quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

A ideia de uma "revolução coperniciana" no Islão


Em 1948, os Israelitas, com o Holocausto ainda muito recente, ao serem atacados pelos países árabes que os cercavam, tiveram que interirizar, no seu genoma de sobrevivência como Estado, o lema de que jamais poderiam facilitar. Daí se compreender que os israelitas na sua maioria, sejam implacáveis com os palestinos. Não há volta a dar. Enquanto o odor terrorista à sua volta perdurar, Israel nunca terá outra hipótese senão fazer o que tem feito. Esta é a compreensão histórica e psicológica das razões por trás da postura de Netanyahu em relação aos palestinos e aos países árabes vizinhos. A experiência traumática do Holocausto, seguida pela luta pela sobrevivência em 1948 contra adversários muito superiores em número, moldou profundamente a mentalidade de defesa de Israel. Isso gerou uma estratégia que mistura autodefesa implacável com a busca por segurança absoluta em um ambiente percebido como constantemente hostil.

A guerra da Palestina de 1948 teve início em 30 de novembro de 1947 e perdurou até meados de 1949 na Palestina Mandatária. Antes de 14 de maio de 1948 a Palestina ainda estava sob a autoridade britânica. E já decorria uma guerra civil que envolvia o yishuv e os árabes palestinos muçulmanos em que também havia cristãos, e eram apoiados pelo Exército Árabe de Liberação. Mas a partir de 15 de maio de 1948 a guerra envolve Israel e vários países árabes que se estende até meados de 1949. As narrativas diferem conforme se esteja do lado dos palestinos, ou do lado dos israelitas. Os palestinos chamam a esta guerra Al-Naqba ou Al Nakba ("a catástrofe"), aludindo principalmente ao primeiro período, durante o qual os palestinos que eram árabes foram vencidos pelas forças israelitas, em que grande parte da população árabe da Palestina passou por um êxodo bastante traumático. Já segundo a narrativa judaica, trata-se da Guerra da Independência ou Guerra da Liberação, expressão que concerne sobretudo ao segundo período, iniciado com a declaração de independência do Estado de Israel e seguida do confronto entre Israel e os Estados Árabes vizinhos.

A partir dos anos 1980, após a abertura dos arquivos em Israel sobre a Guerra da Palestina, o conflito foi objeto de novos estudos, realizados sobretudo pelos chamados Novos Historiadores. E é assim que a História se reescreve. Mas não faltam detratores a dizer que os novos histpriadores não têm feito outra coisa a não ser fabricar uma nova história do conflito. Seja como for, é um facto que o Holocausto teve um impacto determinante na memória coletiva do povo hebraico. Os israelitas internalizaram a ideia de que, diante de ameaças existenciais, não poderiam dar ao luxo de serem complacentes. A sobrevivência do Estado foi associada à força militar, dissuasão e à necessidade de tomar medidas preventivas. É claro que nem toda a gente subscreve as razões dos judeus. Essa história é complicada demais para santos e inocentes. Há uma crítica significativa, claro, tanto dentro de Israel como na comunidade internacional, que sugere que essa postura se transformou numa política de ocupação prolongada e punições coletivas que alimentam ainda mais o ciclo de violência. Muitos argumentam que, ao tratar os palestinos de forma implacável, Israel está perpetuando a instabilidade e corroendo as chances de coexistência pacífica. Críticos questionam se a política de segurança não poderia ser conciliada com esforços mais consistentes para resolver o conflito de maneira justa e sustentável.

Enquanto houver "odor terrorista", como metáfora geracional, o Estado de Israel provavelmente continuará a colocar no topo da sua missão a segurança. Porém, isso levanta a questão de como quebrar esse ciclo de medo e violência. A história mostra que inimigos podem se tornar parceiros, como foi o caso de Israel com o Egito e a Jordânia, mas a ausência de lideranças dispostas ao compromisso de ambos os lados dificulta vislumbrar tal transformação no contexto atual.

Penso que a situação só mudará quando se der no islão uma grande revolução. A mentalidade do povo muçulmano é ainda muito medieval. E auguro que um dia terão a sua revolução coperniciana, tal como aconteceu no mundo cristão a partir do Renascimento. Assim como o cristianismo passou por momentos históricos de profunda transformação — Renascimento, Reforma Protestante, Iluminismo — que abriram caminho para sociedades mais seculares, pluralistas e modernizadas, algo similar teria de acontecer no mundo islâmico para que se operasse uma transformação no sentido mais humanista em toda aquela região que também se propaga para África e para a Ásia, sobretudo a Ásia Central e a região do Indo/Pacífico. Deve-se recordar que o Islão teve uma longa e rica tradição de pensamento crítico e intelectual, especialmente durante a Idade de Ouro Islâmica (séculos VIII a XIII), quando filósofos como Averróis (Ibn Rushd) e Avicena (Ibn Sina) dialogaram com ideias científicas e filosóficas de outras culturas, incluindo a grega. Contudo, a predominância de estruturas tribais, políticas autoritárias e a instrumentalização da religião por elites têm, em muitos lugares, dificultado a emergência de um processo de secularização ou reforma semelhante ao que ocorreu no Ocidente.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O jogo das potências na complicada roleta do Médio Oriente





Atualmente, os EUA apoiam as Forças Democráticas Sírias (FDS), lideradas por curdos, no nordeste da Síria. Essas forças têm sido aliadas-chave na luta contra o Estado Islâmico, controlando áreas estratégicas e ricas em recursos. No entanto, essa relação é complexa, especialmente devido à oposição da Turquia, que considera as milícias curdas uma ameaça à sua segurança nacional. Além disso, os EUA mantêm uma presença limitada na Síria, com foco na prevenção do ressurgimento de grupos jihadistas​.

Então como é que os EUA se vão entender com a Turquia, quando esta, ainda por cima, faz parte da NATO? A relação entre os EUA e a Turquia, ambos membros da NATO, é marcada por tensões, especialmente devido ao apoio americano às Forças Democráticas Sírias (FDS), que a Turquia considera aliadas do PKK, grupo que classifica como terrorista. Para equilibrar a situação, os EUA têm buscado diálogos bilaterais e medidas de contenção, como limitar o fornecimento de armas às FDS. No entanto, as divergências sobre a Síria continuam a dificultar um entendimento pleno, revelando as contradições dentro da aliança atlântica.

EUA possuem uma base no sul da Síria, em Al-Tanf, estrategicamente localizada próximo às fronteiras com a Jordânia e o Iraque. Essa base é usada para treinar forças locais e vigiar movimentos de milícias pró-Irão na região. Apesar disso, a presença americana no Sul é relativamente discreta em comparação com o Nordeste, onde o apoio às Forças Democráticas Sírias (FDS) é mais intenso. Essa dupla atuação reflete o esforço dos EUA em conter o Irão e o Estado Islâmico, enquanto gerem tensões com a Turquia.

