terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Voltaire e o julgamento mais iníquo baseado em falsos indícios



Entre os dias 13 e 14 de outubro de 1761, Marc-Antoine Calas foi encontrado estrangulado no piso térreo da sua casa paterna. Um julgamento sumário e suplício levou à morte do pai, Jean Calas, pequeno comerciante protestante conhecido na cidade. As circunstâncias e as verdadeiras causas da morte de Marc-Antoine nunca foram elucidadas, mas o pai foi logo acusado de tê-lo matado.

Entre a comunidade católica de Toulouse, havia a crença de que os protestantes haviam guardado dos ensinamentos de Calvino a ideia de que os pais teriam o direito de sacrificar os filhos por motivo de rebeldia, e a intenção atribuída a Marc-Antoine de se converter ao catolicismo foi de pronto considerada rebeldia suficiente para provocar a ira paterna. Para alimentar essa suspeita, contribuiu ainda uma contradição da família ao anunciar a morte do filho. Primeiro, foi dito que ele havia sido estrangulado por desconhecidos; depois, que se havia enforcado.

Ambas as explicações eram bastante plausíveis, pois Marc-Antoine era um jogador contumaz e poderia muito bem ter sido assassinado por razão de dívida de jogo, e como ele também era um indivíduo que sofria de depressão e não havia tido sucesso na sua vida profissional o suicídio tampouco poderia ser descartado. Restava, portanto, saber por que a família havia entrado em contradição. Uma hipótese é a de que Marc-Antoine tenha sido, de facto, encontrado enforcado, e que, para evitar que o seu corpo fosse arrastado pelas ruas e exposto à humilhação e execração públicas, tratamento reservado aos suicidas durante o Antigo Regime, a sua família tivesse inventado a história do assassinato.

Mas antes que qualquer investigação fosse feita para dirimir a dúvida, o boato de que o filho havia sido morto pelo pai espalhou-se pela vizinhança católica, que logo começou a reclamar o castigo dos hereges para o pai assassino. De imediato, a Confraria dos Penitentes Brancos, à qual pertencia Louis, um outro filho de Calas que se havia convertido à fé católica anos antes e abandonado a casa paterna, resolveu apropriar-se do corpo de Marc-Antoine, transformando-o em mártir. Um funeral católico cercado de toda a pompa e circunstância lhe foi preparado e seu corpo, enterrado em campo santo. Assim, a possibilidade de suicídio fora imediatamente descartada e assumida como certeza a versão de que o pobre filho havia sido assassinado pelo pai por tê-lo contrariado ao escolher o bom caminho da Igreja de Roma.

O mesmo procedimento foi adotado pelo Parlamento de Toulouse, a quem cabia o julgamento e a sentença. Sem sequer ouvir o acusado e com base apenas em depoimentos de pessoas que haviam ouvido falar do intuito de Marc-Antoine de se converter ao catolicismo e que nada haviam visto nem ouvido da boca do réu ou de seus familiares, julgou e condenou Jean Calas ao suplício até à morte. Mas antes disso a vítima foi ainda barbaramente torturada, não para dela arrancar a confissão – como era então o hábito, pois a sentença já havia sido pronunciada –, mas possivelmente para que Calas delatasse os outros presumidos cúmplices do seu crime: a sua mulher, seu outro filho que se encontrava em casa, suas duas filhas e a empregada. Mas Jean Calas sustentou até ao fim a sua inocência. No dia 10 de março de 1762, Calas é amarrado à roda do suplício, recebendo violentos golpes de machado que quebrariam suas articulações, coluna e pernas. Sua agonia duraria ainda algumas horas até que a morte viesse pôr fim ao seu sofrimento. Acabado o martírio, o corpo seria finalmente queimado em praça pública. Sobre a família e o amigo que com Jean Calas se encontravam em casa quando o corpo de Marc-Antoine fora encontrado também pairava a suspeita do tribunal, mas a ira popular já havia sido aplacada com o brutal castigo infligido ao pai. Assim, a mãe e a empregada seriam absolvidas; as filhas, enviadas para um convento; o filho Pierre, banido e os bens da família, confiscados.

Mas após ter passado por um mosteiro, onde lhe seria ensinada a verdadeira fé católica, Pierre conseguiria fugir da França e chegar até Genebra, único bastião do protestantismo em território de língua francesa, onde vivia Voltaire. Após Pierre Calas ter convencido Voltaire da importância do caso, Voltaire ficou convencido que Marc-Antoine se havia suicidado. E assim começou a sua tenaz campanha pela reabertura judicial do caso Calas e pela reabilitação da família. Em 1763, Voltaire iria publicar o seu célebre Tratado sobre a tolerância, que teria por subtítulo, “por ocasião da morte de Jean Calas”. Muitas cartas e textos seriam escritos por Voltaire e publicados anonimamente na imprensa para suscitar o debate do caso. Outras tantas cartas seriam endereçadas ao ministro da Justiça, à amante do rei, madame Pompadour, e às várias personalidades influentes do reino.

Voltaire acabou por mobilizar uma força até então desconhecida na história: a opinião pública. Outros intelectuais e artistas também abraçaram a sua causa e mobilizaram-se em apoio à família Calas. A mobilização promovida por Voltaire teve um grande sucesso.

Em 1764, o inquérito sobre o caso seria oficialmente reaberto e, no ano seguinte, Jean Calas e sua família iriam ser definitivamente reabilitados por uma corte composta por oitenta juízes e pelo Conselho do rei. Como indemnização, o rei concedeu uma pensão à família. Encerrava-se assim o primeiro caso judicial a mobilizar os franceses, que dos tribunais fora levado às ruas e transformado em questão pública por iniciativa de Voltaire, um intelectual que viria a dar muito que falar por mais dois séculos.

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