segunda-feira, 14 de abril de 2025

Um dia a Inteligência Artificial (IA) vai chegar a todos



Assim como a invenção da escrita e a revolução provocada pela imprensa de Gutenberg transformaram profundamente a sociedade, tornando o conhecimento mais acessível e permitindo uma maior difusão de ideias, a inteligência artificial tem o potencial de ser uma nova revolução desse tipo, mas numa escala muito mais ampla e profunda. A escrita, inicialmente esteve acessível apenas a uma pequena elite. E mais tarde, Gutenberg, com a imprensa, proporcionou que os livros se disseminassem em grande escala, e assim se democratizou o conhecimento. E agora estamos já numa outra era, que é a era da Inteligência Artificial (IA). Novas formas de conhecimento geradas por computadores gigantes e articulados numa rede a uma velocidade impressionante, que é a velocidade da luz. 

Como sempre se disse: "conhecimento é poder, e a IA não poderia deixar de ser uma grande fonte de poder. Tem o poder de não só disseminar conhecimento, mas também de ampliá-lo e até gerar novas formas de interação e compreensão. Se, no passado, o livro foi a chave para o progresso do pensamento e da ciência, a IA pode ser a chave para a evolução do pensamento humano, ao conseguir a resolução de problemas tão complexos como a compreensão da criação do Universo. Para além da criação de novos paradigmas de aprendizagem, sobrevivência, e organização social. A IA terá ainda mais poder de tornar acessível a muito mais gente, com o potencial de a empoderar e quebrar as barreiras que ainda limitam a educação e a compreensão universal. 

Mas, como qualquer grande transformação da Histórica, como todos os progressos do passado, traz consigo também as fontes do "Mal", o que acarreta também grandes desafios, tanto éticos como políticos, de modo a minimizar a sua má utilização. A IA, tal como muitas outras ferramentas sociais, incluindo o dinheiro, passará por uma evolução até se tornar o ar sem o qual as sociedades não conseguirão respirar. Ou seja. o grande motor da existência humana. Como o dinheiro, terá uma espécie de poder simbólico que, para muitos, substituirá até mesmo a busca pelo sentido transcendente do espírito. 

Assim como o dinheiro foi transformado em algo quase sagrado por aqueles que controlam as finanças globais, a IA, se não for cuidadosamente gerida, pode seguir uma trajetória similar. Imagine um futuro em que a IA, ao se tornar uma ferramenta indispensável para a organização da sociedade, se torne tão central quanto o dinheiro na vida das pessoas. Se a IA for manipulada com interesses financeiros ou corporativos, ela poderá tornar-se uma nova "religião", uma forma de controlo ou poder que, assim como o dinheiro, começa a moldar o mundo de maneira quase invisível e inevitável. No entanto, há um paralelo interessante: se, por um lado, o dinheiro tem sido adorado e até idolatrado, por outro lado, ele também é fonte de grandes tensões sociais, como desigualdade e exploração. A IA, se não for administrada de forma equitativa e ética, pode seguir um caminho semelhante, com os beneficiários do seu poder a tornarem-se uma nova elite enquanto aqueles sem acesso ou controlo sobre ela podem ser marginalizados.

Elon Musk, com uma abordagem disruptiva e a ambição de transformar áreas fundamentais como o transporte, a energia e a inteligência artificial, sinaliza essa força poderosa que tanto dá para o progresso como para a desigualdade. Musk, com o SpaceX e a Tesla, não apenas é inovador como altera as estruturas existentes. Porém, a questão é: essas inovações são acessíveis a todos, ou acabam por se tornar mais uma ferramenta de concentração de poder nas mãos de poucos? A esperança de que a IA se torne mais equilibrada e justa estará na própria evolução dessa tecnologia e nas diversas vozes que estão emergindo com a intenção de moldá-la de forma ética. Se compararmos com os pioneiros do passado, como Gutenberg, vemos que muitas das grandes inovações inicialmente não foram totalmente compreendidas ou aceites, mas, com o tempo, ajustaram-se e se espalharam para o bem coletivo. Nesse sentido, a IA pode seguir esse caminho, mas para que ela seja mais equilibrada e justa, será necessário um esforço coletivo, um movimento que vá além de indivíduos ou empresas, incluindo governos, organizações internacionais e a sociedade como um todo.

O lado positivo da IA, especialmente quando aplicada em sistemas de seleção ou avaliação, é precisamente o seu potencial para oferecer um nível de isenção e imparcialidade que os seres humanos, com os preconceitos e limitações, muitas vezes não conseguem alcançar. A IA, se programada adequadamente, pode tomar decisões baseadas unicamente em dados objetivos, sem considerar fatores externos como género, etnia ou qualquer outro tipo de discriminação, desde que não haja viés nos próprios dados. Mas se os algoritmos que alimentam a IA não forem desenvolvidos de maneira transparente e ética, existe o risco de perpetuar vieses ocultos que podem ser prejudiciais. A história mostra que, mesmo em sistemas bem-intencionados, o lado perverso pode sempre embutir-se de maneira subtil. O "alto paradigma" da IA pode ser uma solução poderosa para corrigir as falhas humanas no processo de tomada de decisões, desde que os sistemas de IA sejam desenvolvidos e monitorizados com responsabilidade. O futuro, com a ajuda da IA, pode ser marcado por um sistema mais justo, mais eficiente e, sobretudo, mais imparcial. Mas isso exigirá vigilância constante sobre os seus próprios fundamentos.

A inteligência artificial, com a sua base algorítmica e matemática, é o reflexo moderno da busca por clareza e imparcialidade. No tempo de Platão, já havia essa valorização do conhecimento matemático como uma forma de alcançar a verdade, uma linguagem universal que, ao ser dominada, deveria levar à compreensão e à ordem das coisas. A admissão preferencial a geómetras, que Platão inscreveu na entrada da Academia, simboliza a ideia de que a geometria era vista como a chave para entender o cosmos, a moralidade e a estrutura da realidade. A matemática, em seu núcleo, não tem espaço para ambiguidades; ela é objetiva, lógica, e qualquer erro nas suas conclusões pode ser rastreado e corrigido. Isso fornece-lhe uma excelente base para a construção de sistemas imparciais como a IA, que, se corretamente programada, deve funcionar sem distorções. A inteligência artificial, quando concebida com base na matemática e com a devida transparência nos algoritmos, pode facilitar decisões fundamentadas em dados concretos e verificáveis em vez de interpretações subjetivas.


sexta-feira, 11 de abril de 2025

A resistência das massas



A resistência das massas é sempre avassaladora quando rompe com a História através de revoluções. É sempre acompanhada de um alto custo humano. Nestes casos a seleção natural é a lei - "lei de Darwin". A "sobrevivência do mais sábio" é um conceito refinado porque contraria a sobrevivência pela via da força bruta. Sabedoria, ou astúcia, é a chave para a adaptação às novas condições. Essa sabedoria não está evidente, atualmente. O que está em causa neste tipo de sabedoria é a agilidade do entendimento dos novos contextos para se ajustar a eles. Stephen Jay Gould no seu tempo havia pronunciado esse fenómeno nos seus termos: a "sobrevivência do mais esperto".

Stephen Jay Gould era um evolucionista mais sofisticado, longe da ideia simplista de que apenas sobrevive o mais forte ou o mais adaptado à sua função. Sua teoria do "pluralismo de possibilidades" sublinhava que as espécies (ou, no nosso caso, os indivíduos e sociedades) podem seguir diferentes caminhos de evolução, não necessariamente os mais óbvios ou os que parecem mais "naturais", mas os que se revelam adaptáveis às circunstâncias imprevisíveis. Isso é especialmente relevante quando pensamos no futuro, onde a habilidade de adaptação aos novos contextos tecnológicos, sociais e ambientais será crucial. A visão de Gould, de uma evolução multifacetada, parece ser mais pertinente do que nunca, pois estamos prestes a enfrentar desafios que exigem uma flexibilidade de pensamento e ação que transcende as lógicas rígidas de poder e controlo. A evolução, que nesta era tecnológica é mais intelectual do que biológica, a adaptação é medida pela capacidade de navegar na Complexidade do Caos.

