domingo, 4 de fevereiro de 2024

Perspectivismo. O relativismo dos factos



Se bem que possamos aceitar que a realidade, tal como é em si mesma, possa não ser conhecida em absoluto devido a limitações intrínsecas da constituição biológica humana, o conhecimento científico num dado momento histórico é conhecimento fiável da realidade ainda que nunca definitivo. É justificado que a cada momento tenhamos como verdadeiro um facto científico, por ser a ciência a nossa melhor maneira de conhecer a dita realidade. E por razões de ordem prática, a ciência é um empreendimento humano ao qual devemos dar a máxima credibilidade no campo do conhecimento, dado que tem revelado ser muito útil e eficaz na resolução dos nossos problemas mais complicados. Apesar de se poder duvidar, se a realidade em si é mesmo constituída por átomos, que é uma das maneiras como a ciência a descreve, ainda assim tem sido a maneira de descrever a realidade que melhor nos tem servido até ao momento. Assim, é correto afirmar que os átomos não são uma invenção humana. Os átomos já existiam antes de os cientistas os terem descoberto. E os cientistas autorizam-nos a dizer que a existência dos átomos é uma afirmação verdadeira.

Ainda que possa fazer sentido o relativismo, por exemplo, em relação ao bem e ao belo, deve haver alguns factos absolutos independentes da mente. Assim como não há razão para duvidar que haja factos independentes da mente, também não haverá razão para supor que alguns factos, que sempre pensamos serem absolutamente verdadeiros, o não sejam. E isto não tem nada a ver com as convulsões cognitivas do momento que estamos a viver, em relação aos denominados “factos alternativos”. A expressão “factos alternativos” é um oxímoro: recurso estilístico que reúne no mesmo conceito palavras de sentido contrário ou que não fazem sentido.

Até um passado recente, era a esquerda radical pós-moderna que na esteira de Nietzsche defendia com grande assertividade que não havia factos, mas apenas interpretações. Não havia uma realidade objetiva, mas apenas interpretações subjetivas do mundo. Nietzsche era muito útil para atacar o poder, as instituições e os valores estabelecidos na época – desconstruir era o moto. Libertar-se do positivismo e do teste dos factos um imperativo. Abria-se uma nova era de transformação social. Pouco importava que realizações como os direitos humanos universais e a democracia liberal fossem destruídas pelo caminho. Até agora eram assumidos como uma natural linha vermelha na escolha política democrática. Estavam fora das opções apresentadas como possíveis aos eleitores. Hoje, esse consenso já não existe.

Agora é a bem menos sofisticada, mas mais perigosa ao nível político, direita populista a desprezar os factos. Os resultados eleitorais podem ser algo de surpreendente e preocupante. Esse é um dos “tendões de Aquiles” da Democracia. Pelo menos da maneira como a concebemos. É esse o sentimento de muitos com o resultado eleitoral em muitos países, em que até os nórdicos da Europa não ficaram imunes. O que estamos a assistir, não sendo uma perversão propriamente dita da essência da democracia, enquanto expressão da vontade popular, entendida como a vontade da maioria, é uma crescente tensão entre a democracia e outros princípios fundamentais – direitos das minorias, direitos dos migrantes e estrangeiros, por exemplo.

“Facto”, como proposição verdadeira está de acordo com a verdade dos acontecimentos. E sendo assim, não há maneira de não estarmos envolvidos na natureza dos factos. Há quem pense que apenas estamos envolvidos nos juízos sobre os factos. Mas essa posição está errada. Um dos erros é a ideia de que a forma como as coisas nos aparecem é diferente da forma como as coisas são. Isso tem dado azo a muita confusão acerca do que é a realidade, e do que são as perceções dessa mesma realidade. Uma afirmação verdadeira é necessária quando não poderia ter sido falsa. Por exemplo, 2+2=4 é uma verdade necessária. A distinção entre necessidade e contingência aplica-se não apenas aos números, mas também a acontecimentos, realidades ou existentes. Um caso de existência necessária é o da própria realidade: não faz sentido perguntar porque há algo em vez de nada. A realidade é uma existência necessária. Ao passo que a humanidade é uma existência contingente. A deriva do homo sapiens na evolução das espécies na Terra, poderia não se ter dado. Mas, seja o número quatro o que for, não é o género de coisa contingente que possa existir ou não existir. Repare-se que não estamos a fazer uma confusão entre palavras ou conceitos. O quatro é o conjunto de todos os conjuntos com quatro coisas. Logo, terá de haver mais coisas necessárias para além de números. Portanto, nem tudo o que há podia ser contingente. A realidade é um absoluto que não comporta a ideia de uma outra realidade causar a realidade existente. Este é o erro da conceptualização da causalidade das coisas. Com o conceito de “causa” a realidade deixa de ser um existente necessário, passando a ser contingente, porque o necessário.

A democracia está ameaçada por iliberalismos, populismos e autoritarismos. Há, na teorização da ciência política e na prática político-constitucional dos Estados, múltiplos tipos e conceitos de democracia, frequentemente apresentados de forma antagónica. Assim, temos democracia representativa versus democracia direta; democracia social versus democracia formal; democracia popular versus democracia burguesa; democracia multicultural versus democracia monocultural; democracia liberal versus democracia iliberal; e democracia consensual versus democracia maioritária. Assim, a democracia pode significar coisas muito variáveis em diferentes sociedades e contextos históricos.

Hoje, o problema da democracia centra-se na (re)emergência da tensão entre a representação política e a vontade democrática do cidadão. É verdade que essa tensão é tão antiga quanto a própria democracia, mas adquiriu uma intensidade e contornos novos. No passado, teve períodos de crise aguda – por exemplo, na Europa dos anos 1920 e 1930 – e também períodos de uma longa acalmia, como na Europa e no Ocidente nas décadas finais do século XX. Aí, deu a ideia de o problema estar encerrado. Foi uma ilusão. No início do século XXI, entramos, tudo indica, numa nova fase de crise aguda de representação política. Afeta instituições fundamentais da democracia liberal parlamentar, tal como a conhecíamos até agora: os partidos políticos e os media. Ambos são peças clássicas da democracia representativa, ambos são, cada um à sua maneira, também intermediários entre o cidadão eleitor e quem exerce o poder. Peças cruciais da democracia liberal – os partidos e os media do establishment –, habituais intermediários entre o cidadão e o exercício do poder, estão hoje a ser abaladas. A emergência da sociedade em rede está a destruir esse modelo de democracia do passado. Abriu um espaço público paralelo que permite ultrapassar os media e os seus critérios editoriais. A democracia contém imperfeições e tensões desde os seus primórdios na Grécia clássica ao (re)aparecimento na Europa moderna. Para funcionar bem, necessita de uma constante reinvenção e readaptação às condições sociais e políticas. É isso que não tem existido.

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