sábado, 28 de dezembro de 2024

A fenomenologia de matriz husserliana



Um dos equívocos dos comentadores de esquerda afetos à corrente da "Teoria" é considerarem que o "povo" tem um erro de perceção por ter uma sensação de insegurança com o excesso de imigrantes, quando as estatísticas não demonstram nem excesso de imigrantes, nem aumento da criminalidade devido aos imigrantes. Dizem que uma coisa é a perceção, e outra coisa é a realidade. Há, de facto, um desfasamento frequente entre a leitura puramente estatística dos factos e a vivência subjetiva das pessoas no dia a dia. Mas essa desconexão não significa que o "povo" está errado. A perceção é construída por uma confluência de fatores, como experiências pessoais, narrativas mediáticas, boatos, e o contexto histórico e cultural. A ideia de que a realidade é um vestido já pronto para o povo vestir, soubesse ele vê-lo, é que é errada, porque ignora como funciona o nosso conhecimento da realidade de que a perceção faz parte. Mesmo que os números mostrem que a criminalidade geral está estável ou em declínio, é pelo “ar do tempo”, que o povo respira. O que conta é o impacto emocional sentido no corpo de cada um, como a taquicardia. Os intelectuais que desconsideram essa dimensão emocional, recebem em boomerang a sua alienação por parte de muitas pessoas que sentem.

Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, desenvolveu um método focado na análise da intencionalidade da consciência, por meio da redução fenomenológica cujo significado consiste na captura da experiência tal e qual como é experimentada sem lhe acrescentar quaisquer conceitos ou preconceitos (sejam eles revestidos de juízos de valor ou de caráter científico). Em termos gerais, a “intencionalidade” em Husserl pode ser entendida como "consciência virada para algo". Essa ideia é central na fenomenologia de Husserl e refere-se ao facto de que toda a consciência é sempre consciência de algo. Em outras palavras, a intencionalidade expressa a característica essencial da consciência de estar sempre direcionada para um objeto, seja ele físico, imaginário, conceptual ou emocional. Não se trata de intenção no sentido comum de "desejar" ou "querer algo", mas sim de um vínculo estrutural entre a consciência e o objeto ao qual ela se refere.

Quando olhamos para uma árvore, a consciência está direcionada para a árvore — ela é o objeto intencional. Quando sentimos medo, esse medo está dirigido a algo que percebemos como ameaçador, mesmo que não seja tangível. Husserl explorou como os objetos da consciência não existem necessariamente como coisas concretas no mundo, mas como “fenómenos”, ou seja, como aparecem para a consciência. Assim, a intencionalidade também está ligada à forma como experienciamos o mundo, dentro da relação sujeito-objeto.

O desenvolvimento contemporâneo da fenomenologia passou pela adaptação de fenomenólogos posteriores tal como Maurice Merleau-Ponty e Heidegger. Merleau-Ponty explorou mais a fundo a experiência corpórea. Heidegger, assim como Sartre e Paul Ricoeur, expandiram a fenomenologia para campos existenciais e hermenêuticos, explorando a compreensão do ser e a interpretação dos fenómenos. No contexto atual, há também esforços em "naturalizar" a fenomenologia, ligando-a a práticas empíricas, como nas ciências cognitivas, para investigar experiências de forma mais integrativa. Esta abordagem busca respeitar o foco original de Husserl na análise da consciência, ao mesmo tempo que adapta as ideias para interagir com métodos científicos contemporâneos.

Na pós-modernidade, a dilucidação da subjetividade e da racionalidade ainda se complexificou mais. A subjetividade, na visão contemporânea, é vista como menos centralizada e mais fragmentada em comparação com a perspectiva cartesiana ou até mesmo com a fenomenologia inicial. Autores como Foucault e Derrida desafiaram a ideia de uma subjetividade fixa, destacando como ela é construída através de discursos, poder e linguagem. Isso contrasta com o projeto husserliano de um "eu transcendental" que assegura a continuidade da experiência consciente. A racionalidade, por sua vez, é problematizada pelos pós-modernistas como uma construção que não é universal nem neutra. Eles apontam que a racionalidade está impregnada de contextos culturais e históricos, o que desafia as ideias do Iluminismo. Lyotard, por exemplo, desmantelou a crença nas "metanarrativas" racionais, propondo em vez disso uma legitimidade baseada em "pequenas narrativas" e diferentes formas de racionalidade que se sobrepõem e se contestam.

