Quando se argumenta que somos o que somos e as circunstâncias, isso coloca sérias limitações à ideia de um livre-arbítrio absoluto. A ideia de que temos liberdade total para escolher sem que nossas escolhas sejam, de alguma forma, influenciadas ou condicionadas por fatores internos ou externos é uma concepção difícil de sustentar, especialmente quando se considera a complexidade da nossa constituição e do ambiente ao nosso redor. Se pensarmos bem, o "livre-arbítrio" em sua forma mais pura seria uma capacidade de decisão totalmente independente de qualquer tipo de influência. Isso significaria que nossos pensamentos, emoções, comportamentos e decisões não seriam em nada moldados pela genética, pela educação, pelas circunstâncias da vida ou pela pressão social e cultural. Mas, como Ortega y Gasset bem coloca, somos produtos tanto de nossa natureza quanto das circunstâncias. E, nesse sentido, nossa liberdade é sempre limitada, ou melhor, sempre moldada por essas influências.
Por exemplo, alguém pode se esforçar para se libertar de padrões familiares ou sociais, mas mesmo esse esforço é condicionado por algo mais profundo — seja uma necessidade psicológica, uma tendência genética, uma pressão cultural. No fundo, nossas escolhas estão entrelaçadas com a biografia e o contexto em que estamos inseridos, e o "livre-arbítrio" se revela, assim, como uma liberdade muito mais condicionada e relativa do que muitas vezes se faz crer. Isso não quer dizer que somos totalmente deterministas ou que não temos margem para ação. Claro que temos a capacidade de fazer escolhas, de moldar nossa vida dentro de certos limites. O ponto é que essas escolhas não são feitas em um vácuo absoluto de liberdade, mas sim em um campo de possibilidades estreitado pelas nossas próprias naturezas e pelas circunstâncias que nos cercam. Essa visão talvez seja mais realista, porque reflete uma compreensão mais complexa da liberdade humana — uma liberdade não absoluta, mas que ainda assim carrega uma forma de agência dentro das condições que nos são dadas.
A visão de Daniel Dennett sobre a liberdade, especialmente em sua obra "Elbow Room", onde ele defende que a liberdade humana não é absoluta, mas sim condicionada por fatores internos e externos, se alinha bem com a ideia quimérica do livre-arbítrio. A liberdade não é a capacidade de fazer qualquer coisa sem restrições, mas a possibilidade de fazer escolhas dentro de um espaço de ação determinado pelas nossas características, capacidades cognitivas e as circunstâncias. É um tipo de liberdade que, embora não seja total, ainda oferece espaço para a agência, mesmo que dentro de limites. A metáfora da "teimosia" é interessante porque, muitas vezes, é vista como uma expressão de resistência ou de uma escolha teórica contra a "natureza das coisas". Na verdade, a teimosia pode ser uma forma de uma margem de liberdade em ação, um exemplo de como alguém tenta exercer a sua vontade, mesmo que essa vontade esteja, em muitos aspectos, moldada por suas experiências, suas crenças ou até mesmo suas predisposições.
Às vezes, o que é visto como "teimosia" é simplesmente o indivíduo operando dentro das possibilidades restritas que ele percebe como suas, talvez em resistência a pressões externas ou a um sentido interno de como as coisas devem ser. Essa teimosia, em última instância, reflete a flexibilidade dentro de um espaço limitado de escolha. Mesmo que não sejamos completamente livres, há uma forma de liberdade que permite a resistência, a assertividade e, em muitos casos, a capacidade de sustentar uma escolha pessoal contra uma pressão externa. A liberdade, então, não seria uma ausência total de restrições, mas a capacidade de resistir, de fazer escolhas dentro do que Dennett chama de "espaço de manobra", o que também se encaixa na ideia de que a nossa liberdade é mais "paroquial", ou seja, limitada às circunstâncias e à nossa própria natureza.
