quarta-feira, 10 de agosto de 2022

O Japão e o general MacArthur



O general MacArthur, homem profundamente religioso, em tempos de guerra alimentava a ideia de que a “mentalidade oriental” era infantil, mas ao mesmo tempo brutal e marcadamente primitiva. E meteu na cabeça que estava destinado a reeducar os japoneses. Tinha como guias para essa missão: George Washington, Abraham Lincoln e Jesus Cristo. Idealmente, os japoneses deveriam converter-se à fé cristã. Mas, de qualquer maneira — e aqui as ideias de MacArthur eram consonantes com as de Konrad Adenauer —, a renovação tinha de ser espiritual tanto quanto política, social e económica. MacArthur, no entanto, foi além de tudo o que concebera o democrata-cristão alemão. A ocupação do Japão resultaria numa “revolução espiritual" sem paralelo.

Herbert Hoover, depois de uma visita a Tóquio, descreveu MacArthur como “a reencarnação de são Paulo”. Mas esse vice-rei americano não tinha interesse em explorar a cultura japonesa ou aprender muito sobre o país. Ele passava a maior parte das noites em casa, assistindo a filmes de caubóis. Seu intérprete, Faubion Bowers, lembrou mais tarde que, durante os cinco anos de MacArthur no Japão, “apenas dezasseis japoneses falaram com ele mais do que duas vezes, e nenhum desses tinha uma hierarquia inferior, digamos, à de primeiro-ministro, presidente do Supremo Tribunal, ou reitor da maior universidade”.

Ao contrário da Alemanha, o Japão não se dividiu em zonas aliadas. Os soviéticos queriam reivindicar a ilha setentrional de Hokkaido, mas não criaram problemas quando os Estados Unidos recusaram. A ocupação japonesa foi um espetáculo americano, e MacArthur, como comandante supremo das Forças Aliadas, tinha autoridade quase absoluta, estando acima inclusive de um governo japonês eleito, que se encarregava da maior parte da governação efetiva. Havia vários motivos para o zelo pela reeducação ser maior no Japão do que na Alemanha. Talvez as experiências na Alemanha tenham preparado o cenário para o que se seguiu no Japão.

Considerando quão violenta foi a Guerra do Pacífico e quão brutal foi a propaganda de guerra de ambos os lados, os japoneses, como alunos, demonstraram surpreendente boa vontade. A maneira como os japoneses prestaram o seu tributo a MacArthur quando ele deixou o país, em 1951, exonerado de seu posto pelo presidente Truman por insubordinação na Guerra da Coreia, seria impensável na Alemanha. Foi promulgada uma lei que o tornava cidadão honorário do Japão. Foram feitos planos para a construção de um memorial ao comandante supremo na baía de Tóquio. Centenas de milhares de japoneses margearam o seu percurso até ao aeroporto, muitos deles em pranto, gritando agradecimentos para o homem que passava na limusine. Um dos principais jornais japoneses exclamou em seu editorial: “Ó general MacArthur — general, general, que salvou o Japão da confusão e da fome”.

Uma forma de interpretar o comportamento japonês é encará-lo como um exemplo da bajulação oriental, insincero, visando interesse próprio, e encaixado numa longa tradição de apaziguar governantes poderosos. Esse pode ter sido um dos fatores, mas está longe de constituir a história toda. Grande parte dessa gratidão era autêntica. Em comparação com a maioria dos civis alemães (não judeus), cujas condições de vida, engordadas com a pilhagem dos países conquistados, não eram más até às últimas etapas da guerra, os japoneses sofreram mais. Não só a maioria de suas cidades ardeu em chamas, como também aconteceu na Alemanha, mas os japoneses tiveram de conviver vários anos com um racionamento de comida quase no limite da fome. E as intimidações por parte das autoridades militares e das forças de segurança da polícia japonesa com certeza eram ainda mais intrusivas do que na Alemanha. Diferentemente de muitos alemães, que em 1945 ainda falavam do Führer com afeto, poucos japoneses tinham alguma coisa de bom a dizer sobre o seu regime militar, que não lhes trouxera nada além de desgraça.

Assim, quando os americanos — tão ricos e extrovertidos, tão altos e geralmente tão livres e acessíveis — se estabeleceram, foram de facto vistos como libertadores, e muitos japoneses estavam dispostos a aprender com eles como se tornar mais livres e acessíveis também. Não era a primeira vez na história japonesa que o povo decidia aprender com uma grande potência estrangeira. A China tinha sido o modelo durante muitos séculos, e a Europa e os Estados Unidos foram os exemplos a seguir desde a segunda metade do século XIX. O nacionalismo militante japonês no século XX foi, em certo sentido, uma reação ao extraordinário avanço da ocidentalização na forma de liberalismo económico, comunicação de massa, filmes de Hollywood, partidos políticos, marxismo, individualismo, beisebol, jazz e assim por diante. Após o desastre da Segunda Guerra Mundial, os japoneses em sua maioria ficaram mais do que felizes de voltar à modernidade, que associavam ao mundo ocidental e, após 1945, aos americanos em particular.