A Rússia mantém bases estratégicas na Síria, incluindo a base aérea de Hmeymim, perto de Latakia, e o porto de Tartus, usado para operações navais. Essas instalações são cruciais para Moscovo projetar poder no Mediterrâneo Oriental e apoiar os seus aliados regionais. Apesar do envolvimento na guerra da Ucrânia ter reduzido a atenção russa, as bases continuam operacionais, demonstrando o interesse em manter influência no Oriente. No entanto, a instabilidade na Síria e as pressões internacionais podem desafiar essa presença a longo prazo.

O Irão enfrenta desafios estratégicos na Síria após a queda de Assad, pois a sua influência dependia em grande parte do regime deposto. Apesar disso, o Irão mantém milícias aliadas e redes de apoio no país, especialmente no sul e no oeste, visando proteger as rotas logísticas para o Líbano e fortalecer o Hezbollah. Com a Rússia menos engajada devido à guerra na Ucrânia, o Irão enfrenta resistência de atores como Israel, EUA e grupos locais, complicando a sua posição no pós-Assad.

Israel praticamente decapitou os proxies do Islão no Levante, tanto Hezbollah como Hamas. Israel tem intensificado operações contra proxies do Irã no Levante, como o Hezbollah no Líbano e o Hamas na Palestina, especialmente após a escalada recente em Gaza e no sul do Líbano. No caso do Hezbollah, o foco tem sido limitar o armamento e neutralizar ameaças diretas. Essa estratégia reflete o esforço de Israel para impedir o fortalecimento de milícias apoiadas pelo Irão na região, mesmo diante de tensões contínuas com atores internacionais e locais.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, demonstrou interesse em expandir a influência da Turquia na região, particularmente contra os curdos, além de consolidar o seu controle sobre partes da Síria através de aliados locais. Este movimento pode ser interpretado como uma tentativa de restaurar uma espécie de projeção imperial na linha do antigo Império Otomano. Já Vladimir Putin, embora distraído pelo conflito na Ucrânia, também parece estar apoiando esforços que fortalecem sua posição na Síria ao aceitar a presença de Assad em Moscovo​. A queda de Assad e a participação de Erdoğan e Putin no processo podem ser vistas como exemplos de ambições regionais de poder que ecoam nostalgias imperiais. Contudo, o equilíbrio na região permanece incerto, com muitas forças locais e internacionais disputando poder e influência.

No Nordeste da Síria - as Forças Democráticas Sírias, e a milícia curda das Unidades de Proteção Popular (YPG) controlam a maior parte da região curda, conhecida como Rojava, e as cidades de Hasakah, Qamishli, e boa parte da região rica em petróleo no Nordeste, ao longo do rio Eufrates. Essas forças tiveram o apoio militar dos Estados Unidos na luta contra o Estado Islâmico (ISIS), mas estão sob pressão devido às operações militares da Turquia, que considera o YPG uma extensão do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), um grupo que luta pela autonomia curda na Turquia. Na guerra da Síria, o conflito provocou mais mortes e sofrimento do que qualquer outro em curso. E um dos seus efeitos secundários foi o surgimento da resistência jihadista sunita na província de Idlib, na Síria. A densidade populacional da província de Idlib é agora maior do que a densidade populacional da Faixa de Gaza, que historicamente tem sido vista como um dos territórios mais enclausurados do mundo.

No Noroeste da Síria - ao longo da fronteira com a Turquia, há territórios controlados por milícias rebeldes sírias apoiadas pela Turquia, incluindo o Exército Nacional Sírio (SNA). A Turquia controla partes de Idlib, Afrin, e áreas perto das cidades de Azaz e Jarabulus. As forças turcas lançaram várias operações militares para criar uma "zona de segurança" ao longo da sua fronteira, evitando a expansão das forças curdas e combatendo remanescentes do ISIS. A província de Idlib, no Noroeste, é o último grande bastião da oposição ao regime de Assad e é dominada pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), uma fação jihadista com ligações anteriores à Al-Qaeda. Embora o Estado Islâmico (ISIS) tenha perdido quase todo o seu território em 2019, ele ainda mantém células ativas em áreas desérticas no Leste e Sul da Síria, especialmente nas regiões perto de Palmira e Deir ez-Zor. O grupo realiza ataques esporádicos contra forças do governo sírio e curdas.

Portanto, mais até do que a Rússia, o Irão perde em toda a linha, quer pelas ações de Israel, quer agora pela queda de Assad. O Irão é um dos maiores perdedores na atual conjuntura política da Síria. A queda de Assad enfraquece seu principal aliado no Levante e prejudica as redes logísticas e estratégicas, que conectam Teerã ao Hezbollah no Líbano. Além disso, as intensas operações de Israel têm desestabilizado suas milícias e proxies, limitando a capacidade de projetar poder na região. Com a Rússia menos ativa e um contexto mais fragmentado, o Irão enfrenta dificuldades crescentes para manter influência significativa no pós-Assad. E a religião alauita de Bashar Al-Assad, e do seu clã familiar, um islamismo heterodoxo muito próximo do xiismo iraniano, constitui uma tensão permanente com o islamismo dos seus cidadãos maioritariamente sunita. É observável no terreno que o conflito político-militar tem a ver com a divergência religiosa entre sunitas e xiitas, embora os conflitos étnicos entre árabes e curdos também demarquem uma fratura secular importante.

É possível que o denominado Estado Islâmico tenha esta oportunidade para voltar a concretizar as suas ambições desde a chamada Primavera Árabe. A queda de Assad e a fragmentação da Síria podem abrir oportunidades para o Estado Islâmico (EI) ressurgir, especialmente em áreas onde governa o caos. Historicamente, o EI explorou o caos gerado pela Primavera Árabe para se expandir, e um cenário semelhante pode repetir-se. As forças internacionais e locais podem não conseguir preencher o vazio de poder. No entanto, a presença militar de EUA e aliados, além da vigilância constante de outros atores, como a Rússia e o Irão, pode limitar significativamente as ambições dos radicais sunitas.