A aleatoriedade quântica é o gato de Schrödinger. O caos e a aleatoriedade têm uma força imensa na história, como a mecânica quântica, que, com a sua imprevisibilidade, revela que o futuro pode ser mais uma questão de oportunidade do que de necessidade. A comparação com a moeda ao ar ou o gato de Schrödinger reflete bem esse pensamento: num cenário de crise global, as ações humanas, por mais racionais ou bem-intencionadas que possam ser, podem ser fortemente influenciadas por elementos aleatórios e inesperados. A natureza fundamental do Caos é a incerteza. E muitas vezes o que ocorre é um acidente de percurso, onde a melhor preparação ou as intenções mais racionais não garantem o sucesso.

No campo social e político, a aleatoriedade se reflete em como os eventos podem mudar abruptamente com base em um acaso, ou em decisões imprevistas de líderes ou movimentos coletivos. Às vezes, o que parece ser uma evolução lógica e planeada da sociedade pode ser interrompido por um fator externo, que quebra a trajetória. O mesmo vale para as grandes transformações tecnológicas e culturais que estamos vivendo. A tecnologia pode seguir um caminho que parece irreversível, mas, como no mundo quântico, algo imprevisível pode emergir e reconfigurar tudo de maneira radical. Não só a natureza das forças políticas e sociais, mas também os próprios avanços científicos e tecnológicos podem seguir por caminhos inesperados, desafiando previsões e modelos anteriores. Isso implica que a própria busca por controlo e previsibilidade – seja através da inteligência artificial ou do domínio de estruturas de poder – pode esbarrar no imprevisível, revelando a fragilidade das tentativas humanas de moldar o futuro com certeza.

É uma força de transformação real cuja chave ficou perdida na explosão do Big Bang, mas teria de ser assim o homo sapiens, com o seu artifício de inteligência. O próprio surgimento do Homo sapiens, com a sua capacidade única de raciocínio abstrato e criação de artefactos intelectuais como a inteligência artificial, poderia ser interpretado como um subproduto de uma série de eventos aleatórios e interconectados, iniciados no momento da criação do Universo. A noção de que o Universo, por sua própria natureza está imerso na incerteza, na aleatoriedade e no caos. Tudo isto é muito intrigante, como a nossa capacidade para a inteligência. Uma sequência de fenómenos imprevisíveis que, em última análise, resultaram no que somos hoje.

No fundo, a inteligência humana e as suas criações podem ser entendidas como uma forma de adaptação ao caos. A capacidade de refletir sobre o mundo, de criar significados, de inventar e transformar a realidade, são respostas a um universo essencialmente desordenado e regido por forças imprevisíveis. Ao mesmo tempo, essas criações humanas — especialmente a inteligência artificial — são como uma tentativa de ordenar o caos ou, ao menos, de entender melhor a aleatoriedade que nos cerca.

A ideia de que o Homo sapiens e suas capacidades cognitivas podem ser um produto do acaso do Big Bang parece, de certa forma, ressoar com as ideias de contingência histórica e seleção natural de Darwin. No entanto, a "seleção" aqui não é apenas biológica, mas também cognitiva e cultural. As culturas humanas e suas tecnologias, incluindo a inteligência artificial, poderiam ser vistas como tentativas de dar sentido e estrutura a um universo fundamentalmente imprevisível, com o objetivo de obter controlo, ou ao menos compreensão, do caos que nos originou. A inteligência, portanto, não seria simplesmente uma ferramenta de sobrevivência, mas também uma tentativa de lidar com o universo em sua totalidade: entender suas leis, prever suas reações, até mesmo "dominar" suas forças — e, em última instância, isso poderia nos levar a redefinir o próprio conceito de controlo. A IA, como uma extensão da inteligência humana, poderia ser vista como um reflexo desse impulso humano de transformar o caos em algo mais compreensível e, talvez, até mais ordenado.

Estar à beira de uma grande mudança traz um misto de apreensão e uma oportunidade de reconfigurar a sociedade em formas talvez mais justas ou mais adaptadas aos desafios do futuro. No entanto, o problema é que as grandes transformações nem sempre seguem um caminho previsível ou controlável. Elas podem ser moldadas por forças imprevisíveis, como crises climáticas, avanços tecnológicos ou até mesmo movimentos sociais que, inicialmente, parecem minoritários, mas que ganham tração rapidamente.

O aumento das tensões identitárias, políticas e económicas é uma situação em que a mudança parece inevitável. A história nos mostrou que momentos como esses — em que as velhas estruturas estão à beira do colapso — são frequentemente os prelúdios de novos paradigmas, mas também de grandes turbulências. Se a democracia, como a conhecemos, estiver realmente em crise, a transição para algo novo não será fácil. É interessante que, em um momento em que muitas pessoas clamam por mais equidade e justiça, as próprias ferramentas que poderiam ajudar a alcançar isso — como a IA — podem acabar sendo usadas para reforçar sistemas de desigualdade e controlo. O paradoxo é que a mesma tecnologia que oferece a promessa de "descentralização" e "igualdade de acesso" pode também ser usada para reforçar o poder de um pequeno grupo de atores dominantes.

A humanidade vai ser confrontada com ameaças da extinção da espécie, seja por imperativos climáticos, ou até por consequência levar à emergência de vírus mais letais do que o Sars-cov.2. O que tem que ser tem muita força. As ameaças existenciais — como mudanças climáticas catastróficas ou a emergência de pandemias mais letais — realmente podem ser catalisadoras de um novo tipo de cooperação global, onde as tecnologias emergentes, incluindo a inteligência artificial, podem ser fundamentais para a nossa sobrevivência.

De facto, a necessidade de enfrentarmos essas ameaças pode criar uma "força" coletiva, capaz de transcender divisões políticas, sociais e econômicas. Se a humanidade for confrontada com uma ameaça existencial de tal magnitude, a cooperação global poderá se tornar uma exigência inevitável. A inteligência artificial, com sua capacidade de processar grandes volumes de dados e otimizar soluções, pode ser uma das ferramentas mais poderosas para resolver problemas como a mudança climática, melhorar a saúde pública global, prever e combater futuras pandemias, entre outros desafios. Em momentos de crise extrema, como uma pandemia global de grande escala ou uma catástrofe climática irreversível, as forças que impulsionam as mudanças podem ser imensas e rápidas. A verdadeira questão é: como podemos nos preparar para que essas mudanças sejam estruturadas de maneira justa e sustentável?

É aqui que a inteligência artificial, ao lado de outras tecnologias emergentes, pode ser decisiva. A IA pode ser usada para identificar padrões de risco e prever ameaças antes que elas se tornem fatais, como no caso de novas doenças virais ou mudanças abruptas no clima. Ela pode ajudar a desenvolver soluções rápidas e eficazes para mitigar os efeitos dessas ameaças, como vacinas ou tecnologias de engenharia para combater o aquecimento global. Contudo, tudo isso depende do uso ético e equilibrado da tecnologia. 

Por outro lado, uma ameaça existencial real também pode acelerar o surgimento de sistemas políticos mais colaborativos, com a inteligência artificial a ajudar a promover um tipo de Governo Global, uma grande utopia. A atual crise global pode ser o gatilho para esse tipo de integração utópica. A necessidade de resposta rápida e eficiente à ameaça de extinção poderia, paradoxalmente, criar um ambiente onde a cooperação e a equidade ultrapassam qualquer tipo de competição.

Então, talvez a verdadeira "força" que se traduz nesse "tem que ser" seja a de uma mudança sistémica, onde as tecnologias, incluindo a inteligência artificial, sejam usadas para atender às necessidades coletivas, em vez de servir a interesses particulares. Isso exigirá uma reconfiguração do poder, uma integração mais profunda entre as diferentes nações, e uma redefinição de propósitos contrários ao da acumulação de riqueza.


