. A casa ficou vazia; com quase noventa anos, a velha mãe ainda passa pelos aposentos como uma sombra. Os irmãos foram embora, a filha se casa. Ele tem uma casa e não sabe quem vai ficar com ela depois da morte. Ele tem um brasão e é o último. Tudo parece ter acabado. Mas precisamente nessa última hora, tudo chega a ele; agora que é tarde demais, as coisas se oferecem àquele que despreza as coisas. Em 1590, Henrique de Navarra, de quem foi amigo e conselheiro, tornou-se Henrique IV, rei de França. Bastaria a Montaigne correr para a corte, como todos o fazem, e a maior posição lhe seria certa junto àquele que ele aconselhou, e tão bem. 

Contenta-se em saudar o rei por carta, desculpando-se por não ter ido. Mas os reis não gostam de quem busca seus favores e muito menos de quem não os procura. Alguns meses depois, o rei escreve ao seu antigo conselheiro em um tom mais duro a fim de conquistá-lo para o seu serviço e parece que lhe fez uma proposta financeira. Mas se Montaigne já não está mais disposto a servir, muito menos quer ser suspeito de se vender. Orgulhoso, responde ao rei: “Jamais obtive quaisquer vantagens materiais pela graça dos reis, nem as cobicei e nem as mereci.

Algum tempo antes da morte, os mais altos dignitários chamaram o homem que já não os deseja nem espera mais. Algum tempo antes da morte, o homem que se sente velho, que já não é mais do que uma parte e uma sombra de si mesmo, experimenta algo que há muito já não mais espera, um raio de ternura e de amor. Melancólico, ele disse que só o amor talvez pudesse voltar a despertá-lo. E ocorre então o inacreditável. Uma jovem de uma das principais famílias da França, Marie de Gournay, pouco mais velha do que a mais jovem de suas filhas, que acabou de casar, é tomada de paixão pelos livros de Montaigne. Ela os adora, endeusa, busca seu ideal nesse homem. Como sempre em casos como esse, é difícil constatar em que medida esse amor não foi dirigido apenas ao autor, ao escritor, mas também ao homem. Mas ele empreende várias viagens para encontrá-la, fica alguns meses no castelo da família, perto de Paris, e ela se torna sua “fille d’alliance”, ele lhe confia sua herança mais preciosa: a edição de seus Essais após sua morte.

Montaigne morreu sabiamente, como viveu sabiamente. Seu amigo Pierre de Brach escreve que sua morte foi suave “depois de uma vida feliz”, e que precisa ser considerada um alívio para uma gota paralisante e para seus cálculos dolorosos. Mas, acrescenta, os frutos de seu espírito jamais cessarão de encantar os homens de espírito e de bom gosto em todos os tempos. Michel de Montaigne recebe a extrema-unção no dia 13 de setembro de 1592 e falece pouco depois. Com ele, apaga-se a linhagem dos Eyquem e dos Paçagon. Ele não repousa entre seus antepassados, como seu pai: repousa sozinho na igreja de Feuillants, em Bordéus, o primeiro e o último dos Montaigne, e o único que legou esse nome à posteridade.

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