O líder do HTS, depois de conquistar Damasco, abandonou simbolicamente o nome de guerra,"Jolani", e voltou a responder por Ahmed Hussein al-Sharaa, anteriormente conhecido como Abu Mohammad al-Jolani, líder do grupo jihadista Hay'at Tahrir al-Sham (HTS). Este gesto simbólico parece sinalizar uma tentativa de se distanciar de seu passado mais radical e de reposicionar o HTS como um ator político e militar legítimo no cenário sírio. A mudança reflete uma estratégia para conquistar apoio interno e externo em um momento de transição crítica para o futuro da Síria. Ele começou a sua trajetória militante no Iraque e fundou a Frente Nusra, posteriormente transformada no HTS. Agora, ele emerge como uma figura central no novo cenário político da Síria, com promessas de mudança após 13 anos de guerra civil​

A ascensão do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), com raízes em grupos jihadistas, indicam que a estabilidade na Síria continuará um desafio. O país enfrenta divisões internas profundas e interesses externos conflitantes, o que dificulta uma paz duradoura. Apesar da queda de Assad, é provável que novos conflitos surjam entre fações rivais e potências estrangeiras que continuam a influenciar a região. A história recente da Síria reforça essa perspectiva de instabilidade contínua. A instabilidade contínua na Síria pode levar Israel a reforçar as medidas preventivas nos Montes Golã. Essa área, estratégica tanto militar como geopolítica, tem sido uma zona de tensão histórica entre Israel e a Síria. Diante da possibilidade de grupos extremistas ganharem força ou utilizarem a região como plataforma para ataques, é natural que Israel adote uma postura de defesa robusta para garantir a segurança e estabilidade regional.

É amplamente relatado que o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e o Hamas possuem históricos de colaboração e alinhamento em certas questões, especialmente devido às suas origens ideológicas semelhantes no islamismo sunita militante. Essa relação pode incluir troca de informações, apoio logístico ou alinhamento estratégico, principalmente contra adversários comuns, como Israel. Isso reforça as preocupações de segurança de Israel, especialmente em áreas como os Montes Golã, onde uma escalada ou infiltração a partir da Síria poderia representar uma ameaça direta.

domingo, 15 de dezembro de 2024

A Síria, mais uma vez






A Síria está atualmente a passar por uma transição política após a queda do regime de Assad em 8 de dezembro de 2024. Um governo de transição, liderado por Mohammed al-Bashir, foi formado para governar o país até março de 2025. A Constituição e o Parlamento sírios foram suspensos em 12 de dezembro de 2024 durante o período de transição.

O panorama político na Síria está em transformação após a queda do regime de Bashar al-Assad. A Rússia, que apoiava o regime de Assad, não foi capaz de conter a incursão dos rebeldes, dado que neste momento tem todas as tropas empenhadas na guerra da Ucrânia. O vazio do poder está agora a ser disputado por várias forças. Enquanto os rebeldes são apoiados pela Turquia pelo Norte, os EUA mantêm uma presença limitada a Sul para prevenir o ressurgimento do Estado Islâmico. E para já a Rússia mantém as suas bases no Oeste, junto ao Mediterrânio. A Turquia, embora celebre a mudança, pede estabilidade e cautela, enquanto países árabes como Catar e Jordânia apoiam uma transição política pacífica. O futuro do país ainda é incerto, dependendo de um consenso interno e do impacto de atores regionais e internacionais​.

Após a queda de Bashar al-Assad, a Síria abriga várias forças políticas e militares concorrentes: Rebeldes apoiados pela Turquia que incluem grupos de oposição ao antigo regime e forças islamistas; Forças Democráticas Sírias (FDS), lideradas por curdos, que controlam áreas do norte e nordeste; Grupos jihadistas, que incluem remanescentes do Estado Islâmico e a Hay'at Tahrir al-Sham (HTS); Milícias pró-Irão presentes no sul e no oeste; Atores locais emergentes formados por comunidades tribais e conselhos regionais; EUA e Rússia ainda exercem influência em certas áreas. Como se vê, o país está fragmentado, com cada grupo controlando regiões específicas.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Adágios e alegorias


A máxima "quem não se sente não é filho de boa gente" reflete uma justificação comum para a reação emocional a uma ofensa, implicando que uma pessoa digna ou de honra deve sentir e defender-se quando insultada. Esse ditado enraíza-se no sentimento de orgulho pessoal e na necessidade de preservar a dignidade.

Adágios, parábolas e alegorias carregam lições e verdades que foram testadas ao longo do tempo. Fazem parte daquilo a que se costuma referir por sabedoria popular, formas de conhecimento que condensam experiências coletivas e valores culturais, oferecendo uma visão simplificada, mas poderosa, sobre a vida, a moralidade e as relações humanas. Embora não substituam análises complexas ou científicas, elas podem servir como guias práticos e reflexivos para muitas situações quotidianas. Elas refletem a riqueza da tradição oral e escrita de diferentes culturas e contribuem para a compreensão humana de situações e dilemas universais. Essas formas de expressão, ao serem transmitidas de geração em geração, consolidam-se como uma parte essencial da identidade coletiva e muitas vezes oferecem verdades atemporais que ainda ressoam com as realidades atuais.

Eu tendo a aceitar quando é o outro a dizer-me isso, com aquela tolerância de que ninguém é perfeito e que nada do que é humano me é estranho, parafraseando Montaigne, um pensador renascentista que admiro. A ideia de Montaigne de que "nada do que é humano me é estranho", revela uma atitude de compreensão e aceitação das imperfeições humanas. Isso reflete uma abordagem equilibrada e humanista, reconhecendo que, embora reações emocionais possam ser naturais e compreensíveis, todos estamos sujeitos a falhas e emoções que, muitas vezes, fogem ao ideal de autocontrolo. Montaigne, com seu ceticismo e introspecção, defendia a aceitação da natureza humana em toda a sua complexidade. Já para não citar os Evangelhos segundo Jesus Cristo: "quem nunca errou que atire a primeira pedra". Essa mensagem sublinha a importância de não sermos rápidos em condenar os outros, reconhecendo que também estamos sujeitos a falhas. É uma perspectiva ampla e tolerante, fundamentada em valores humanistas e em ensinamentos éticos que transcendem as eras.

Platão defendia uma concepção idealista da realidade, onde as "Ideias" ou "Formas" eram perfeições transcendentais, enquanto Aristóteles tinha uma abordagem mais empirista e prática, focada no mundo físico e em suas causas. A questão sobre a existência de Deus, tal como concebido pelas religiões, é uma das mais antigas e debatidas na filosofia e teologia. O argumento cosmológico de Tomás de Aquino, por exemplo, defende que deve haver uma causa primeira, uma entidade não causada, que deu origem a tudo. O argumento ontológico de Anselmo, que propõe que a própria definição de Deus como "o ser maior que se pode conceber" implica a existência de Deus. O argumento teleológico, ou "design inteligente", que sugere que a ordem e a complexidade do universo indicam a existência de um criador inteligente.