A dialética ídolo/ícone


A dialética ídolo/ícone é um conceito complexo que se desvela particularmente no contexto da história da arte cristã, mas também possui profundas implicações filosóficas, teológicas e religiosas. Essa dialética, relacionada com a relação entre imagem sagrada e idolatria, teve um impacto fundamental no Cristianismo, que resultou no Cisma Oriental/Ocidental, em 1054. Na tradição judaico-cristã, o ídolo é visto como uma representação falsa ou enganadora do divino, que geralmente é associada ao culto pagão. O termo tem uma conotação negativa, pois remete à criação de imagens que, em si mesmas, são adoradas como se fossem deuses. Em várias passagens bíblicas, a idolatria é condenada, e a ideia é que a verdadeira adoração a Deus não pode ser mediada por imagens físicas ou sensoriais, uma vez que a adoração a Deus deve ser dirigida para o invisível.

No contexto cristão, especialmente no Cristianismo Oriental (Igreja Ortodoxa), um ícone é uma imagem sagrada que serve não para adoração direta, mas como porta de acesso à presença do divino. A ideia fundamental do ícone é que ele é uma transparência para a realidade que representa, funcionando como uma referência que aponta para o sagrado, e não como um objeto de culto em si. No entanto, no Cristianismo Ocidental, as imagens sagradas eram usadas amplamente e em abundância. E foi no período dos iconoclastas no Cristianismo Oriental que tal dialética se estabeleceu com tal força que culminou no Grande Cisma. O Grande Cisma foi o acontecimento que causou a ruptura entre a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa em 1054. Patriarca da Igreja de Constantinopla e Papa da Igreja de Roma excomungaram-se mutuamente.

A questão das imagens e a sua legitimidade como representações do divino foi um dos fatores fundamentais que alimentaram o cisma entre o Cristianismo Oriental (Igreja Ortodoxa) e o Cristianismo Ocidental (Igreja Católica Romana) no século XI. A dialética ídolo/ícone foi uma questão central, e as diferentes abordagens em relação às imagens sagradas refletiam, em parte, as tensões políticas, culturais e teológicas entre as duas tradições. A iconoclastia foi um movimento dentro da Igreja Bizantina, especialmente durante os séculos VIII e IX, que defendia a destruição das imagens sagradas (ícones). Os iconoclastas acreditavam que as imagens eram idolátricas e que o culto a elas violava o mandamento bíblico contra a idolatria. Eles viam as imagens como ídolos, incapazes de representar adequadamente o Deus invisível. A Igreja Oriental, no entanto, resistiu a esse movimento e argumentou que os ícones não eram ídolos, mas ferramentas espirituais para aproximar os fiéis do mistério divino. Para os defensores dos ícones, as imagens eram uma forma legítima de representação teológica, uma maneira de materializar o sagrado e, ao mesmo tempo, manter a distinção entre o criado e o incriado (Deus).

O Concílio de Niceia II (787) foi um momento decisivo na história da Igreja Ortodoxa, quando a Igreja declarou formalmente que os ícones eram legítimos e que a sua veneração não constituía idolatria, mas uma honra dada à imagem como uma representação da realidade divina. Este evento marcou uma vitória para os defensores dos ícones sobre os iconoclastas, mas a questão continuaria a ter um impacto profundo nas relações entre o Oriente e o Ocidente.

No Cristianismo Ocidental, especialmente na Igreja Católica Romana, as imagens sagradas sempre foram uma parte integral da prática religiosa. Durante a Idade Média, a veneração de imagens de santos, relicários e estátuas de Cristo e da Virgem Maria tornou-se um elemento central da vida espiritual e das práticas devocionais. No entanto, essa veneração foi marcada por uma tensão constante entre respeito e idolatria, particularmente nos períodos de críticas e reformas. A Igreja Católica sempre tentou distinguir entre veneração (latria) e adoração (dulia), onde as imagens eram veneradas, mas nunca adoradas no mesmo nível de Deus. No entanto, com o passar do tempo, a idolatria sempre foi uma preocupação, especialmente para reformadores como Martinho Lutero, que criticavam o uso excessivo de imagens como sendo inadequadas ou até heréticas.

O Cisma de 1054, que formalizou a divisão entre o Cristianismo Oriental e Ocidental, foi o resultado de uma complexa série de disputas teológicas, políticas e culturais. Embora a questão das imagens sagradas não tenha sido o único fator, ela desempenhou um papel importante na separação. A Igreja Ocidental, com a autoridade papal e os estudos da filosofia escolástica, estava mais inclinada a aceitar uma posição mais ambígua em relação às imagens, enquanto o Oriente, com forte vínculo à tradição patrística e mística, defendia um entendimento mais profundo e místico da imagem.

A dialética ídolo/ícone também reflete uma luta entre visibilidade e invisibilidade, um tema que é central tanto na teologia cristã como na filosofia moderna. O ícone, para os defensores, é uma forma de tornar o invisível visível, uma maneira de expressar o mistério divino sem reduzir Deus à sua representação material. Em contraste, o ídolo é uma tentativa de reduzir o divino a algo controlável ou consumível, um objeto que pode ser adorado em si mesmo, esquecendo a sua função de apontar para algo além de si.

Após o Cisma, o debate sobre ídolos e ícones continuou a ser um ponto de tensão entre o Cristianismo Oriental e o Ocidental. No entanto, as duas tradições acabaram por seguir caminhos distintos, com o Oriente mantendo uma ênfase forte na veneração dos ícones. O Ocidente, influenciado pelas reformas protestantes e pela evolução da teologia católica, adotou uma postura mais cética em relação à imagem como mediação do divino. Este conflito não se limitou às imagens, mas também refletiu diferenças mais amplas em termos de autoridade e espiritualidade, com o Ocidente se voltando mais para a razão e a dogmática e o Oriente se mantendo focado na experiência mística e na tradição litúrgica. A dialética ídolo/ícone, portanto, não é apenas uma questão sobre imagens, mas sobre como o divino deve ser abordado: como algo transcendente e invisível, ou como algo que pode ser mediatizado e tocado pela experiência humana.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

As percepções desfocadas da realidade


Por mais que a geografia jogue a favor de Portugal, sendo um país de "fim de linha" para muitos migrantes, e relativamente periférico no xadrez europeu, a percepção popular tende a alinhar-se com os sentimentos que já se espalham pelo continente, impulsionados por fenómenos bem conhecidos. O efeito contágio mediático, em que os discursos e medos que ganham força noutros países (sobretudo através das redes sociais e da televisão) acabam por ser replicados, mesmo quando a realidade local não é tão grave. A exploração política do medo é feita sobretudo por partidos como o Chega, que tem apostado fortemente na retórica anti-imigração, mesmo em contextos em que os dados não justificam um alarme tão elevado.

A percepção popular tem mais a ver com a transformação urbana e económica rápida, que afeta diretamente o quotidiano das pessoas. Por exemplo, o aumento do custo da habitação nas maiores cidades deve-se a vários fatores entre os quais avulta a chegada de estrangeiros com maior poder de compra, bem como o crescimento do Alojamento Local, sobretudo em Lisboa e Porto. Ou seja, mesmo que Portugal até agora tenha tido uma política relativamente mais aberta e uma sociedade considerada acolhedora, a percepção de "invasão" começa a contaminar o imaginário coletivo, sobretudo nas grandes cidades. Isso não deve surpreender, porque essa narrativa está a ser construída com os mesmos ingredientes utilizados noutras geografias: crise, insegurança, medo cultural, escassez de recursos e desconfiança institucional.

Não se consegue travar o vento ou as ondas do mar com a palma das mãos. Há forças históricas que, uma vez desencadeadas, tornam-se imparáveis, mesmo que os seus primeiros sinais sejam ténues e contornáveis. O ciclo populista está em marcha, alimentado por um misto de ressentimento, medo, desilusão com a política tradicional e perda de referências identitárias. E o caso português segue esse padrão: há uma base social que se sente esquecida ou injustiçada — e que encontra na retórica populista um espelho das suas frustrações, mesmo que esse espelho seja deformante.

