Já estamos a viver os primórdios de uma Nova Era. À falta de melhor expressão -- “desconcerto de nações”. É é muito provável que a ONU [Organização das Nações Unidas] tenha chegado ao fim. Pode ser que venha a caber ao atual Secretário Geral [António Guterres] a missão de fechar a porta e vir para casa com a chave no bolso. Ironias à parte, isto evoca o célebre “Concerto das Nações” que emergiu após o Congresso de Viena em 1815. Foi uma tentativa de estabilizar a ordem europeia depois das diabruras napoleónicas. Hoje, o cenário é quase o inverso: multiplicação de polos de poder, erosão de alianças tradicionais, e um enfraquecimento das instâncias multilaterais, como a ONU ou a OMC [Organização Mundial do Comércio]. Em vez de concerto, temos dissonância. Há sinais claros de que estamos nos primórdios de uma Nova Era ainda a decorrer em gestação caótica.
A Guerra na Ucrânia, o conflito do Médio Oriente, o crescente e gradual distanciamento do cada vez mais assertivo Sul Global em relação ao Ocidente -- tem contribuído para a aceleração de um novo realinhamento multipolar. O declínio dos Estados Unidos Hegemónico, num Ocidente cada vez mais virado para dentro, e mais dividido internamente, é a outra face da moeda. As transições tecnológicas e energéticas aceleradas pela Inteligência Artificial está a ultrapassar os tempos da política. Este fenómeno civilizacional não é novo, se recordarmos o que aconteceu Revolução Industrial Fumegante, e outras revoluções anteriores. As revoluções tornam sempre obsoletas as instituições que foram instaladas pelas revoluções anteriores. Hoje, muito do que está instalado neste século XXI é o que vigorava no século XX. E é nos períodos de transição que mais se fazem sentir os problemas de adaptação. É o caso da crise climática e dos fluxos migratórios consequentes. Problemas esses que só poderão ser mitigados com respostas transnacionais. Curiosamente, como há sempre ironia nestas convulsões humanas, os Estados estão a ser alvo de ataque não por parte dos paridos políticos mais cosmopolitas, mas pelos partidos conservadores que são mais nacionalistas e defensivos.
E assim se vai assistindo à deslegitimação das elites políticas e científicas em muitos países, e à ascensão de populismos que apostam mais em soluções de curto prazo do que soluções estratégicas mais sólidas em que os efeitos só se fazem sentir no médio e longo prazo. Tudo isto configura um interregno, no sentido que Gramsci lhe deu: “O velho mundo está a morrer, o novo tarda a nascer, e neste claro-escuro surgem os monstros.” Da Nova Era emergirá de certeza algo profundamente inovador. Só não sabemos, por incalculável, o preço perigosamente regressivo que as próximas gerações terão de pagar por isso. Tudo dependerá da capacidade de imaginação política, cooperação global e regulação inteligente dos novos poderes económicos, tecnológicos e militares.
Entretanto temos estado a acompanhar a Guerra na Ucrânia e a Guerra na Palestina. Focando agora o Médio Oriente, para uma parte do Ocidente, o mau da fita é o Irão. Mas há também uma parte no Ocidente, que não é pequena, para quem o mau da fita é Israel. O que não devia ser surpresa para ninguém se se recordar o que foram os dois mil anos precedentes de pogroms e antissemitismo. O que importa nesta reflexão é o tipo de inimigo que o Irão é para os judeus em geral, e para Israel em particular. Todo este agravar da situação começou com a Revolução Iraniana, em 1979, quando Ruhollah Musavi Khomeini tomou o poder e instalou uma teocracia que perdura até hoje, liderada pelos aiatolás com uma opressão inenarrável.
A tradição do Islão no Irão é xiita. Teve sempre uma forte influência social e moral. O aiatolá Ruhollah Khomeini emergiu como símbolo de resistência ao imperialismo cultural ocidental, especialmente norte-americano. Ele soube mobilizar diferentes setores da sociedade contra o poder que estava, o do xá Mohammad Reza Pahlavi, derrubado a 11 de fevereiro de 1979 e que já reinava desde 16 de setembro de 1941, embora a coroação seja datada de 26 de outubro de 1967. O Irão é um mosaico complexo de culturas e nacionalidades. O regime iraniano teme as minorias porque podem articular movimentos secessionistas (como curdos e balúchis). São regiões periféricas com fronteiras porosas, onde insurgências podem ganhar apoio externo. Muitas lideram ou inspiram protestos organizados, sobretudo através da juventude. Dão visibilidade internacional à repressão do regime. Poetas, artistas e músicos curdos ou balúchis têm desafiado o regime. Há a história do massacre dos curdos no início da Revolução. O Irão usa o argumento da unidade islâmica para disfarçar essa repressão.
É verdade que o xá Mohammad Reza Pahlavi, aliado dos EUA, liderava um regime autoritário e modernizador que reprimiu adversários (usando a temida polícia secreta SAVAK). Impôs uma ocidentalização acelerada, vista como agressiva e alheia às tradições islâmicas. Criou desigualdades sociais profundas, apesar do crescimento económico como foi o que aconteceu após a Revolução Branca. Após a queda do xá, Khomeini eliminou os aliados temporários (esquerdistas, liberais) e centralizou o poder no clero. A nova Constituição de 1979 criou a figura do Líder Supremo, que está acima de qualquer cargo eleito. O regime estabeleceu Guardas Revolucionários (IRGC): um exército paralelo ideológico e poderoso economicamente. O Conselho dos Guardiães controla eleições e legislação, barrando candidatos reformistas ou moderados. E o sistema judicial é teocrático. O regime reprime fortemente dissidências políticas, culturais, étnicas e religiosas. O uso sistemático de prisões, torturas, execuções, censura e vigilância digital mantém o controlo da população.
Os protestos populares (como em 2009, 2019 e após a morte de Mahsa Amini em 2022) são brutalmente reprimidos. A teocracia legitima o seu poder com uma ideologia religiosa: o conceito de "Wilayat al-Faqih" (governo do jurista islâmico). Apresenta-se como única guardiã da verdadeira fé xiita, combatendo a "decadência moral" e "influência satânica do Ocidente". Por conseguinte há uma ausência gritante de liberdade política. Partidos opositores estão banidos ou neutralizados. A falta de unidade na oposição e a divergência entre reformistas, secularistas, exilados e movimentos sociais, completam o quadro tirânico. Também existe o medo da instabilidade. Muitos iranianos, traumatizados pela guerra Irão/Iraque, e vendo o caos em países como a Síria, temem uma mudança repentina.
As próximas gerações vão passar por uma espécie de distopia hostil: “A Travessia do Vazio / Civilização em Busca de Sentido”. Todos os mitos do século XX a ruir. As crises climáticas e pandémicas, os algoritmos que manipulam a vontade, as democracias corroídas por populismos, as promessas de bem-estar das minorias que excluem vastas maiorias. O niilismo hoje não é trágico nem rebelde, é silencioso, numa evasão para mundos artificiais do virtual, dopaminas digitais e cultos momentâneos. Mas o vazio tem uma função: preparar o terreno para a criação. Diante da ausência de um centro ético comum, multiplicam-se experiências na fronteirado do fim do humanismo. Este tempo não tem nome, é uma travessia. Sem bússola universal, somos obrigados a filtrar, escolher, criar sentido. O risco é o cansaço para vencer o niilismo. A promessa é o cuidado. Que da experimentação surja um novo modo de habitar o mundo.