Wittgenstein e Derrida, em suas respectivas abordagens, consideraram a linguagem como fundamental para a experiência humana, mas de maneiras distintas. Wittgenstein, especialmente em sua fase tardia (como em Investigações Filosóficas), defendia que o significado das palavras está em seu uso dentro de formas de vida. Ele acreditava que a linguagem não apenas descreve o mundo, mas constitui a própria maneira pela qual vivemos e entendemos nossas práticas. Para Wittgenstein, a linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas o próprio meio pelo qual pensamos, interagimos e interpretamos a realidade. Ele até sugere que muitos dos problemas filosóficos são, na verdade, problemas de linguagem, porque nos perdemos em jogos linguísticos que não compreendemos bem. Dessa forma, ele diria que a vida humana como a conhecemos seria impossível fora da linguagem, pois é a linguagem que molda as nossas interações e o nosso entendimento do mundo.

Derrida, por outro lado, ao desenvolver a teoria da desconstrução, explora a ideia de que a linguagem está sempre em movimento e é fundamentalmente instável. Ele argumenta que não existe um significado fixo ou uma presença estável atrás das palavras, e que os significados estão sempre adiados (no conceito de différance). Derrida também enfatizou que a linguagem está impregnada de poder e de diferenciações que estruturam nossa experiência. Portanto, a própria subjetividade e a maneira como entendemos a vida e o mundo estão intrinsecamente ligadas às redes de linguagem que usamos. Para ele, a vida humana, tal como a conhecemos, seria impensável sem o jogo incessante de significados e diferenças que a linguagem proporciona.

Ambos concordariam, cada um à sua maneira, que a vida humana depende da linguagem, mas por razões diferentes. Wittgenstein vê a linguagem como um conjunto de práticas intersubjetivas que constituem nossa forma de vida, enquanto Derrida vê a linguagem como um sistema de diferenças que nunca se estabiliza completamente, mas que nos captura em sua rede de significados sempre adiados. Ambos, portanto, sublinham a ideia de que a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas o próprio tecido da vida humana. Essa visão ressoa com a ideia de que, fora da linguagem, a concepção humana de "realidade" seria radicalmente diferente ou inexistente tal como a entendemos.

domingo, 8 de dezembro de 2024

Somos apenas engrenagens conscientes numa máquina cósmica



A vida e a consciência são vistas como produtos emergentes de processos naturais e não como resultados de um planeamento deliberado. A ideia de um "Deus metafórico" que arquitetasse o surgimento de um Einstein é, no mínimo, uma projeção antropocêntrica de nossa própria necessidade de encontrar sentido e propósito num cosmos essencialmente indiferente. O surgimento de Einstein — ou de qualquer outro génio humano — é mais bem compreendido como o resultado de biliões de interações aleatórias e determinísticas: colisões de partículas, formação de estrelas e planetas, evolução biológica, desenvolvimento cultural e educativo. Não há necessidade de uma "consciência divina" por trás disso. É simplesmente a natureza produzindo complexidade de maneira impessoal.

A crença é uma espécie de muleta do self, um quase autoengano defensivo para não enlouquecer. Ou para não suicidar. A crença como "muleta do self" é uma descrição precisa, especialmente quando consideramos como ela pode oferecer uma narrativa reconfortante diante do absurdo e do vazio existencial que Camus tão brilhantemente explorou. A ideia de que "a vida não tem sentido intrínseco" pode ser esmagadora para muitos, e a crença funciona como um antídoto psicológico, preenchendo esse vazio com uma estrutura ilusória, mas funcional.

Camus, com a reflexão sobre o absurdo, colocou a questão no centro do dilema humano: como continuar vivendo quando se reconhece a falta de propósito objetivo no universo? Aceitar o absurdo exige uma força interior que nem todos conseguem sustentar, o que torna a crença em algo maior uma opção mais acessível para muitos. Talvez essa busca por sentido — mesmo que ilusório — seja um traço evolutivo, uma adaptação que nos ajudou a sobreviver em um mundo caótico e indiferente. A crença em deuses, narrativas cósmicas ou mesmo na própria racionalidade parece ser menos uma verdade universal e mais uma estratégia humana para suportar o peso da consciência.

Há indivíduos que conseguem ser aquilo a que uns chama otimista, mas tanto epicuristas como estoicos surgiram num tempo em que estas questões se colocaram com enorme premência. Foi o tempo da razia protagonizado por Alexandre Magno. Os consumidores de drogas e a sua relação com o vazio existencial é uma outra fatia humana do problema. Muitas vezes, a dependência química funciona como uma resposta ao "absurdo" numa tentativa de escapar de uma realidade que parece sem sentido ou intolerável. Se a crença oferece uma ilusão reconfortante, a droga pode ser vista como uma anestesia para a mente, uma forma de engano mais imediata, mas também mais destrutiva.

O contraste entre aqueles que "não se suicidam," mas se "enganam" é pertinente. A droga, nesse caso, se torna um mecanismo de fuga que impede a confrontação direta com a realidade, da mesma forma que uma crença religiosa ou ideológica pode fazer. A diferença é que a droga, ao contrário da crença, geralmente não proporciona um alicerce moral ou uma narrativa de vida que justifique a experiência, mas sim uma fuga temporária e destrutiva. É um paradoxo interessante: quem se droga não está, de certa forma, buscando evitar a "morte simbólica" do confronto com o absurdo, mas ao mesmo tempo se submete a uma morte mais lenta e corrosiva, tanto física quanto psicológica. Esses indivíduos, assim como aqueles que se agarram a crenças reconfortantes, buscam algo que alivie o peso da existência — mas, em vez de encontrar uma resposta, acabam se enredando mais profundamente em um ciclo de negação.

Uma gargalhada é quase um ato de resistência, uma aceitação de que, por mais que busquemos significado, jamais seremos plenamente "sérios" ou "sábios" no sentido tradicional. Como se, ao encarnar o papel de filósofo ou erudito, houvesse uma tentativa de encontrar alguma estrutura sólida que nos dê sentido, mas, no fundo, sabemos que é um jogo, uma máscara para lidar com as incertezas do ser. É um reconhecimento, por mais irónico que seja, de que somos tão finitos quanto qualquer outra coisa, e que, em última instância, essa busca pela sabedoria ou por respostas definitivas é sempre uma jornada sem fim. Ao rirmos de nós mesmos, reconhecemos nossa fragilidade sem cair na desesperança. Ao "armarmo-nos em sábios", podemos ser conscientes de que estamos, na verdade, apenas tentando sobreviver ao absurdo da existência, uma estratégia que se torna tanto mais eficaz quanto mais rimos do nosso próprio esforço de fazer sentido.