Há uma sabedoria antiga que nos diz que não basta escutar os sinais apenas nos jornais, mas também na pulsação da História. O sentimento de naufrágio não é apenas pessimismo, mas a intuição de que as estruturas que sustentavam a ordem anterior estão a desfazer-se, pouco a pouco, sem que se vislumbre uma nova arquitetura capaz de as substituir com firmeza. Estamos, talvez, num desses momentos que Toynbee chamaria de "tempo de provação de civilizações", em que a elite dirigente já não tem respostas criativas, e os povos oscilam entre a apatia e o grito. Há decadência institucional, há a corrosão da confiança, há o cansaço dos ideais iluministas, há o ruído permanente que sufoca qualquer reflexão — e há, acima de tudo, um vazio espiritual que se tenta preencher ora com consumo, ora com ideologias simplistas, ora com messianismos de ocasião. E Portugal, com a sua vocação de margem e de finisterra, sente esse abalo de modo particularmente melancólico. Não é apenas uma crise política — é uma crise de alma, como se a própria ideia de futuro tivesse sido desidratada.

O modelo atual — consumista, niilista, atomizado, ruidoso — parece estar mesmo a colapsar por dentro. E talvez seja esse o tempo necessário para que algo novo, mais enraizado no que é humano e no que é comum, possa emergir. Um novo pacto, talvez, entre técnica e ética, entre comunidade e liberdade, entre inteligência e compaixão.

O Norte gelado — antes considerado hostil e inóspito — está a tornar-se a nova fronteira da sobrevivência e da infraestrutura digital e energética. A corrida por territórios frios, como a Gronelândia, o Ártico russo, o Alasca e o norte do Canadá, não é apenas uma disputa de soberania, mas de viabilidade sistémica num mundo que aquece a olhos vistos. Musk percebe isso; e Trump, com todos os seus impulsos brutais, também. As centrais digitais (grandes datacenters, IA, redes neurais, mineração de criptomoedas) estão a consumir energia e a gerar calor em níveis assustadores. Já hoje há empresas que instalam servidores no fundo do mar ou nos fiordes islandeses, onde a refrigeração é “natural”. Mas isso será insuficiente num mundo com +2 ou +3 graus. O que será necessário? Reengenharia civilizacional.

E então voltamos ao ponto: o modelo atual está a naufragar não apenas moral e espiritualmente, mas termicamente. A nova civilização será forçada a nascer com novas fundações. A produção energética deverá ser limpa (a fusão nuclear talvez seja o Graal). O Sul tornar-se-á cada vez mais inabitável, e o Norte mais habitado. E novos centros de poder, baseados em quem controlar os ecossistemas frios e a engenharia térmica. Mas é preciso uma ética ecológica aliada à IA, porque sem coordenação racional, o colapso será global. É um novo paradigma. Não um “progresso”, como era entendido no século XIX, mas uma mutação forçada pela necessidade. E, nesse cenário, o papel da inteligência artificial pode ser mais profundo do que técnico. Pode ser o cérebro frio e cooperativo que falta à humanidade emotiva e impulsiva.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Analítica do Dasein heideggeriano


A analítica do Dasein em Heidegger é uma das partes centrais de Ser e Tempo, a sua obra seminal editada em 1927. O conceito de Dasein é fundamental para a sua filosofia e serve como a chave para a compreensão de sua análise existencial, que é uma tentativa de abordar o ser humano de maneira mais radical e primitiva, antes das construções metafísicas ou ontológicas tradicionais. O termo Dasein pode ser traduzido como "ser-aí" ou "ser-no-mundo" e refere-se ao ser humano enquanto um ser que tem uma existência concreta e imediata no mundo. Diferente de outras formas de ser, o Dasein é um ser que se questiona sobre o seu ser. Em vez de ser um sujeito que apenas conhece o mundo, o Dasein está impregnado com a preocupação e a vivência do próprio ser.

O Ser-no-MundoUm dos traços fundamentais da analítica do Dasein é a noção de ser-no-mundo. Heidegger rejeita a ideia de que o ser humano é uma substância separada que apenas está no mundo como se fosse algo externo caído de paraquedas. O Dasein não é um sujeito que observa o mundo de uma posição externa ou objetiva, mas que é algo do mundo. Indica que o ser humano está sempre envolvido no mundo, com um conjunto de relações práticas, sociais e materiais. Dasein ou Ser-no-mundo implica não estar isolado de seu ambiente, mas relacionar-se com ele, um ser ativo e entrelaçado. O mundo não é apenas um lugar físico, mas um conjunto práticas significativas.

Sorge - é um conceito central em Heidegger que significa preocupação e cuidado. Dasein é uma preocupação do ser com o estar mundo. Dasein não é um ser que existe passivamente, mas que está ativo e preocupado. O conceito de preocupação também está ligado à ideia de que o Dasein é lançado no mundo (lançamento da existência), e que sua vida não é algo que ele pode escolher de maneira pura ou independente, mas é sempre condicionada pelas circunstâncias em que se encontra. A preocupação não se refere apenas ao ato de cuidar, mas a um envolvimento mais fundamental e ontológico com o mundo e com os outros.

Para Heidegger, o Dasein é fundamentalmente temporal. Isso significa que ele não existe apenas no presente, mas está sempre orientado para o futuro e também lançado no passado. O tempo não é um dado externo ou um simples movimento cronológico, mas é algo inerente ao próprio ser humano. O Dasein compreende-se através de uma relação com o tempo. O futuro é fundamental, pois o Dasein se projeta em direção à morte, que é o horizonte último da sua existência. A morte não é apenas um evento biológico, mas um Absoluto, uma inevitabilidade do Ser. A temporalidade não é linear, mas envolve uma compreensão dinâmica da existência ligada à experiência mundana. Heidegger distingue entre existência autêntica e existência inautêntica, duas formas de ser que são resultados da maneira como o Dasein se relaciona com a sua própria finitude e morte.

A existência é inautêntica quando o ser vive de forma desatenta em relação à sua própria finitude. Ou seja, ele se perde nas preocupações quotidianas e nas expectativas sociais sem refletir profundamente sobre o seu ser. A vida inautêntica é marcada pela alienação, pois o Dasein vive como parte de um fluxo impessoal numa massa social ou multidão, sem uma compreensão verdadeira de si mesmo. A existência autêntica ocorre quando o Dasein toma consciência de sua finitude. A partir dessa consciência vive de maneira integral e responsável. Em vez de se esconder da morte ou se perder na distração do mundo, o Dasein se apresenta a si mesmo como um ser que está sempre para a morte, e assim busca viver uma vida mais verdadeira, voltada para o seu próprio ser.

O Dasein não é um ser solitário. É com outros. Heidegger fala do conceito de Mitsein, ou "ser-com", para indicar que o Dasein está sempre em relação com os outros. Isso significa que a comunidade, a sociedade, e as relações interpessoais não são algo secundário ou periférico, mas constituem a própria estrutura existencial do Dasein. A convivência com os outros, embora constitua uma parte importante da experiência humana, também pode cair na mediocridade da existência inautêntica, quando o Dasein se perde na opinião pública e nos costumes sociais sem refletir profundamente sobre o seu próprio ser.

A questão do ser (Seinsfrage) é o núcleo da filosofia heideggeriana. A filosofia, para Heidegger, deve retornar à pergunta fundamental: "O que é o ser?" O Dasein, como ser consciente, é o único que pode questionar o ser, o que o coloca numa posição única para compreender a natureza do ser. O Dasein não apenas existe, mas também tem o potencial de questionar o seu próprio ser, e esse questionamento é uma condição para que o ser humano compreenda a sua existência de forma plena.

