domingo, 18 de fevereiro de 2024

O enganador culto do medo. Alexei Navalny morreu





Pode impressionar qualquer pessoa a ocidente dos Montes Urais a forma como os cidadãos da Coreia do Norte adoram o seu líder. Mas esse fenómeno humano não é assim tão raro como se possa imaginar. Um caso que já foi exaustivamente estudado foi o culto a Stalin, ainda por cima com a propaganda que na União Soviética se abominava o culto de personalidade, lenda que o Partido Comunista Português importou para Portugal. Ainda hoje os líderes do PCP difundem o argumento de que a personalidade não interessa, o que interessa são as propostas concretas para resolver os problemas aos cidadãos.

A imagem de uma liderança forte e resoluta correspondia às qualidades pelas quais milhões de cidadãos soviéticos ansiavam depois de anos de conflitos. E, embora a União Soviética fosse oficialmente uma sociedade ateísta, tradições enraizadas profundamente na fé popular — num censo realizado em 1937, 57% dos cidadãos soviéticos ainda declararam ser religiosos, informação mais tarde suprimida — levavam a elementos quase sacros no culto a Stalin, e uma fé em sua pessoa como profeta, salvador ou redentor.

O culto criou, sem dúvida, a base de uma popularidade genuína, ainda que isso não possa ser quantificado. Essa base foi de incontestável importância na consolidação de seu domínio. Contudo, houve um fator muito mais importante: o medo. O poder pessoal de Stalin se baseava, acima de tudo, na precariedade de toda a autoridade subordinada, cada vez mais sujeita a suas decisões arbitrárias quanto à vida ou à morte. O regime dependia, na prática, da insegurança difusa que permeava toda a sociedade soviética. Essa insegurança alcançou novos patamares durante o “grande terror” que acompanhou os expurgos de 1937/1938.

Já durante o Primeiro Plano Quinquenal houvera inúmeros casos de violência e prisões. Mesmo em 1933, mais de 1 milhão de “elementos antissoviéticos” foram mandados para campos de concentração e cárceres. A extrema insatisfação de Stalin com o que considerava ser a oposição, no âmbito municipal, ao ritmo acelerado das mudanças económicas causou a expulsão de mais de 850 mil membros do partido em 1933. Havia tensões também nos altos escalões do partido. Alguns de seus dirigentes queriam reduzir as pressões sobre a economia, e havia indícios de que Stalin não podia mais contar com o apoio incondicional da cúpula do partido. Alguns líderes depositavam suas esperanças em Serguei Kirov, o popular chefe do partido em Leningrado e membro do Politburo. Em 1934, porém, ele foi morto a tiro em seu gabinete.

O assassino, foi o Leonid Nikolaiev, alegadamente por razões pessoais. Contudo, Stalin estava em busca de complôs políticos. Nikolaiev foi interrogado rapidamente e fuzilado. Quaisquer que fossem as suspeitas existentes, o envolvimento de Stalin no assassinato de Kirov nunca foi comprovado. Mas ele não perdeu tempo em tirar proveito da morte de Kirov. Deu à polícia do Estado, a NKVD, autoridade para prender, julgar e executar à vontade. Mais de 30 mil opositores, reais ou supostos, foram banidos de Leningrado para a Sibéria ou outras áreas remotas. Quase 300 mil membros do partido foram expulsos nos cinco meses seguintes. E a paranoia crescente não seria amenizada pelos relatórios da polícia logo após o assassinato de Kirov. Também Zinoviev e Kamenev foram condenados à morte e fuzilados em agosto de 1936.

Os dois foram os primeiros entre os antigos líderes bolcheviques, membros do Comité Central, a ser expurgados. Mas houve outros. Seguiram-se, em 1938, o julgamento-espetáculo de Bukharin e sua inevitável execução. Os membros do Comité Central viviam com medo, e com bons motivos. Nada menos que 110 de 139 membros, considerados “não confiáveis”, foram presos — o que geralmente acabava em execução ou numa vida nada invejável no gulag, a rede de prisões e campos de trabalhos forçados que recebia políticos dissidentes.

Também foram presos dirigentes do partido e do Estado em praticamente todas as repúblicas nacionais da União Soviética. Dos 1966 delegados que participaram do Congresso do Partido em 1934, 1108 foram presos. Stalin estava destruindo o próprio Partido Comunista como base de poder independente. Os expurgos vitimaram também grande número de administradores, cientistas e engenheiros — um dos motivos pelos quais o crescimento económico chegou ao fim depois de 1937.