Nada que, mesmo remotamente, pudesse ser associado a “feudalismo” era permitido. Até mesmo a representação do monte Fuji — um lugar sagrado na antiga religião da natureza que é o xintoísmo — foi banida de filmes, de obras de arte e das paredes de tijolos dos banhos públicos, onde era um adorno popular. Desde o século XIX, o xintoísmo havia de facto sido transformado numa espécie de culto estatal para promover a adoração ao imperador e a noção de que os japoneses são uma raça única, abençoada com uma linhagem divina, destinada a governar estirpes inferiores na Ásia. A proibição de utilizar o xintoísmo como religião oficial não foi, na verdade, uma má ideia. Ordenar ao imperador Hirohito que anunciasse na rádio que era um ser humano como todos os outros tampouco pareceu má ideia. O que o imperador efetivamente disse foi que suas ligações com o povo japonês não se “fundamentavam na falsa noção de que o imperador é divino”. Isso satisfez os americanos.

A cidade de Omi, no interior do país, não muito longe de Kyoto, pode ser considerada um equivalente japonês de Aachen. No outono de 1945, uma patrulha do exército americano decidiu inspecionar uma escola primária local. A presença dos soldados americanos aterrorizou tanto os alunos que eles começaram a gritar. Quando lhes perguntaram se “gostavam de americanos”, responderam negativamente balançando a cabeça com veemência. As classes ainda estavam decoradas com posters dos tempos da guerra, mostrando soldados japoneses em poses heroicas. Um dos professores era um ex-oficial do Exército. Um gorro ensanguentado de marinheiro foi encontrado na gaveta de uma carteira. Isso não poderia ser tolerado, e o diretor da escola foi intimado a despedir o ex-oficial do Exército e garantir que todas as referências à guerra fossem removidas.

Seis meses depois, alguns dos mesmos americanos retornaram ao local, num jipe. Dessa vez, os alunos pareceram não ter tanto medo. Um dos oficiais começou a assobiar “Swanee River” e, para a imensa satisfação da comitiva americana, as crianças entoaram a canção em japonês, seguida de interpretações de “Auld Lang Syne” e “Maine Stein Song”. O grupo também ficou contente ao notar que os livros didáticos tinham sido adequadamente corrigidos; todas as passagens “feudais”, referentes à guerra, ao passado guerreiro do Japão, ao imperador etc. haviam sido cobertas com nanquim. O diretor, cheio de boa vontade, falou com eles em inglês. Prometeu que todos os posters dos tempos de guerra seriam queimados e que vários outros professores, três dos quais tinham servido no Exército, seriam demitidos.

Por mais aliviados que muitos japoneses possam ter-se sentido com o comportamento relativamente benevolente dos vitoriosos americanos, ou por mais agradecidos pelas reformas democráticas impostas a suas elites políticas, havia também sentimentos mais complicados quanto à reeducação em estilo americano. Para algumas pessoas, a demokurashii do pós-guerra tinha vindo um pouco fácil demais, como uma espécie de brinde dos conquistadores estrangeiros. Um cartum famoso de Etsuro Kato mostrava uma multidão japonesa extática, alguns ainda com seus bonés militares, erguendo as mãos para o céu, do qual as latas caíam de paraquedas como um maná, com as palavras “revolução democrática”. Receber de mão beijada alguma coisa que deveria ter sido conquistada por mérito próprio era um pouco humilhante.

Em parte, essa humilhação era intencional, mas não dirigida às pessoas comuns do Japão. A fotografia mais emblemática da ocupação, publicada em setembro de 1945, foi tirada na ocasião da visita oficial do imperador Hirohito (na verdade, mais uma audiência do que uma visita) ao general MacArthur. O imperador, de 44 anos, que parecia um rapazinho se comparado ao comandante supremo, do alto de seus 65 anos, mantinha-se em posição de sentido num traje matinal formal. De pé a seu lado está MacArthur, com a sua autoridade superior visível não só em sua alta estatura, mas também numa atitude estudada, informal. A camisa cáqui com o colarinho aberto, as mãos confortavelmente acomodadas atrás dos quadris.




A foto saiu em todos os principais jornais, e o governo japonês, chocado com uma imagem que cheirava a lesa-majestade, de imediato proibiu que continuasse a ser publicada. No dia seguinte, MacArthur revogou a proibição e ordenou novas medidas para garantir a liberdade de imprensa. Isso não queria dizer que os americanos não censuravam ativamente as notícias, como faziam na Alemanha. Eles censuravam. Era proibido mencionar Hiroxima, por exemplo, assim como relatos negativos sobre os Estados Unidos.

O sentimento é compreensível, mas esse tipo de pronunciamento é enganador. Um dos conceitos sobre a ocupação, ainda mencionado com frequência, é o de que os americanos construíram as modernas instituições japonesas a partir do zero, de que a “ocidentalização” começou em 1945, e os japoneses, graças à benevolente orientação dos Estados Unidos, saltaram do “feudalismo” para a democracia em um ou dois anos após a derrota na guerra. Na verdade, as instituições democráticas, por mais falíveis e frágeis que pudessem ser, já existiam na década de 1920. No Japão, como nas zonas ocidentais na Alemanha, os Aliados ocidentais criaram as condições para que essas instituições fossem restauradas em bases mais firmes depois da guerra. Isso nem sempre se deu de forma automática. Os políticos e burocratas japoneses muitas vezes tiveram de ser obrigados a realizar reformas democráticas, que a maioria das pessoas considerou bem-vindas. Contudo, o que ninguém poderia ter previsto foi que a única coisa que os americanos tinham concebido totalmente por si mesmos se tornaria ao mesmo tempo a pedra angular e o grande fardo da identidade japonesa do pós-guerra.

Sem comentários:

Enviar um comentário