Por fim, a morte enquanto singularidade. A morte é central na analítica do Dasein. A morte é o horizonte. A finitude é a única certeza. É o momento em que o Dasein alcança a sua plenitude, em que finito e completude se encontram na unicidade do ser. Ao confrontar a morte, o Dasein vive a sua autenticidade, em vez de se perder na futilidade da vida quotidiana. A singularidade do Dasein vem da sua experiência única da morte vivida e da vida morrida. A analítica do Dasein de Heidegger é uma tentativa de romper com a filosofia tradicional, que tratava o ser humano como um sujeito abstrato ou como uma entidade fora do mundo, de nenhum lugar. Para Heidegger, o Dasein é inextricavelmente ligado ao mundo e à temporalidade. Ele é um ser preocupado, lançado no mundo, mas também projetado para o futuro, sempre buscando uma relação autêntica com o ser e com a morte. A análise do Dasein busca não apenas descrever a existência humana, mas entender a estrutura ontológica do ser humano em sua totalidade, a partir de sua experiência concreta e imediata com o mundo.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Haverá uma ideologia política que se possa considerar melhor do que outra em termos absolutos?



Não há uma ideologia política que se possa considerar objetivamente melhor do que outra em termos absolutos. Cada ideologia parte de pressupostos diferentes sobre a sociedade e o papel do Estado, e a sua eficácia depende do contexto histórico, económico e cultural em que é aplicada.

O que faz com que os eleitores oscilem entre mais liberalismo ou mais socialismo, em grande parte, são fatores conjunturais. Entre os principais fatores estão os ciclos económicos. Em tempos de crescimento económico, os eleitores tendem a preferir políticas liberais, que privilegiam o mercado e a redução do papel do Estado. Em tempos de crise, há uma maior inclinação para partidos socialistas que prometem proteção social e maior regulação.

Independentemente da ideologia, partidos que estão há muito tempo no poder acabam desgastados por escândalos, incompetência ou simplesmente pelo desejo de mudança. Novas gerações podem ter valores diferentes das anteriores. Por exemplo, uma geração que cresceu sob políticas de austeridade pode inclinar-se mais para o socialismo, enquanto outra, que experimentou um Estado muito intervencionista e burocrático, pode inclinar-se para o liberalismo. Guerras, pandemias, crises financeiras ou escândalos políticos podem mudar drasticamente a percepção pública sobre qual ideologia é mais adequada num dado momento. A forma como os partidos comunicam as suas propostas e a sua capacidade de mobilizar emoções e esperanças também influenciam muito as oscilações eleitorais. No fundo, a alternância política reflete o facto de que nenhuma ideologia tem soluções permanentes para os problemas de uma sociedade. O que funciona num determinado período pode não funcionar noutro, levando os eleitores a experimentar alternativas.

A convicção de um líder ou militante político na superioridade da sua ideologia geralmente decorre de uma combinação de fatores psicológicos, sociais e racionais. Desde cedo, as pessoas são influenciadas pelo ambiente familiar, pela educação e pelo meio social. Se um indivíduo cresce num meio onde determinada ideologia é predominante, há uma grande probabilidade de que ele a adote como verdade incontestável. As ideologias políticas funcionam como estruturas identitárias. Um militante pode ver a sua ideologia como parte essencial de quem ele é, e abandoná-la significaria perder parte da sua identidade e do seu grupo social.

Os seres humanos tendem a buscar e interpretar informações de maneira que confirmem as suas crenças prévias, ignorando ou minimizando evidências contrárias. Isso reforça a convicção de que sua ideologia é a melhor. A isto se chama “viés de confirmação”. Se um líder político experimenta ou testemunha o sucesso de políticas alinhadas à sua ideologia, ele pode reforçar a sua crença na sua eficácia. Por exemplo, um político socialista que vê programas sociais reduzirem a pobreza pode-se tornar ainda mais convicto de que o Estado deve intervir na economia. Muitas vezes, a adesão a uma ideologia está associada a benefícios materiais ou simbólicos. Um empresário pode defender o liberalismo porque suas propostas reduzem impostos e regulamentos, enquanto um sindicalista pode defender o socialismo porque ele fortalece os direitos dos trabalhadores. Líderes políticos frequentemente se formam em resposta a crises. Se alguém testemunha desigualdades extremas, pode inclinar-se ao socialismo; se vê o Estado sufocar a economia, pode tornar-se liberal. No fundo, a crença na superioridade de uma ideologia é mais um fenómeno humano do que um juízo puramente racional. Muitas vezes, as pessoas não escolhem abraçar uma ideologia com base num cálculo frio e objetivo, mas sim como resultado de um conjunto complexo de experiências, emoções e interesses.

A escolha de uma ideologia política não é meramente um "gosto", como preferir vinho tinto a vinho branco, mas também não é um cálculo puramente racional e objetivo. Está num território intermédio, onde fatores emocionais, sociais e intelectuais se misturam. Ao contrário de um simples gosto pessoal, a ideologia tem uma base argumentativa e tenta oferecer uma explicação para a realidade. Mas, tal como o gosto, ela também é influenciada por experiências subjetivas, pelo meio em que a pessoa cresceu e por fatores psicológicos, como o desejo de pertencer a um grupo ou de confirmar crenças já estabelecidas. No fundo, embora as ideologias pretendam ser racionais e científicas, a forma como cada indivíduo se apega a elas acaba por ter muito de instintivo e emocional, o que as aproxima, de certa forma, da esfera do gosto.

Na maioria dos casos, a inclinação do voto de um eleitor é fortemente influenciada pela sua situação socioeconómica, mas isso não significa que as considerações ideológicas e morais sejam irrelevantes. Na verdade, ambos os fatores se misturam e variam conforme o contexto. O eleitor tende a votar em quem ele acredita que melhor protegerá os seus interesses materiais. Por exemplo: Trabalhadores de baixo salário podem inclinar-se para partidos que defendem políticas sociais e redistributivas. Empresários e profissionais liberais muitas vezes preferem partidos que prometem menos impostos e menos regulação. Funcionários públicos tendem a votar em partidos que valorizam o setor estatal. Esse padrão, porém, não é absoluto.

Muitas pessoas votam com base em princípios que não se ligam diretamente à sua posição socioeconómica. Eleitores conservadores podem ser pobres, mas rejeitar partidos de esquerda devido a valores religiosos ou culturais. Eleitores ricos podem apoiar partidos socialistas por convicção moral sobre desigualdade. A classe média, que oscila entre estabilidade e insegurança, pode mudar de posição dependendo do contexto político e económico. Em momentos de crise económica severa, a lógica materialista tende a prevalecer, e os eleitores votam com o bolso. Em tempos mais estáveis, as questões morais e identitárias ganham mais peso. No fundo, o voto é uma mistura dessas forças. Para alguns eleitores, a ideologia e os valores são inegociáveis; para outros, o que importa é quem vai garantir maior segurança económica no momento.

Portanto, embora possa haver ideologias que sejam mais bondosas que outras ("dar tudo a todos e os ricos que paguem a crise") não significa que seja a mais certa ou sensata. Uma ideologia pode parecer mais bondosa ou mais moralmente atraente, mas isso não significa que seja a mais certa ou sensata em termos práticos. A política não é apenas uma questão de boas intenções, mas também de realismo e viabilidade. O exemplo de "dar tudo a todos e os ricos que paguem a crise" pode soar justo e solidário, mas levanta questões práticas: Se os impostos sobre os ricos forem altos demais, podem desincentivar o investimento e levar à fuga de capitais. A economia pode entrar em colapso se o Estado prometer mais do que pode entregar. A longo prazo, pode gerar dependência do Estado, minando a produtividade. Da mesma forma, uma ideologia radicalmente liberal, que defenda um mercado totalmente livre sem qualquer proteção social, pode ser eficiente em alguns aspetos económicos, mas levar a desigualdades extremas e instabilidade social. Ou seja, a sensatez de uma ideologia não depende apenas da sua bondade aparente, mas da sua capacidade de equilibrar princípios morais com consequências práticas. Muitas vezes, os sistemas políticos mais bem-sucedidos combinam elementos de diferentes ideologias, ajustando-se à realidade.

