domingo, 14 de agosto de 2022

A narrativa do sujeito pós-moderno



A História da Filosofia Ocidental Moderna é de um modo geral a narrativa do sujeito completamente autónomo. A ortodoxia pós-moderna rompe com esse paradigma para afirmar o sujeito disperso. O pós-modernismo não aceita sem questionar aquilo que apelida de paródia - uma narrativa dogmática da filosofia ocidental. Por exemplo, para um filósofo dos primórdios da modernidade racionalista como Espinosa o sujeito resulta de um determinismo implacável. A Liberdade, que tanto preza, nada mais é que a Necessidade. Aqui, o conceito de Necessário contrapõe-se a Contingente . Por outro lado, por exemplo, David Hume questionou a existência do "eu", uma ficção conveniente, que não passaria de um feixe de ideias e experiências cuja unidade só poderíamos admitir por hipótese.

O sujeito moral de Kant mostra-se, de facto, autónomo e autodeterminado, mas de uma maneira misteriosa em total conflito com a sua determinação empírica. Para Schelling, Hegel e outros idealistas, o sujeito está relacionado às suas raízes, como certamente também acredita Marx; para Kierkegaard e Sartre, o "eu" é agonizantemente não auto idêntico e, para Nietzsche, mera espuma na onda da vontade ubíqua de poder. Deixemos então de lado a grande narrativa do sujeito unificado. Não se questiona a existência desse animal atormentando: o sujeito no pensamento ocidental; mas o relato é muito menos convenientemente homogéneo do que alguns devotos pós-modernos da heterogeneidade nos levariam a pensar.

A tradição liberal não tem necessidade alguma de postular um individualismo ontológico. Qualquer liberal razoavelmente sofisticado pode concordar que o sujeito é culturalmente construído e historicamente condicionado; ele pode estar carecendo menos de uma antropologia filosófica que de uma doutrina política que trate dos direitos desse sujeito diante do poder do Estado. E também não há por que só considerar esses direitos no sentido implausível naturalista de Rousseau. O termo “direitos” pode referir-se apenas àquelas necessidades e capacidades que, de tão vitais para nossa prosperidade e bem-estar, o Estado se vê constrangido a dar-lhes especial tratamento e proteção.

Para Kant, ponderar os possíveis efeitos benéficos de uma ação já significa macular a sua pureza moral; para uma corrente mais inflexível do Utilitarismo, o que interessa é a promoção do bem-estar geral, mesmo que isso signifique sacrificar a liberdade ou o bem-estar de indivíduos específicos. E é neste balanço constante do pêndulo social entre kantianos e utilitaristas que o debate moral se tem feito há dois séculos a esta parte.

A maioria de nós provavelmente concordaria em que há limites para o que se pode exigir de um indivíduo em prol do bem comum — que, como diria Rawls, o bem de cada pessoa importa igualmente, de tal forma que limita a busca do bem de todos; mas muitos de nós também achariam convincente a alegação teleológica de que o discurso moral não se deveria restringir às precondições da vida boa — a distribuição equânime de liberdade, por exemplo —, mas também examinar, à maneira da antiguidade clássica, em que deveria consistir a vida boa e qual a melhor maneira de garanti-la. Houve quem afirmasse, por exemplo, que Marx era um “deontologista misto”, que entendia o bem moral como a promoção do bem-estar geral, mas não, digamos, à custa do imperativo deontológico de que todos os homens e mulheres têm direito de participar desse processo.

O Estado liberal vai gerar precisamente os tipos de desigualdade e exploração que subvertem a busca do bem-estar que ele devia promover. Com efeito, nem todos estarão de posse dos bens básicos necessários para traçar o próprio caminho para a felicidade. A alguns faltarão recursos materiais e espirituais, inclusive a estima dos outros que se pode reputar como um componente vital do bem-estar humano. Tomás de Aquino e Wittgenstein, leva em conta as raízes culturais e históricas do "eu", sua incorporação na tradição e na comunidade, e, segundo esse ponto de vista, reprova o que vê como o atomismo iluminista abstrato do sujeito liberal, com sua ética acima da História e especiosamente universalista.

