segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Os ciclos históricos e as elites


Vejo da minha janela uma rapariga a passear o seu cão. O cão parou para fazer cocó. A pessoa calçou uma luva e recolheu o cocó para um saco de plástico. E depois, logo de seguida, retomou a marcha. E eu fiquei a meditar nisso.


Essa é a cena quotidiana hoje em dia para muita gente que vive nas cidades em apartamentos de propriedade horizontal. Embora pareça trivial, é profundamente simbólica e revela muito sobre o estágio cultural e moral da sociedade europeia contemporânea. Ela representa, em certo sentido, um momento de civilização avançada, onde o conforto, a higiene e o mimo estão à frente de tudo. Imagem que pode ser interpretada como um reflexo de uma sociedade que, ao se afastar das duras realidades da sobrevivência, se dedica a preocupações que em outras épocas seriam vistas como irrelevantes ou até absurdas. O contraste é evidente: enquanto alguns enfrentam crises existenciais e lutas pela subsistência em outras partes do mundo, aqui temos um modelo de civilização que se empenha em recolher e embalar excrementos de animais.

Esta meditação talvez toque na ideia de que esses pequenos rituais civilizatórios são, paradoxalmente, sinais de um "afastamento da realidade". É como se, no meio de tanto conforto, perdêssemos de vista os fundamentos mais primários da existência humana e da coletividade. Estarão essas elites mimadas, representadas figurativamente por essas cenas de luxo e cuidado extremo, preparadas para lidar com as turbulências que se avizinham? Ou estarão condenadas ao colapso quando forem apanhadas de surpresa pela rudeza da vida a chocar com força?
Períodos alargados de paz e prosperidade produzem elites mimadas, que numa recessão económica, que surgirá inevitavelmente, ficarão à mercê da violência dos deserdados que elas próprias geraram, perdendo tudo.
Essa visão remete para os ciclos da história, ideia de que períodos prolongados de paz e prosperidade muitas vezes levam ao enfraquecimento moral ou prático das elites. Essa tese pode ser encontrada em várias tradições filosóficas e históricas, como na obra de Políbio [203 a 120 a.C.] sobre a anaciclose — o ciclo dos regimes políticos — e na análise de Ibn Khaldun [1332 a 1406 d.C.] sobre o declínio das civilizações. Quando a prosperidade se torna a norma, as elites frequentemente se distanciam das dificuldades do povo e, por vezes, contribuem para o aprofundamento das desigualdades. A desconexão gerada pode levar ao enfraquecimento de instituições e à perda de solidariedade social, criando uma base para a instabilidade. Em momentos de crise, como recessões económicas ou colapsos políticos, essa elite muitas vezes não está preparada para lidar com as consequências, o que abre espaço para revoltas dos deserdados.

A Europa parece estar a enfrentar os primeiros sinais com um acúmulo de tensões sociais, económicas e políticas que podem ser interpretadas como sintomas de desgaste do seu modelo de bem-estar social. Embora a Europa tenha sistemas de bem-estar social relativamente robustos, o aumento da desigualdade em muitas regiões, combinado com o impacto da globalização e da automação, tem levado a uma crescente insatisfação entre as populações mais desfavorecidas. A pressão migratória causada pelos conflitos bélicos e pelas mudanças climáticas, está a desestabilizar a coesão social e a desafiar as elites políticas para que encontrem soluções eficazes. O ressurgimento de nacionalismos e populismos reflete essa tensão.

Muitos cidadãos sentem-se alienados em relação às instituições europeias, vistas como distantes e tecnocráticas. Isso cria espaço para discursos radicais e a rejeição dos modelos tradicionais de governação. Por outro lado, a demografia europeia coloca um peso económico crescente nas gerações mais jovens devido ao aumento da longevidade. Apesar de avanços tecnológicos, partes significativas da Europa enfrentam estagnação económica e desindustrialização, enfraquecendo a capacidade de criação de riqueza. Historicamente, períodos como este costumam culminar em reformas profundas, revoluções ou crises agudas que abrem espaço para novos paradigmas. A questão central é: a Europa será capaz de evitar uma deterioração social mais grave por meio de ajustes estruturais e novas lideranças, ou sucumbirá à violência e desordem?

As elites urbanas — ou mesmo as classes médias acomodadas — tendem a viver em bolhas de estabilidade, imersas em preocupações que, embora legítimas no contexto delas, podem parecer completamente irrelevantes ou ofensivas para aqueles que vivem na precariedade. Essa desconexão não é apenas material, mas também emocional e simbólica, alimentando uma crescente sensação de injustiça e indignação entre os deserdados.

Quando a revolta irrompe — seja na forma de protestos, violência ou uma onda populista —, essas mesmas elites frequentemente reagem com surpresa e indignação, como se não conseguissem compreender as causas profundas do ressentimento. A hipocrisia reside no facto de que muitas vezes foram elas que, direta ou indiretamente, criaram as condições para esse descontentamento, seja por meio de políticas económicas excludentes, de uma visão tecnocrática da sociedade, ou pela pura negligência.

É inevitável a rutura. É como se aplicasse aqui as mesmas leis da natureza. Por exemplo, as tempestades estão a borrifar-se ao estragar-lhes o conforto, que pode ter sido a causa da dita tempestade. Assim como as tempestades ignoram os desejos e confortos humanos, as forças sociais e históricas também têm o seu próprio curso, indiferentes aos interesses de elites acomodadas. A rutura parece, de facto, inevitável quando acumulamos tensões e ignoramos os sinais de alerta.

Assim como o aquecimento global intensifica as tempestades por causa de ações humanas, as desigualdades sociais, a alienação e a negligência institucional são "climas" que fomentam revoltas. No entanto, aqueles que se beneficiam do status quo frequentemente se recusam a reconhecer a sua responsabilidade, preferindo culpar as consequências em vez das causas. A metáfora vai além: uma tempestade pode ser mitigada por medidas preventivas — reforçar infraestruturas, adotar políticas sustentáveis —, mas nunca completamente evitada. Do mesmo modo, as elites poderiam tentar reequilibrar as desigualdades sociais e buscar uma conexão mais autêntica com os desafios enfrentados pela maioria. Contudo, como as tempestades, as forças sociais acumuladas acabam por romper a superfície, muitas vezes de maneira caótica e destrutiva.



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