A transposição da fenomenologia para a linguagem, especialmente no sentido da subjetividade transcendental proposta por Husserl, apresenta desafios consideráveis. Essa dificuldade surge porque Husserl concebe a subjetividade transcendental como a fonte última de toda a constituição de sentido e de objeto, ou seja, o ego transcendental é responsável por constituir o mundo e as significações a partir de suas vivências. A fenomenologia de Husserl implica uma "redução transcendental", um método que busca suspender as pressuposições do mundo natural para retornar à consciência pura e observar como os fenómenos se constituem nela. No entanto, a descrição da subjetividade transcendental encontra limites na própria linguagem, que é sempre já moldada por significados sedimentados e por uma história de uso coletivo. Por isso, há uma tensão entre a tentativa de descrever a experiência originária em sua pureza e o uso de uma linguagem que, por natureza, é compartilhada e intersubjetiva.

Maurice Merleau-Ponty, por exemplo, ao perceber as dificuldades dessa transposição, argumentou que a linguagem tem um papel constitutivo e não meramente expressivo. Ele sugeriu que a subjetividade não é um ponto de partida puramente interno, mas se manifesta e se desdobra na interação com o mundo vivido. Isso implica que a linguagem é tanto uma ferramenta como um limite na busca pela descrição fenomenológica da subjetividade transcendental, pois a própria subjetividade se revela na articulação com o mundo e os outros. Assim, a dificuldade central é que a subjetividade transcendental, por ser uma estrutura fundadora do sentido, não pode ser completamente captada ou expressa em uma linguagem que já está inserida no mundo e na intersubjetividade. Essa tensão leva a fenomenologia contemporânea a explorar métodos que incorporam a interseção entre a descrição eidética e a consideração dos contextos históricos e culturais que influenciam a expressão subjetiva​

Heidegger trabalhou com conceitos como Ser-aí (Dasein), a ideia de "deixar-ser" (Gelassenheit) e a crítica à "entificação", que se refere à tendência de objetificar ou transformar o Ser em um ente específico. Heidegger criticava a tradição metafísica por reduzir o Ser à mera presença, tratando-o como um objeto ou coisa (entificação). Sua proposta de "deixar-ser" implica uma postura de abertura, onde não se busca controlar ou definir completamente os fenómenos. Em vez de impor categorias ou conceitos sobre o que se experimenta, Gelassenheit sugere uma aceitação do mistério do Ser, permitindo que ele se mostre em sua própria manifestação. A ideia de "deixar o Ser ser" reflete uma atitude de renúncia ao controlo ontológico sobre a existência, o que pode ser associado a uma aceitação mais contemplativa e menos objetificante da realidade.

Que o mundo existe e que é constituído por algo de alguma maneira, quanto a isso não parece haver qualquer disputa consuetudinária. Já acerca de se saber como é o mundo independente de qualquer observador, isso é uma impossibilidade conceptual. Daí que possa haver várias maneiras de atacar o problema. Várias tradições filosóficas e científicas encontram pontos de convergência na noção de que as características do mundo acerca das quais podemos falar, não são da forma como existam autonomamente de um observador, mas da forma como emergem de uma relação de interdependência "entre-dois". Os budistas, por exemplo, dizem que nós só conhecemos o mundo como fenómeno, e não como substância em si. E o fenómeno é de uma natureza interdependente, depende de uma rede de causas e condições. Isso ressoa com a noção de que as coisas não podem ser entendidas separadas da percepção e da consciência que as apreende. A fenomenologia de Merleau-Ponty, por sua vez, aborda essa ideia através do conceito de "entre-dois" (entre-deux), enfatizando que o mundo tal como falamos dele é uma resultante da interação sujeito/mundo. As qualidades sensíveis como forma, cor, som, calor, frio e por aí fora, não existem como entidades em si mesmas, absolutas ou autónomas, mas como fenómenos que emergem na experiência vivida, na interseção do sujeito perceptivo e do mundo percebido.