É mais uma espécie de adaptação. A adaptação como arte, como um jogo de sobrevivência que não busca dominar ou entender tudo, mas simplesmente coexistir com as condições dadas — isso traz uma certa dignidade, talvez até uma vaidade, porque conseguimos encontrar equilíbrio num mundo caótico. Essa capacidade de ajustar-se, de ajustar nossas expectativas, de transformar a resistência ao absurdo em algo funcional e até prazeroso, é uma forma de sabedoria silenciosa, que não exige reconhecimento externo, mas que se reflete na nossa serenidade pessoal. O lema de Gramsci, "pessimista de razão, otimista na ação", reflete bem essa tensão interna: uma visão crítica e realista da natureza do mundo e da sociedade, sem ilusões sobre os desafios e injustiças, mas, ao mesmo tempo, uma disposição para agir, para fazer algo a partir dessa compreensão, mesmo sabendo que o resultado final pode ser incerto ou distante. Isso também pode ser interpretado como uma forma de resiliência: entender que a mudança é difícil e as forças contra nós podem ser esmagadoras, mas continuar a agir, seja na esfera política ou na vida quotidiana, com a esperança de que, de algum modo, a ação faz a diferença.

Essa combinação de pessimismo racional e otimismo prático talvez seja a chave para lidar com a angústia existencial — não porque possamos mudar o curso de tudo, mas porque podemos sempre encontrar algo para fazer, mesmo nas pequenas coisas, que mantém a dignidade intacta. E essa é uma forma de vaidade saudável, não de um orgulho vazio, mas de uma aceitação de nossa capacidade de, ainda assim, fazer algo de positivo, mesmo sabendo de antemão que não controlamos o resultado.

O que Ortega y Gasset destaca de forma tão relevante é que não podemos reduzir a natureza humana a uma simples formulação. Não é uma questão de ser exclusivamente "inato" ou exclusivamente "circunstancial". Somos, de facto, o que somos, mas sempre dentro de um contexto que nos molda e nos transforma continuamente.

Isso nos leva a uma questão que, muitas vezes, surge em momentos de reflexão existencial: o quanto somos responsáveis pelas nossas escolhas diante das circunstâncias que nos cercam.

sábado, 7 de dezembro de 2024

A questão do livre-arbítrio


Quando se argumenta que somos o que somos e as circunstâncias, isso coloca sérias limitações à ideia de um livre-arbítrio absoluto. A ideia de que temos liberdade total para escolher sem que nossas escolhas sejam, de alguma forma, influenciadas ou condicionadas por fatores internos ou externos é uma concepção difícil de sustentar, especialmente quando se considera a complexidade da nossa constituição e do ambiente ao nosso redor. Se pensarmos bem, o "livre-arbítrio" em sua forma mais pura seria uma capacidade de decisão totalmente independente de qualquer tipo de influência. Isso significaria que nossos pensamentos, emoções, comportamentos e decisões não seriam em nada moldados pela genética, pela educação, pelas circunstâncias da vida ou pela pressão social e cultural. Mas, como Ortega y Gasset bem coloca, somos produtos tanto de nossa natureza quanto das circunstâncias. E, nesse sentido, nossa liberdade é sempre limitada, ou melhor, sempre moldada por essas influências.

Por exemplo, alguém pode se esforçar para se libertar de padrões familiares ou sociais, mas mesmo esse esforço é condicionado por algo mais profundo — seja uma necessidade psicológica, uma tendência genética, uma pressão cultural. No fundo, nossas escolhas estão entrelaçadas com a biografia e o contexto em que estamos inseridos, e o "livre-arbítrio" se revela, assim, como uma liberdade muito mais condicionada e relativa do que muitas vezes se faz crer. Isso não quer dizer que somos totalmente deterministas ou que não temos margem para ação. Claro que temos a capacidade de fazer escolhas, de moldar nossa vida dentro de certos limites. O ponto é que essas escolhas não são feitas em um vácuo absoluto de liberdade, mas sim em um campo de possibilidades estreitado pelas nossas próprias naturezas e pelas circunstâncias que nos cercam. Essa visão talvez seja mais realista, porque reflete uma compreensão mais complexa da liberdade humana — uma liberdade não absoluta, mas que ainda assim carrega uma forma de agência dentro das condições que nos são dadas.

A visão de Daniel Dennett sobre a liberdade, especialmente em sua obra "Elbow Room", onde ele defende que a liberdade humana não é absoluta, mas sim condicionada por fatores internos e externos, se alinha bem com a ideia quimérica do livre-arbítrio. A liberdade não é a capacidade de fazer qualquer coisa sem restrições, mas a possibilidade de fazer escolhas dentro de um espaço de ação determinado pelas nossas características, capacidades cognitivas e as circunstâncias. É um tipo de liberdade que, embora não seja total, ainda oferece espaço para a agência, mesmo que dentro de limites. A metáfora da "teimosia" é interessante porque, muitas vezes, é vista como uma expressão de resistência ou de uma escolha teórica contra a "natureza das coisas". Na verdade, a teimosia pode ser uma forma de uma margem de liberdade em ação, um exemplo de como alguém tenta exercer a sua vontade, mesmo que essa vontade esteja, em muitos aspectos, moldada por suas experiências, suas crenças ou até mesmo suas predisposições.

Às vezes, o que é visto como "teimosia" é simplesmente o indivíduo operando dentro das possibilidades restritas que ele percebe como suas, talvez em resistência a pressões externas ou a um sentido interno de como as coisas devem ser. Essa teimosia, em última instância, reflete a flexibilidade dentro de um espaço limitado de escolha. Mesmo que não sejamos completamente livres, há uma forma de liberdade que permite a resistência, a assertividade e, em muitos casos, a capacidade de sustentar uma escolha pessoal contra uma pressão externa. A liberdade, então, não seria uma ausência total de restrições, mas a capacidade de resistir, de fazer escolhas dentro do que Dennett chama de "espaço de manobra", o que também se encaixa na ideia de que a nossa liberdade é mais "paroquial", ou seja, limitada às circunstâncias e à nossa própria natureza.