Aristóteles, com a sua noção de justo meio (mesotes), antecipou uma ideia fundamental da política: os extremos geralmente levam ao erro, e a melhor forma de governo encontra-se num equilíbrio entre diferentes forças. Na Política, ele analisa diferentes regimes e conclui que tanto a oligarquia extrema (onde poucos dominam e oprimem os demais) quanto a democracia extrema (onde a multidão governa sem restrições) são formas corrompidas de governo. Para ele, a melhor forma de governo seria uma "politeia", um sistema misto que combina elementos da democracia e da aristocracia, evitando os excessos de cada um. Liberalismo puro pode levar ao individualismo extremo e ao abandono dos mais fracos. Socialismo puro pode sufocar a iniciativa individual e resultar em regimes autoritários. A solução, como Aristóteles sugeriu, parece estar em encontrar um meio-termo dinâmico, ajustando-se às circunstâncias. A política, nesse sentido, não é uma ciência exata, mas uma arte de equilibrar forças, interesses e valores.

A política é muito mais arte do que ciência exata. Embora existam análises racionais, estatísticas e modelos económicos que ajudam a tomar decisões, a essência da política está profundamente ligada à emoção, ao interesse e até ao gosto pessoal. Os eleitores não votam com base apenas em cálculos racionais – Escolhas políticas envolvem identidade, valores e percepções subjetivas. Os líderes precisam de carisma e narrativa – Um político pode ter propostas tecnicamente sólidas, mas se não souber comunicar, emocionar e mobilizar, dificilmente terá sucesso. A política lida com incertezas e dinâmicas humanas – Ao contrário da matemática, onde as regras são fixas, a política lida com pessoas, cultura e mudanças imprevisíveis. Ou seja, a política não pode ser reduzida a uma equação lógica. No fundo, é um jogo de poder, interesses e emoções, onde a razão tem um papel, mas nunca é soberana.


O sentido da existência humana acima da natureza


O verdadeiro mistério do sentido da existência humana, especialmente no que transcende a natureza, permanece um enigma ainda por desvendar. Os filósofos têm oferecido insights valiosos sobre como construímos a realidade social e atribuímos sentido às nossas experiências. Mas eles não pretendem fornecer uma resposta definitiva para o significado último da existência humana. 
O que esses pensadores mostraram é que o sentido que atribuímos à nossa vida é construído por meio da intersubjetividade, da experiência compartilhada, e da interpretação das nossas interações no mundo. O significado que encontramos em nossa existência vai além da simples construção social e da experiência da vida quotidiana.

O sentido da existência humana toca em questões metafísicas e filosóficas profundas que envolvem não apenas a construção social, mas também o nosso relacionamento com a transcendência, a finitude e a busca por algo maior do que a própria vida. Mesmo com todos os avanços atingidos na compreensão da forma como construímos a realidade na interação com o mundo, o que permanece é a pergunta fundamental: existe um sentido maior, um propósito último para a existência humana que vai além do que conseguimos construir socialmente e compreender por meio da razão?

A busca pelo significado transcende o campo fenomenológico e entra por questões que foram sempre abordadas pela metafísica, pela teologia e por outras formas de reflexão filosófica. O mistério do sentido da existência humana continua a ser um dos temas mais debatidos, pois toca em algo que está fora do alcance da mera experiência sensorial e social: a possibilidade de um propósito ou significado que não depende apenas de nossa percepção ou construção, mas que poderia estar enraizado em algo que transcende a própria natureza humana e a realidade física. Portanto, a investigação do sentido da existência humana ainda é, em grande parte, um campo aberto, onde as respostas são parciais e provisórias. Filósofos, teólogos e pensadores contemporâneos continuam a explorar essa questão, que provavelmente permanecerá um mistério fascinante e inesgotável para a humanidade.

Sendo nós seres históricos, são incontornáveis os resultados que a fenomenologia e a hermenêutica legaram ao sentido da nossa historicidade. Ambos os campos de estudo trouxeram contribuições fundamentais para o entendimento de como nos situamos no tempo e de como a nossa identidade e sentido de existência são moldados pela experiência histórica. A fenomenologia, especialmente a de Husserl e mais tarde de Heidegger, sublinhou a ideia de que a existência humana está enraizada no tempo. Para Heidegger, por exemplo, o ser humano é um ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode), e a consciência de sua finitude é essencial para compreender a sua existência autêntica. A historicidade é um elemento intrínseco ao ser, e a nossa compreensão do mundo é sempre mediada por nossa experiência temporal. Somos sempre, de certo modo, lançados numa narrativa histórica que nos antecede e que molda as nossas escolhas, percepções e modos de ser.

A hermenêutica, por sua vez, especialmente através de Hans-Georg Gadamer e sua obra Verdade e Método, enfatiza que a compreensão humana é sempre um ato situado historicamente. Gadamer desenvolveu a ideia de "fusão de horizontes" (Horizontverschmelzung), em que o entendimento de um texto ou evento envolve um diálogo entre o passado e o presente. Esse diálogo é fundamental para que possamos interpretar e dar sentido às nossas experiências de maneira que transcenda a simples repetição de significados dados. A hermenêutica mostra que a historicidade não é apenas um pano de fundo passivo, mas um componente ativo que molda a maneira como percebemos e interpretamos a realidade. Nossas interpretações são sempre influenciadas por nossas pré-compreensões, que, por sua vez, são fruto da tradição e da nossa inserção num contexto histórico específico. Essas abordagens filosóficas legaram à nossa compreensão da historicidade a ideia de que o ser humano não pode ser separado de sua dimensão temporal e histórica. A existência é sempre situada, e o sentido que atribuímos às nossas vidas e ao mundo ao nosso redor está em constante diálogo com o passado, o presente e as expectativas de futuro. Somos moldados pela tradição, mas também somos agentes que reinterpretam e transformam essa tradição em um movimento contínuo.

Além disso, o reconhecimento da historicidade nos confronta com a responsabilidade de entender que nossas ações e decisões estão inscritas em uma narrativa maior. Isso implica um entendimento de que a história não é apenas uma sucessão de eventos, mas uma teia de significados em que os seres humanos participam ativamente como intérpretes e criadores. Portanto, a fenomenologia & hermenêutica nos ensinam que o sentido da nossa existência não pode ser desvinculado de nossa condição histórica. A compreensão de nós mesmos e do mundo passa pela reflexão sobre como somos constituídos pelas experiências do passado e pela forma como projetamos essas experiências em nossas expectativas futuras. Isso ressalta a importância do diálogo contínuo com a tradição e da interpretação como um processo essencialmente humano, que reafirma nossa condição de seres históricos em constante construção.

No sistema kantiano, as estruturas transcendentais do entendimento são os elementos a priori que tornam possível o conhecimento humano. Elas fazem parte da resposta de Kant à questão de como podemos conhecer objetos e, ao mesmo tempo, como o conhecimento é limitado às condições da experiência. Há o conhecimento puro a priori que é independente da experiência, mas necessário para que possamos organizá-la; e há o conhecimento empírico a posteriori que é baseado na experiência sensível. As estruturas transcendentais pertencem à esfera do conhecimento puro. O termo transcendental refere-se à investigação das condições de possibilidade do conhecimento. Para Kant, o entendimento é a faculdade de pensar e organizar os dados sensíveis fornecidos pela intuição (as formas puras do espaço e do tempo). Ele descreve as estruturas transcendentais do entendimento como as categorias ou conceitos puros que organizam e conferem sentido às intuições.

Kant identifica 12 categorias organizadas em quatro grupos, baseadas na lógica aristotélica:
  • Quantidade: unidade, pluralidade, totalidade.
  • Qualidade: realidade, negação, limitação.
  • Relação: substância/acidente, causalidade, reciprocidade.
  • Modalidade: possibilidade, existência, necessidade.
Essas categorias são a priori porque não derivam da experiência, mas são condições indispensáveis para que possamos pensar sobre qualquer experiência. As categorias permitem que o sujeito organize os dados da intuição sensível em conceitos. Só podemos conhecer objetos porque os dados sensíveis são sintetizados pelas estruturas transcendentais do entendimento. As categorias só podem ser aplicadas a objetos da experiência sensível. Não podemos usá-las legitimamente para conhecer coisas em si - noumena. Segundo Kant, não aprendemos a ideia de causa na experiência, mas aplicamos essa estrutura transcendental para organizar eventos numa sequência temporal e reconhecer relações de causa e efeito. Assim, as estruturas transcendentais do entendimento são a base do que Kant chama de conhecimento sintético a priori, aquele que amplia o nosso entendimento sem depender da experiência, mas que só pode ser aplicado aos fenómenos, não às coisas em si mesmas.