Uma vez desencadeados, os expurgos ganharam vida própria. Em 1937, a NKVD deu ao Politburo uma meta de 250 mil pessoas a serem presas. Mais de 70 mil seriam fuziladas, e as demais sentenciadas a longas penas em prisões ou campos de trabalhos forçados. No fim de 1938, quando os expurgos declinaram (talvez porque o enorme número de vítimas estivesse reduzindo a produção industrial), a meta tinha sido ultrapassada em muito. O número de presos chegara a quase 1,5 milhão, e cerca de 600 mil pessoas haviam sido fuziladas. Até o expurgador-mor, o chefe da polícia de Stalin desde 1936, Nikolai Yejov, apelidado Ouriço de Ferro, foi preso em 1939 e executado no ano seguinte. Em 1939, o número total de presos em cadeias e campos e colónias de trabalhos forçados, onde as condições estavam mais perto da morte que da vida, era de quase 3 milhões. A taxa de mortalidade por fome, excesso de trabalho e execuções arbitrárias era colossal.

Stalin era uma pessoa extremamente vingativa, fria e cruel. Era dado a fantasias paranoicas — que geravam por si só factos que davam a Stalin motivos racionais para duvidar de sua própria segurança. Milhões de apparatchiks ambiciosos e cidadãos servis tornavam o terror efetivo em todos os níveis da sociedade. Para cada vítima do terror havia pessoas que lucravam por servir ao regime. Inquestionavelmente, havia também a convicção generalizada, estimulada pelo regime, de que a União Soviética estava infestada de “agitadores”, “sabotadores”, “nacionalistas”, “kúlaques”, espiões e agentes inimigos. Por isso, eram muitos os que aplaudiam o terror destinado a extirpar os “oposicionistas”, o que fortalecia nessas pessoas a identificação com a tarefa épica de construir uma sociedade socialista e confirmava a fé que tinham em Stalin. Até muitas pessoas que sofriam perseguição e discriminação procuravam desesperadamente uma sensação de pertencimento, associando-se aos valores soviéticos.

As denúncias eram incentivadas em todos os campos. A menor observação “desviacionista” podia provocar a temida batida na porta no meio da noite. “Acordo de manhã e penso automaticamente: graças a Deus não fui presa na noite passada”, escreveu uma mulher de Leningrado em seu diário, em novembro de 1937. “Eles não prendem pessoas de dia, mas o que vai acontecer à noite, ninguém sabe.” Outro cidadão de Leningrado, um operário de fábrica, ficava acordado, com medo de ouvir o barulho do motor de um carro. “Eles vieram me buscar!”, seu filho se lembrava de ouvi-lo dizer sempre que escutava um veículo passando na rua à noite. “Ele estava convencido de que seria preso por alguma coisa que tinha dito. Às vezes, em casa, ele xingava os bolcheviques.” A chegada da polícia era aterrorizante. “De repente, vários carros entraram no quintal”, lembrou o filho de Osip Piatnitski, bolchevique veterano e no passado companheiro leal de Lenine, narrando a prisão do pai. “Homens de farda e à paisana saltaram e caminharam em direção às escadas […]. Naquele tempo, muitas pessoas esperavam ser presas, mas não sabiam quando chegaria a sua vez.” O medo da denúncia criava uma sociedade silenciosa. “As pessoas só conversam em segredo, nos bastidores e em particular. As únicas pessoas que expressam suas opiniões em público são os bêbados”, registou um homem em seu diário em 1937.

As denúncias não eram necessariamente políticas. Podiam render promoções na carreira e vantagens materiais diretas. Eram também uma dádiva dos céus para ajustes de contas: um conflito com vizinhos, uma discussão no trabalho ou o rompimento de um relacionamento íntimo. Um exército de informantes, alguns pagos ou subornados, alguns forçados a cooperar por meio de chantagem, muitos apenas colaboradores voluntários, deduravam pessoas à polícia. Seguiam-se, invariavelmente, a prisão, o exílio, o campo de trabalhos forçados ou a execução. Na população carcerária, grande parte da qual ignorava seus próprios “crimes”, estavam representados todos os setores da sociedade. Em 1937-8, ninguém estava em segurança na sociedade soviética, desde o mais humilde camponês até os membros do Comitê Central. De facto, a elite do partido estava entre os de maior risco. Nem mesmo os entusiastas de Stalin podiam ter certeza de que em algum momento não ouviriam socos noturnos na porta, dados por policiais que vinham buscá-los.

Sem comentários:

Enviar um comentário