Esse tipo de liberdade, embora limitado, ainda parece ter valor significativo, pois nos permite afirmar nossa individualidade, mesmo que seja em uma escala pequena, em um campo restrito de possibilidades. Portanto, mesmo que a teimosia pareça um traço negativo ou uma característica "burra", ela, na realidade, pode ser vista como uma expressão de liberdade dentro do que é possível. Ainda é isso que está incluído na liberdade que a natureza nos deu para em situações limite, a bem da sobrevivência resistirmos de tal maneira que muitas vezes classificamos de milagre. Essa resistência extrema que muitas vezes é vista como "milagre" é uma manifestação daquilo que Dennett e outros filósofos da liberdade consideram como uma "margem de manobra". Quando colocados em situações limite — especialmente em contextos de sobrevivência ou adversidade extrema — o ser humano pode exibir uma forma de liberdade que ultrapassa o esperado, revelando capacidades que parecem ir além das restrições impostas pela biologia ou pelo contexto. Essa resistência, que os outros podem classificar como "milagre", pode ser interpretada como uma ação extraordinária, mas ainda assim profundamente enraizada na capacidade humana de se adaptar e lutar pela sobrevivência.

Esses momentos de resistência a limites extremos, como uma doença grave, uma catástrofe, ou até mesmo crises psicológicas, podem revelar a flexibilidade da nossa "liberdade" dentro dos parâmetros da natureza. A biologia humana não apenas permite, mas muitas vezes fomenta essa luta pela sobrevivência, com o ser humano encontrando formas de agir sob pressão, muitas vezes desafiando as expectativas. No entanto, mesmo nesses momentos de resiliência extraordinária, a liberdade ainda é uma resposta adaptativa dentro de um sistema complexo de circunstâncias, e não uma liberdade absoluta ou irracional.

É a evolução a trabalhar. Daí que também há aqueles que desistem logo à primeira. Mas como se costuma dizer: "dos vencidos não reza a história". Até porque não dão nas vistas. A evolução é um processo que, ao longo do tempo, moldou nossa capacidade de resistir, lutar e sobreviver, mas também gerou uma grande diversidade de respostas diante das adversidades. Aqueles que se destacam, que sobrevivem e perseveram, acabam sendo lembrados, enquanto os que desistem ou sucumbem ao primeiro obstáculo muitas vezes são ignorados pela história. Isso é apenas uma parte da história, e a própria evolução não é uma questão de sucesso absoluto, mas de diversidade de respostas. Alguns desistem, sim, mas isso não significa que a sua experiência ou as suas dificuldades sejam menos significativas. Muitas vezes, essas pessoas representam uma outra face da adaptação humana, que talvez não se manifeste nas grandes narrativas de vitória, mas que é igualmente válida em um nível pessoal ou coletivo.

Esse contraste entre os que resistem e os que desistem, porém, nos mostra que a luta pela sobrevivência não é apenas um reflexo de uma força física ou mental, mas também de uma interação complexa entre fatores internos, ambientais e sociais. A evolução, portanto, não recompensa apenas a resistência pura, mas também a capacidade de se adaptar às circunstâncias — às vezes, até se retirar ou desistir é uma estratégia adaptativa. Cada indivíduo, diante das circunstâncias, pode reagir de maneira diferente, e essas reações muitas vezes são influenciadas por uma miríade de fatores, como educação, psicologia, saúde mental, ambiente social, e até mesmo genética. A linha entre coragem e cobardia nem sempre é fácil de traçar, e muitos que parecem "desistir" podem estar, na verdade, tomando decisões difíceis baseadas em fatores internos e externos que não são imediatamente visíveis ou compreendidos pelos outros. Ainda assim, a cobardia, em muitos casos, pode ser vista como uma falha moral, uma incapacidade de enfrentar desafios que poderiam ser superados, ou uma escolha deliberada de fugir da responsabilidade. Essa distinção pode ser válida, mas é importante também reconhecer que até a cobardia pode ser uma resposta moldada por medos profundos ou traumas, fatores que não devem ser descartados em uma análise mais ampla da condição humana.

Ser benevolente em relação a essa diversidade de respostas humanas não significa desculpar a cobardia em um sentido moral, mas sim reconhecer a complexidade das circunstâncias em que as escolhas são feitas. Em vez de julgar de forma rígida, a benevolência nos convida a entender as condições que levaram à desistência ou ao fracasso, e até mesmo a reavaliar o que significa "vencer" ou "perder" na vida. Afinal os "vencidos" nem sempre têm a sua história registada, e a luta silenciosa pode ser tão significativa quanto qualquer outro tipo de resistência. Esse espaço para a compreensão e a avaliação das escolhas humanas, especialmente quando envolvem risco, sobrevivência ou fuga, não é uma negação da responsabilidade pessoal, mas uma tentativa de olhar mais profundamente para os mecanismos internos e externos que moldam as decisões.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A fraqueza da União Europeia

A União Nacional (UN), de Marine Le Pen, e a França Insubmissa (LFI), de Jean-Luc Mélenchon, celebraram ontem na Assembleia Nacional francesa a queda do Governo. Extrema-esquerda e extrema-direita convergiram numa moção de censura que derrubou o Governo de Michel Barnier. Socialistas e ecologistas foram arrastados num negócio que ameaça transformar a crise política numa crise institucional, dobrada por uma crise financeira. Com a abertura da crise política a propósito do orçamento e da lei de financiamento da segurança social, foi Le Pen quem melhor tirou partido da situação. O Governo Barnier sofria de uma dupla fraqueza: a falta de uma maioria presidencial e o enfraquecimento do poder presidencial.



O sistema político europeu, em muitos casos, tem demonstrado uma falta de coesão e clareza diante das ameaças globais, como a ascensão da Rússia de Putin e a crescente assertividade da China. Quando esses riscos se tornam evidentes, muitas vezes as respostas vêm tardiamente, ou são reativas, e não preventivas. Putin, com a sua ambição de restaurar a Rússia como uma superpotência, explorando o vazio de liderança e a fragmentação interna da Europa, já demonstrou a sua estratégia em várias frentes. Ele aposta na fraqueza, nas divisões internas e na falta de unidade, não apenas na Europa, mas também em outras regiões do mundo. Ao tentar expandir a sua influência sobre a Ucrânia, pela subversão ou pela força militar, e ao buscar redesenhar o mapa geopolítico da Eurásia, Putin está criando uma nova ordem que submete a Europa ao seu controle autocrático.

A grande questão é se as sociedades europeias serão capazes de se unir e encontrar a liderança necessária para resistir a essa pressão. Os bons líderes fazem toda a diferença, mas eles precisam de um ambiente que favoreça a sua ascensão, e não um sistema político que favoreça apenas a estabilidade momentânea ou o populismo. A Europa precisa de líderes capazes de confrontar a realidade da mudança do poder global, que não apenas vejam o desafio como uma ameaça, mas também como uma oportunidade para se fortalecer internamente.