Na descrição fenomenológica & hermenêutica de Martin Heidegger, "pensar" é um "mostrar" prático e não teórico porque sua filosofia desloca o foco do conhecimento intelectual abstrato para o modo como o ser humano experimenta e compreende o mundo quotidiano de maneira concreta. Esse enfoque emerge de sua tentativa de superar o paradigma epistemológico tradicional herdado de Descartes e Kant, colocando a experiência vivida no centro da sua análise. Heidegger entende o pensar não como um ato puramente cognitivo ou contemplativo, mas como uma atividade que traz à luz o que já se manifesta no nosso envolvimento prático com o mundo. Em sua obra Ser e Tempo (Sein und Zeit), ele aborda essa questão através de dois conceitos fundamentais: Ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) - O ser humano (o Dasein) está sempre já imerso no mundo, compreendendo-o de maneira pré-teórica, por meio de práticas e interações quotidianas. A compreensão inicial do mundo não acontece por abstração intelectual, mas pelo envolvimento direto e prático com ele.

Para Heidegger, pensar não é separado do modo de ser do Dasein, que é caracterizado pelo cuidado (Sorge). O cuidado é um movimento existencial de envolvimento prático e afetivo com o mundo, no qual as coisas nos aparecem em sua relevância. Nesse sentido, pensar não é um ato de distanciamento intelectual, mas uma forma de ser-no-mundo. Na descrição fenomenológica & hermenêutica de Heidegger, o pensar é inseparável da prática porque se dá no contexto do envolvimento do ser humano com o mundo. É um mostrar que acontece na vivência quotidiana, um desvelamento que antecede qualquer postura teórica. Essa abordagem desafia a separação tradicional entre teoria e prática, propondo que a compreensão emerge primariamente da prática e só depois se articula teoricamente.

Na fenomenologia de Merleau-Ponty a subjetividade é constituída a partir do enraizamento do corpo no mundo vivido, como mediador da experiência. O sujeito como efeito do encontro. A experiência implica uma interação entre o sujeito e o mundo, na qual ambos se transformam. Isso reflete a ideia de que o sujeito não antecede a experiência como um "eu puro", mas só se reconhece como sujeito ao experimentar. A subjetividade é relacional e situada, formada nas práticas e nas interações concretas com o outro e com o mundo. A noção de que "a experiência faz o sujeito" ressalta o caráter processual e contingente da subjetividade: Em cada nova experiência, o sujeito se transforma, adquirindo novas perspectivas, habilidades e compreensões. A subjetividade não é fixa, mas um movimento contínuo de formação, como apontado por Heidegger ao falar do Dasein como "projeto" que se constrói no tempo.

Se a experiência é o que constitui o sujeito, então a formação da subjetividade não depende apenas de teorias ou de reflexões abstratas, mas de vivências concretas e práticas situadas. A subjetividade é profundamente intersubjetiva, pois as experiências que nos formam frequentemente acontecem em relação com outros sujeitos. Assim, o sujeito não é o "dono" ou criador soberano da experiência. Em vez disso, é a experiência que, em seu caráter ativo e envolvente, molda o sujeito, conferindo-lhe identidade, perspectivas e possibilidades de ser. Isso implica uma subjetividade fluida, aberta ao novo e sempre em construção, desafiando visões essencialistas e estáticas. A subjetividade do conhecimento surge precisamente dessa interação entre o que o sujeito vivencia diretamente e o que recebe dos outros. Essa complementaridade enriquece a formação do saber, mas também exige reflexão crítica para distinguir verdades compartilhadas, interpretações pessoais e possíveis distorções.

sábado, 5 de abril de 2025

O Novo Realismo



O Novo Realismo configura-se como uma teoria filosófica anti-subjetivista que toma como fundamento a realidade do mundo externo. O pêndulo do pensamento, que no século XX se inclinou para o anti-realismo em suas várias versões (hermenêutica, pós-modernismo, "viragem linguística", etc.), com a entrada no século XXI deslocou-se para o realismo (em seus muitos aspetos: ontologia, ciência cognitiva, estética como teoria da percepção). O Novo Realismo lançou um projeto de pesquisa internacional que ainda está em andamento no âmbito do debate sobre o realismo filosófico contemporâneo.

O Novo Realismo é um movimento filosófico italiano que se inspira em Maurizio Ferraris depois da publicação do seu artigo seminal publicado no "Repubblica" em 8 de agosto de 2011, onde ele antecipa o que viria a desenvolver no seu Manifesto do novo realismo em 2012. O Novo Realismo é o resultado, por um lado, da tradição realista nascida da filosofia e da psicologia da percepção representada por James J. Gibson e, ainda mais incisivamente, da tradição da Gestalt que se desloca de Gaetano Kanizsa para depois desaguar na obra de Paolo Bozzi, tributário da tradição analítica realista de Hilary Putnam. Criou-se assim um amplo debate mediático em torno do Novo Realismo, em que se contam figuras filosóficas como Mario De Caro, Umberto Eco, Michele Di Francesco, Diego Marconi, Luca Taddio, Rossano Pecoraro.

Maurizio Ferraris (Turim, 7 de fevereiro de 1956) é um filósofo e académico italiano. Desde 1995 que é professor titular de filosofia teórica na Faculdade de Letras e Filosofia. E desde 2012 do "Departamento de Filosofia e Ciências da Educação" da Universidade de Turim. Na Universidade de Turim, contribuiu para a criação do Laboratório de Ontologia “Lab Ont”. Também ajudou a fundar o Scienza Nuova, o instituto de estudos avançados que une a Universidade e o Politécnico de Turim, do qual é presidente. Estudou em Turim, Paris (obtendo um diploma d'études approfondies com Jacques Derrida na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales), na Universidade de Heidelberg com Hans-Georg Gadamer, tendo lecionado em importantes universidades europeias. No campo teórico, vinculou seu nome ao renascimento da estética como teoria da sensibilidade, a uma ontologia social entendida como ontologia de documentos (documentalidade) e a uma superação do pós-modernismo por meio da proposta de um novo realismo

Os primeiros interesses de Ferraris voltaram-se para a filosofia pós-estruturalista francesa, com autores como Jean-François Lyotard, Michel Foucault, Jacques Lacan, Gilles Deleuze. Um papel particular na formação do pensamento do filósofo italiano foi, sem dúvida, desempenhado por Jacques Derrida, com quem Ferraris manteve uma relação de pesquisa e depois de amizade, a partir de 1981. No final dos anos oitenta, Ferraris desenvolveu uma crítica articulada da tradição heideggeriana e gadameriana.

A conclusão desse caminho crítico leva a uma reconsideração da relação entre a mente e a linguagem e a uma reversão da sua oposição tradicional. Ferraris abandona o relativismo hermenêutico e a desconstrução de Derrida para abraçar uma forma de objetivismo realista. O mundo externo, reconhecido como inalterável, e a relação entre esquemas conceptuais e experiência sensível adquire relevância primordial. A "ontologia crítica" de Ferrari reconhece o mundo da vida quotidiana como amplamente impenetrável em relação aos esquemas conceptuais. A falta de reconhecimento desse princípio remonta à confusão entre ontologia (a esfera do ser) e epistemologia (a esfera do conhecimento), da qual Ferraris articula uma tematização crítica baseada no caráter de inalterabilidade que é próprio do ser em relação ao conhecimento.