Alegar que a atividade política não serve só de instrumento para o bem privado, mas em vez disso pertence ao domínio da virtude, é uma outra maneira de dizer que a democracia não consiste apenas numa forma opcional de governo entre várias, a ser julgada segundo os padrões utilitaristas, mas num bem moral em si. Nesse sentido ela é uma questão deontológica em vez de teleológica, que não poderia, por exemplo, ser negociada no espírito utilitarista, por um aumento maior de outros bens de modo geral. Não optaríamos por uma ditadura só por ela manter os pubs abertos até mais tarde. Se essas decisões não são nossas, assim proclama a modernidade, seu valor diminui, por mais sagazes que se apresentem. Pode-se dizer que o liberalismo leva esse caso a um extremo formalista, do qual o existencialismo talvez se constitua o reductio ad absurdum: importa menos o que eu escolho do que o facto de ser eu a escolhê-lo. Um tipo de ética adolescente, em suma. Mas a democracia política também é teleológica, já que o governo democrático não existe em benefício próprio. Ele existe, entre outras coisas, como nos lembram os liberais, para permitir que o bem-estar pessoal prospere. As esferas públicas e privadas permanecem distintas, como querem os liberais; mas estão ligadas, o que eles não reconhecem tão facilmente, pela prática compartilhada da virtude, tanto na forma da autodeterminação democrática, como no que isso contribui para a busca da felicidade individual.

Ambos os credos - deontológico e teleológico - reciclados pelos pós-modernos, representam tipos de culturalismo. A ação certa e a vida boa não podem ser definidas separadamente das práticas culturais contingentes que herdámos. O "eu" (sujeito), para as duas doutrinas, encaixa numa história puramente paroquial (expressão de Wittgenstein), de forma que os julgamentos não podem ser universais. O que tem tornado menos simpático no pós-modernismo é o seu relativismo moral hostil aos Universais. E é por via desse relativismo que o sujeito corre o risco de implodir. 
O sujeito liberal clássico, pelo menos, lutava para preservar a sua identidade e autonomia juntamente com a sua pluralidade, ainda que isso nunca tenha sido fácil; agora, numa deterioração drástica desse processo, o sujeito de uma fase mais avançada da sociedade de classe média vê-se compelido a sacrificar a sua verdade e identidade em nome da pluralidade, a que passam a chamar ilusoriamente "liberal". Ou seja, o sujeito da criatividade, neste mundo capitalista de pendor liberal, está cedendo a sua criatividade ao sujeito consumista, o último estádio do sujeito moderno. 

Sucede que no mundo marxista, o sujeito se viu refreado, pelo menos em teoria, 
o sujeito só seria livre de si mesmo. É um mundo sem sujeito, que sugere que o que estava atrapalhando a liberdade do sujeito era nada menos que o próprio sujeito. Mas sem esse respeito, o sujeito entra em colapso, uma vez que os outros também não iam respeitar a sua autonomia. E essa é uma imagem muito apropriada da sociedade comunista, em que, para Marx, o limite do capital é o próprio capital.

Já vimos que o sujeito pós-moderno é, paradoxalmente, ao mesmo tempo “livre” e determinado, “livre” porque constituído até à alma por um conjunto difuso de forças. Nesse sentido, ele é simultaneamente mais e menos livre que o sujeito autónomo que o precedeu. Por outro lado, a tendência culturalista do pós-modernismo pode levar a um autêntico determinismo: o poder, o desejo, as convenções ou as comunidades interpretativas nos moldam, sem que possamos evitá-lo, a comportamentos e crenças específicas. A desculpa de excesso de determinação não afasta as implicações degradantes disso — que, afinal de contas, integramos sistemas múltiplos e conflitantes em vez de monolíticos, de forma a deixar o sujeito carente de identidade fixa, o que pode vir a confundir-se com a sua liberdade.

Mergulhamos aqui na oposição poderosa entre deontologia e teleologia, entre kantianos e utilitaristas. Uma dialética dos novos direitos entre a manutenção da primazia à justiça, em antítese com o favor à virtude da felicidade. Os teóricos deontológicos, como Kant ou o grande estudioso liberal contemporâneo John Rawls, dão prioridade ao direito sobre o bem, a justiça sobre a felicidade. Por seu turno, os pós-modernos consideram que devemos concentrar a nossa atenção na felicidade ou na vida boa, e que a questão dos direitos só faz sentido se inserida nesse contexto.

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