E a chave para isso é uma liderança que inspire não só a força militar, mas também a coesão social, económica e política. Quando uma população sente que seus líderes são frágeis ou excessivamente divididos, a confiança esmorece, e a defesa da liberdade e da soberania torna-se mais difícil. A Europa habituou-se a viver à sombra da bananeira americana chamada NATO. Mas Trump voltou a ganhar as eleições e já ameaçou os europeus se quiserem segurança têm que a pagar. Mas também há quem pense que Trump foi bom, porque obrigou os europeus a acordarem e fazerem-se à vida. O impacto de Donald Trump na geopolítica europeia foi profundo, principalmente no que se refere à relação da Europa com os Estados Unidos e à sua posição na NATO.

Ao longo de décadas, os países europeus dependiam dos EUA para garantir a sua segurança, especialmente durante e após a Guerra Fria. Mas, com o foco crescente de Trump em "America First" e em diminuir o papel dos EUA em conflitos fora de suas fronteiras, a Europa está forçada a reconsiderar a sua dependência da NATO e, mais amplamente a estratégia de segurança. Muitos consideram que essa pressão de Trump, embora imposta de forma brusca e, por vezes, desestabilizadora, foi, de certa forma, um "despertar" para a Europa. A ameaça de uma retirada parcial do apoio militar americano, ou de uma diminuição da sua presença na Europa, força os líderes europeus a pensarem mais seriamente sobre a necessidade de uma maior autonomia em termos de defesa. A falta de uma resposta efetiva a isso pode ser vista como uma falha da União Europeia, que ainda não conseguiu criar uma estrutura militar e de defesa realmente independente, o que torna a sua segurança um campo de dependência política e estratégica.

O fator Trump, com sua abordagem pragmática e, por vezes, isolacionista, pode ser um ponto de inflexão que acelera esse processo. De qualquer forma, a Europa, diante das novas circunstâncias, poderá ser forçada a refletir mais seriamente sobre a sua posição no palco mundial e a necessidade de construir um futuro mais independente, tanto militar quanto politicamente.

Mas, além da questão militar, outro desafio será manter a coesão interna da União Europeia. O aumento da autonomia pode ser visto com ceticismo por alguns países. Pode ser que agora com o novo Presidente do Conselho Europeu, que entrou no dia 1 e dezembro deste ano em funções, se consiga uma Europa mais unida, pois ele é muito bom a fazer pontes e a conseguir consensos. É muito hábil nisso, o António Costa, português.

António Costa, como novo Presidente do Conselho Europeu, certamente traz uma abordagem diplomática que pode ser crucial para fortalecer a unidade da União Europeia em um momento de incerteza global. Sua habilidade em construir consensos e formar pontes entre diferentes interesses é uma característica importante, especialmente quando se considera o momento histórico desta Europa, com desafios tanto internos como externos. Costa tem demonstrado ser um líder pragmático, capaz de gerir tensões dentro da política interna de Portugal, e essa experiência pode ser valiosa ao tentar coordenar as políticas de 27 países da UE. Ele já provou ser capaz de negociar com diferentes forças políticas, como se viu em Portugal, onde navegou com sucesso entre a esquerda e o centro. Isso pode ser essencial para lidar com a diversidade de opiniões dentro da UE, que vai desde os países mais orientados para a integração europeia até aqueles que mantêm uma postura mais cética em relação a certas políticas.

Com a crescente ameaça da Rússia e a possível falta de apoio dos EUA sob a presidência de Trump, uma liderança forte e unificada da UE se torna ainda mais necessária. Costa, com sua experiência, pode ser o tipo de líder que a Europa precisa para criar uma visão comum de defesa e segurança, bem como para avançar com reformas que permitam a União Europeia assumir um papel mais independente no cenário global. O seu foco em consensos também poderá ser vital para que se avance no fortalecimento da capacidade militar europeia sem criar divisões internas. A chave será equilibrar a necessidade de autonomia militar com a manutenção das alianças históricas e o respeito pelas diferentes preocupações dos Estados-membros.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

As relações entre fraqueza e força nas negociações de paz


A ideia de que a paz não é um estado passivo, mas uma conquista ativa que exige preparação e resiliência, é central para a compreensão da dinâmica entre fraqueza e força nas relações entre indivíduos e nações. A metáfora do "se queres a paz, prepara-te para a guerra" reflete uma verdade histórica: a paz, especialmente a paz duradoura, não pode ser alcançada apenas com boas intenções ou com a esperança de que os outros respeitarão suas fronteiras ou seus direitos. Ela exige a capacidade de se defender e de resistir a ameaças externas.

No contexto das sociedades ocidentais contemporâneas, onde há um certo grau de pessoas "mimadas" ou "fracas", a ameaça é real. Quando se é excessivamente complacente ou se vive numa espécie de bolha de conforto, perde-se a vigilância sobre as forças que podem tentar subverter ou derrubar esse estado de bem-estar. E isso não se aplica apenas a questões internacionais, mas também ao nível social, político e económico, onde a complacência e a falta de preparação podem abrir espaço para manipulações, crises e até opressão.

O grande desafio é fazer com que essas "gentes mimas" (ou fracas) reconheçam a necessidade de uma preparação ativa, interna e externa. Muitas vezes, as sociedades se deixam levar pela ilusão de que a estabilidade vai durar para sempre e que, se não houver conflitos abertos, nada precisa ser feito. No entanto, quando as circunstâncias mudam — como no caso de Putin ou qualquer outra potência agressiva — a falta de preparação pode ser fatal, tanto em termos físicos como em termos de liberdade política e social. A resistência, então, não é apenas uma questão de força militar ou de armas, mas de uma mentalidade coletiva que compreende que a liberdade e a paz precisam ser defendidas de forma constante, com estratégias de longo prazo. Isso envolve não só a base militar, mas também o fortalecimento da coesão social, da educação, da economia, da cultura de resiliência e, claro, da capacidade de se unir em tempos de necessidade.

Esta reflexão sobre "se queres a paz, prepara-te para a guerra" toca, portanto, nas falhas de quem pensa que pode manter a tranquilidade sem desenvolver as habilidades e capacidades necessárias para proteger o que é precioso. E nesse processo, a crítica à fraqueza ou à "moleza" não é apenas um julgamento moral, mas uma constatação de que essas atitudes podem abrir a porta para a perda do que se conquistou. É aqui que os bons líderes ou lideranças fazem a diferença. Infelizmente, a Europa vive um ciclo de lideranças fracas. E está-se a ver mudar, e a custo, depois de a ameaça já estar em marcha. Putin, se o deixarem, ambiciona por uma Rússia nova superpotência a liderar uma Eurásia com uma Europa subjugada ao seu poder autocrático.