No campo da física quântica, o comportamento das partículas sugere que as propriedades físicas não são fixas, mas surgem em função da interação com o observador, um princípio que lembra a vacuidade budista e a co-constituição fenomenológica. Espinosa via a ontologia como uma substância única - Deus ou Natureza - a realidade como uma unidade dinâmica, e não uma coleção de entidades independentes. Essas abordagens mostram que tanto na filosofia fenomenológica como em tradições espirituais e teorias científicas, há um reconhecimento de que as qualidades e as propriedades do mundo emergem de interações, não existindo por si só. O "entre-dois" de Merleau-Ponty exemplifica a ideia de que a experiência sensorial e a existência se desenrolam em um campo intersubjetivo e interdependente​.

A frase célebre de Santo Agostinho sobre o tempo, encontrada em suas Confissões (Livro XI, capítulo 14), reflete a complexidade e o caráter inefável dessa noção. Ele afirma: “Quid est enim tempus? Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio,” que se traduz como: "O que é, pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei." Essa frase ilustra a dificuldade em conceituar algo que é tão fundamental à experiência humana, mas cuja essência escapa a uma definição precisa. Agostinho está apontando para a natureza paradoxal do tempo: é intuitivamente compreendido em um nível experiencial, mas se torna indescritível quando se tenta defini-lo objetivamente. Essa reflexão se conecta com a questão do inefável, algo que se percebe e experimenta, mas que a linguagem não pode expressar plenamente. Essa dificuldade em nomear ou definir conceitos profundos também é encontrada em discussões filosóficas sobre o Ser (como em Heidegger), a vacuidade budista e até em noções quânticas, onde a linguagem encontra seus limites frente à complexidade e à profundidade dos fenômenos.

Em última rácio, é um embaraço para os cosmólogos físicos perguntar-lhes na formação deste universo onde estava a vontade, ou o juízo, ou a consciência. Os físicos, para não ficarem desconfortáveis, respondem a isso como se fossem meras inexistências. Mas mesmo assim, não conseguem sair do paradoxo, porque mesmo que fosse uma ficção humana, ela não deixa de existir. De fato, os físicos tendem a explicar o universo em termos de leis naturais e interações físicas, evitando conceitos subjetivos ou metafísicos como a vontade ou a consciência, tratando-os como inexistentes em um contexto de análise científica. No entanto, isso cria um paradoxo interessante: mesmo que a consciência ou a vontade sejam vistas como ficções ou criações humanas, o facto de existirem na experiência humana não pode ser negado. Esse paradoxo aponta para uma tensão entre a explicação científica do cosmos e a experiência fenomenológica. Pensadores como o físico e filósofo David Bohm exploraram essa questão, sugerindo que a mente e a matéria poderiam ter uma relação mais interligada do que a ciência tradicional assume, uma visão que faz lembrar certas interpretações da mecânica quântica, onde a consciência do observador afeta o estado do sistema observado.

Além disso, a fenomenologia pós-husserliana, com autores como Merleau-Ponty, enfatiza que a consciência não é algo que pode ser separado da realidade que observa, mas está entrelaçada com o mundo. Isso implica que a presença da consciência, mesmo que não faça parte dos primeiros momentos cosmológicos, é uma parte fundamental do universo como é compreendido agora — um universo que inclui observadores conscientes capazes de refletir sobre ele. Portanto, ainda que a física reduza tais conceitos a inexistências para manter a objetividade, a filosofia e a fenomenologia apontam que mesmo as “ficções” têm um impacto real na maneira como a realidade é experienciada e compreendida. Essa interação entre ciência e filosofia revela a necessidade de um diálogo contínuo para abordar essas questões que desafiam objetividade e as fronteiras da subjetividade humana.


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