Esse tipo de liberdade, embora limitado, ainda parece ter valor significativo, pois nos permite afirmar nossa individualidade, mesmo que seja em uma escala pequena, em um campo restrito de possibilidades. Portanto, mesmo que a teimosia pareça um traço negativo ou uma característica "burra", ela, na realidade, pode ser vista como uma expressão de liberdade dentro do que é possível. Ainda é isso que está incluído na liberdade que a natureza nos deu para em situações limite, a bem da sobrevivência resistirmos de tal maneira que muitas vezes classificamos de milagre. Essa resistência extrema que muitas vezes é vista como "milagre" é uma manifestação daquilo que Dennett e outros filósofos da liberdade consideram como uma "margem de manobra". Quando colocados em situações limite — especialmente em contextos de sobrevivência ou adversidade extrema — o ser humano pode exibir uma forma de liberdade que ultrapassa o esperado, revelando capacidades que parecem ir além das restrições impostas pela biologia ou pelo contexto. Essa resistência, que os outros podem classificar como "milagre", pode ser interpretada como uma ação extraordinária, mas ainda assim profundamente enraizada na capacidade humana de se adaptar e lutar pela sobrevivência.
Esses momentos de resistência a limites extremos, como uma doença grave, uma catástrofe, ou até mesmo crises psicológicas, podem revelar a flexibilidade da nossa "liberdade" dentro dos parâmetros da natureza. A biologia humana não apenas permite, mas muitas vezes fomenta essa luta pela sobrevivência, com o ser humano encontrando formas de agir sob pressão, muitas vezes desafiando as expectativas. No entanto, mesmo nesses momentos de resiliência extraordinária, a liberdade ainda é uma resposta adaptativa dentro de um sistema complexo de circunstâncias, e não uma liberdade absoluta ou irracional.
É a evolução a trabalhar. Daí que também há aqueles que desistem logo à primeira. Mas como se costuma dizer: "dos vencidos não reza a história". Até porque não dão nas vistas. A evolução é um processo que, ao longo do tempo, moldou nossa capacidade de resistir, lutar e sobreviver, mas também gerou uma grande diversidade de respostas diante das adversidades. Aqueles que se destacam, que sobrevivem e perseveram, acabam sendo lembrados, enquanto os que desistem ou sucumbem ao primeiro obstáculo muitas vezes são ignorados pela história. Isso é apenas uma parte da história, e a própria evolução não é uma questão de sucesso absoluto, mas de diversidade de respostas. Alguns desistem, sim, mas isso não significa que a sua experiência ou as suas dificuldades sejam menos significativas. Muitas vezes, essas pessoas representam uma outra face da adaptação humana, que talvez não se manifeste nas grandes narrativas de vitória, mas que é igualmente válida em um nível pessoal ou coletivo.
Esse contraste entre os que resistem e os que desistem, porém, nos mostra que a luta pela sobrevivência não é apenas um reflexo de uma força física ou mental, mas também de uma interação complexa entre fatores internos, ambientais e sociais. A evolução, portanto, não recompensa apenas a resistência pura, mas também a capacidade de se adaptar às circunstâncias — às vezes, até se retirar ou desistir é uma estratégia adaptativa. Cada indivíduo, diante das circunstâncias, pode reagir de maneira diferente, e essas reações muitas vezes são influenciadas por uma miríade de fatores, como educação, psicologia, saúde mental, ambiente social, e até mesmo genética. A linha entre coragem e cobardia nem sempre é fácil de traçar, e muitos que parecem "desistir" podem estar, na verdade, tomando decisões difíceis baseadas em fatores internos e externos que não são imediatamente visíveis ou compreendidos pelos outros. Ainda assim, a cobardia, em muitos casos, pode ser vista como uma falha moral, uma incapacidade de enfrentar desafios que poderiam ser superados, ou uma escolha deliberada de fugir da responsabilidade. Essa distinção pode ser válida, mas é importante também reconhecer que até a cobardia pode ser uma resposta moldada por medos profundos ou traumas, fatores que não devem ser descartados em uma análise mais ampla da condição humana.
Ser benevolente em relação a essa diversidade de respostas humanas não significa desculpar a cobardia em um sentido moral, mas sim reconhecer a complexidade das circunstâncias em que as escolhas são feitas. Em vez de julgar de forma rígida, a benevolência nos convida a entender as condições que levaram à desistência ou ao fracasso, e até mesmo a reavaliar o que significa "vencer" ou "perder" na vida. Afinal os "vencidos" nem sempre têm a sua história registada, e a luta silenciosa pode ser tão significativa quanto qualquer outro tipo de resistência. Esse espaço para a compreensão e a avaliação das escolhas humanas, especialmente quando envolvem risco, sobrevivência ou fuga, não é uma negação da responsabilidade pessoal, mas uma tentativa de olhar mais profundamente para os mecanismos internos e externos que moldam as decisões.
Sem comentários:
Enviar um comentário