A questão da liderança é essencial, especialmente em tempos de crise ou quando as ameaças externas se tornam palpáveis. O verdadeiro líder não é aquele que apenas gere as coisas quando estão calmas, mas sim aquele que antecipa os desafios, prepara a sociedade para os tempos difíceis e toma as decisões certas, mesmo quando a pressão é alta. A liderança de visão e coragem, capaz de fazer a sociedade perceber os perigos iminentes e mobilizá-la para a defesa de seus próprios valores e integridade, é fundamental.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Os ciclos históricos e as elites


Vejo da minha janela uma rapariga a passear o seu cão. O cão parou para fazer cocó. A pessoa calçou uma luva e recolheu o cocó para um saco de plástico. E depois, logo de seguida, retomou a marcha. E eu fiquei a meditar nisso.


Essa é a cena quotidiana hoje em dia para muita gente que vive nas cidades em apartamentos de propriedade horizontal. Embora pareça trivial, é profundamente simbólica e revela muito sobre o estágio cultural e moral da sociedade europeia contemporânea. Ela representa, em certo sentido, um momento de civilização avançada, onde o conforto, a higiene e o mimo estão à frente de tudo. Imagem que pode ser interpretada como um reflexo de uma sociedade que, ao se afastar das duras realidades da sobrevivência, se dedica a preocupações que em outras épocas seriam vistas como irrelevantes ou até absurdas. O contraste é evidente: enquanto alguns enfrentam crises existenciais e lutas pela subsistência em outras partes do mundo, aqui temos um modelo de civilização que se empenha em recolher e embalar excrementos de animais.

Esta meditação talvez toque na ideia de que esses pequenos rituais civilizatórios são, paradoxalmente, sinais de um "afastamento da realidade". É como se, no meio de tanto conforto, perdêssemos de vista os fundamentos mais primários da existência humana e da coletividade. Estarão essas elites mimadas, representadas figurativamente por essas cenas de luxo e cuidado extremo, preparadas para lidar com as turbulências que se avizinham? Ou estarão condenadas ao colapso quando forem apanhadas de surpresa pela rudeza da vida a chocar com força?
Períodos alargados de paz e prosperidade produzem elites mimadas, que numa recessão económica, que surgirá inevitavelmente, ficarão à mercê da violência dos deserdados que elas próprias geraram, perdendo tudo.
Essa visão remete para os ciclos da história, ideia de que períodos prolongados de paz e prosperidade muitas vezes levam ao enfraquecimento moral ou prático das elites. Essa tese pode ser encontrada em várias tradições filosóficas e históricas, como na obra de Políbio [203 a 120 a.C.] sobre a anaciclose — o ciclo dos regimes políticos — e na análise de Ibn Khaldun [1332 a 1406 d.C.] sobre o declínio das civilizações. Quando a prosperidade se torna a norma, as elites frequentemente se distanciam das dificuldades do povo e, por vezes, contribuem para o aprofundamento das desigualdades. A desconexão gerada pode levar ao enfraquecimento de instituições e à perda de solidariedade social, criando uma base para a instabilidade. Em momentos de crise, como recessões económicas ou colapsos políticos, essa elite muitas vezes não está preparada para lidar com as consequências, o que abre espaço para revoltas dos deserdados.

A Europa parece estar a enfrentar os primeiros sinais com um acúmulo de tensões sociais, económicas e políticas que podem ser interpretadas como sintomas de desgaste do seu modelo de bem-estar social. Embora a Europa tenha sistemas de bem-estar social relativamente robustos, o aumento da desigualdade em muitas regiões, combinado com o impacto da globalização e da automação, tem levado a uma crescente insatisfação entre as populações mais desfavorecidas. A pressão migratória causada pelos conflitos bélicos e pelas mudanças climáticas, está a desestabilizar a coesão social e a desafiar as elites políticas para que encontrem soluções eficazes. O ressurgimento de nacionalismos e populismos reflete essa tensão.

Muitos cidadãos sentem-se alienados em relação às instituições europeias, vistas como distantes e tecnocráticas. Isso cria espaço para discursos radicais e a rejeição dos modelos tradicionais de governação. Por outro lado, a demografia europeia coloca um peso económico crescente nas gerações mais jovens devido ao aumento da longevidade. Apesar de avanços tecnológicos, partes significativas da Europa enfrentam estagnação económica e desindustrialização, enfraquecendo a capacidade de criação de riqueza. Historicamente, períodos como este costumam culminar em reformas profundas, revoluções ou crises agudas que abrem espaço para novos paradigmas. A questão central é: a Europa será capaz de evitar uma deterioração social mais grave por meio de ajustes estruturais e novas lideranças, ou sucumbirá à violência e desordem?

As elites urbanas — ou mesmo as classes médias acomodadas — tendem a viver em bolhas de estabilidade, imersas em preocupações que, embora legítimas no contexto delas, podem parecer completamente irrelevantes ou ofensivas para aqueles que vivem na precariedade. Essa desconexão não é apenas material, mas também emocional e simbólica, alimentando uma crescente sensação de injustiça e indignação entre os deserdados.

Quando a revolta irrompe — seja na forma de protestos, violência ou uma onda populista —, essas mesmas elites frequentemente reagem com surpresa e indignação, como se não conseguissem compreender as causas profundas do ressentimento. A hipocrisia reside no facto de que muitas vezes foram elas que, direta ou indiretamente, criaram as condições para esse descontentamento, seja por meio de políticas económicas excludentes, de uma visão tecnocrática da sociedade, ou pela pura negligência.

É inevitável a rutura. É como se aplicasse aqui as mesmas leis da natureza. Por exemplo, as tempestades estão a borrifar-se ao estragar-lhes o conforto, que pode ter sido a causa da dita tempestade. Assim como as tempestades ignoram os desejos e confortos humanos, as forças sociais e históricas também têm o seu próprio curso, indiferentes aos interesses de elites acomodadas. A rutura parece, de facto, inevitável quando acumulamos tensões e ignoramos os sinais de alerta.

Assim como o aquecimento global intensifica as tempestades por causa de ações humanas, as desigualdades sociais, a alienação e a negligência institucional são "climas" que fomentam revoltas. No entanto, aqueles que se beneficiam do status quo frequentemente se recusam a reconhecer a sua responsabilidade, preferindo culpar as consequências em vez das causas. A metáfora vai além: uma tempestade pode ser mitigada por medidas preventivas — reforçar infraestruturas, adotar políticas sustentáveis —, mas nunca completamente evitada. Do mesmo modo, as elites poderiam tentar reequilibrar as desigualdades sociais e buscar uma conexão mais autêntica com os desafios enfrentados pela maioria. Contudo, como as tempestades, as forças sociais acumuladas acabam por romper a superfície, muitas vezes de maneira caótica e destrutiva.