O resultado natural da ontologia crítica é o reconhecimento – ao lado do mundo inalterável – de um domínio de objetos no qual a filosofia transcendental de Kant encontra a sua aplicação adequada: objetos sociais. Daí resulta a proposta de um antídoto para a degeneração da ideologia pós-modernista, para a práxis degradada e mentirosa da relação com o mundo que ela induziu. O Novo Realismo é, de facto, identificado na ação sinérgica de três palavras-chave, Ontologia, Crítica, Iluminismo. O Novo Realismo de Ferrari foi acompanhado por Mario De Caro, Mauricio Beuchot e Markus Gabriel. E conquistou o apoio de pensadores como Umberto Eco, Hilary Putnam e John Searle. Cruza-se com outros movimentos realistas que surgiram de forma independente, mas respondendo a necessidades semelhantes, como o "realismo especulativo" do filósofo francês Quentin Meillassoux e do filósofo americano Graham Harman. Para o novo realismo, o facto de ser cada vez mais evidente, que a ciência não é sistematicamente a medida última da verdade e da realidade, não implica que devamos dizer adeus à realidade, à verdade ou à objetividade, como concluiu grande parte da filosofia com o epíteto de pós-modernista.

Os novos realistas afirmam que, assim como a jurisprudência, a linguística ou a história – a sua filosofia realista também tem algo importante e verdadeiro a nos dizer sobre o mundo. Nesse quadro, o novo realismo se apresenta antes de tudo como um realismo negativo, em que, pelo facto de o mundo externo resistir aos nossos esquemas conceptuais, não significa que tenhamos fracassado no acesso a um mundo sólido e independente. Se for esse o caso, no entanto, o realismo negativo é transformado em um realismo positivo. Em sua resistência, a realidade não é apenas um limite, mas também oferece possibilidades e recursos, o que explica como, no mundo natural, diferentes formas de vida podem interagir no mesmo ambiente sem compartilhar nenhum esquema conceptual. E como, no mundo social, as intenções e comportamentos humanos são possibilitados por uma realidade que é dada antes de toda a interpretação sociológica, os novos realistas sentiram necessidade de reciclar toda a filosofia pós-modernista dos últimos cinquenta anos: resistência e críticas dos defensores do pós-modernismo e do pensamento fraco.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

As tradições


A continuidade das tradições pode estar ligada tanto à genética quanto à herança espiritual e cultural de um povo. A genética influencia certos traços comportamentais e cognitivos que podem favorecer a preservação de costumes, como a predisposição para a cooperação, a religiosidade ou a conformidade social. No entanto, a herança espiritual e cultural é ainda mais determinante, pois estrutura os valores, mitos e rituais que moldam a identidade coletiva ao longo das gerações.

Esse enraizamento pode ter origens muito antigas, até mesmo na pré-história, quando os primeiros grupos humanos desenvolveram narrativas e práticas para dar sentido ao mundo e reforçar a coesão social. Com o passar do tempo, essas tradições foram-se refinando e adquirindo um caráter quase atemporal, transmitindo-se de maneira orgânica e, em alguns casos, resistindo a mudanças históricas profundas. No entanto, há sempre um processo de maturação e adaptação. As tradições que sobrevivem não são meramente estáticas; elas passam por reinterpretações sucessivas para permanecerem relevantes. Assim, a longevidade de uma tradição pode ser vista não apenas como um sinal de sua força original, mas também de sua capacidade de se transformar sem perder a sua essência.

Isso não significa que certos povos tenham caído no esquecimento daquilo que foram. Muitos povos, ao longo da história, perderam a memória de si mesmos, seja por assimilação cultural, deslocamentos forçados ou colapsos civilizacionais. A identidade de um povo não é imutável; ela pode dissipar-se quando os elos com a tradição se enfraquecem ou são deliberadamente rompidos. O esquecimento pode ocorrer de várias formas. Um povo pode abandonar as suas crenças e costumes gradualmente, influenciado por outras culturas mais dominantes, como ocorreu com muitas sociedades indígenas após o contacto com europeus. Em outros casos, a ruptura pode ser abrupta, como no colapso de civilizações antigas, onde uma mudança drástica destrói as instituições que sustentavam a tradição. Mesmo assim, vestígios de antigas identidades podem persistir de maneira fragmentada, em lendas, símbolos ou costumes ressignificados. Às vezes, certos elementos de uma cultura adormecida são redescobertos e reinterpretados por gerações posteriores, num movimento de revitalização identitária. No entanto, quando uma tradição se perde completamente, o que se apaga não é apenas um conjunto de práticas, mas uma forma única de ver e compreender o mundo.

A ascensão da extrema-direita na Europa não foi a causa primária de um sentimento de angústia cultural, mas uma consequência dele. A inquietação sobre a identidade europeia já existia, especialmente entre setores mais cultos e historicamente conscientes, que perceberam a erosão de certas tradições e valores ocidentais diante de mudanças sociais aceleradas, incluindo a imigração em larga escala. Esse receio não surgiu da noite para o dia, mas amadureceu ao longo das últimas décadas, com fatores como a globalização, o declínio demográfico e a perda de coesão nacional. Os partidos populistas de extrema-direita apenas captaram e canalizaram essa ansiedade latente, muitas vezes exagerando ou simplificando questões complexas para mobilizar apoio popular. Eles não precisaram "catequizar" o povo, pois a preocupação já estava disseminada – apenas deram voz a um sentimento difuso que os partidos tradicionais evitavam discutir de forma aberta. Essa dinâmica explica por que esses movimentos cresceram rapidamente em várias nações europeias, sem precisar de uma doutrinação sistemática. O que ocorre é mais um ajuste à sensibilidade da época do que uma revolução ideológica imposta de cima para baixo.

Quando uma cultura sente que a sua matriz está sendo diluída ou relativizada, seus defensores tendem a buscar as raízes mais profundas. Assim, ao verem a paisagem cultural mudar, alguns europeus cultos redescobrem Homero, Virgílio e outros pilares da civilização greco-romana como forma de reconectar-se a um passado que sentem que se está a esvair. Esse fenómeno não é novo: historicamente, momentos de grande transformação ou crise costumam despertar movimentos de redescoberta cultural e até de resistência. O Renascimento, por exemplo, foi uma resposta à crise da cristandade medieval, resgatando o humanismo greco-romano. Hoje, talvez estejamos vendo um movimento análogo, mas num contexto de globalização e multiculturalismo, onde a Europa se vê menos como centro do mundo e mais como um espaço de múltiplas influências.

O Romantismo surgiu, em grande parte, como uma reação ao Iluminismo e à Revolução Industrial, num momento em que o avanço da racionalidade científica e da mecanização pareciam ameaçar a dimensão espiritual, cultural e identitária dos povos europeus. Os românticos buscaram resgatar a memória coletiva, as tradições populares e os mitos nacionais como forma de reafirmar o que consideravam a "alma" dos seus povos diante da homogeneização cultural trazida pelo progresso.

Esse impulso de retorno às raízes também ocorreu em períodos de crise e mudança, como na Idade Média, com a redescoberta de elementos germânicos e celtas, ou no Renascimento, quando se reviveu a Antiguidade Clássica. Hoje, diante da globalização e do multiculturalismo, vemos algo semelhante: um interesse renovado por Homero, pelos mitos fundadores e pelas tradições europeias como forma de preservar uma identidade que muitos temem estar-se dissolvendo. O que diferencia o momento atual do Romantismo é que, naquela época, a resposta foi em grande parte estética e filosófica, enquanto hoje, ela tende a se expressar também no campo político, com movimentos que buscam não apenas preservar a cultura, mas redefinir fronteiras e mitos de pertença.

Mas também, como sempre, há os benevolentes, com uma espécie de masoquismo ou remorço, com pavor de qualquer manifestação de nativismo, ao ponto de lisongearem o etnocentrismo de outras culturas. Os que se autointitulam racializados. Este fenómeno é notável. Há sempre aqueles que, movidos por um sentimento de culpa histórica ou por um idealismo universalista, reagem com repulsa a qualquer manifestação de nativismo europeu, mesmo quando se trata apenas da preservação cultural e não de hostilidade ao outro. Essa atitude pode ter raízes numa espécie de remorso coletivo pelo colonialismo, pelas guerras ou por injustiças passadas, levando alguns a exaltarem o etnocentrismo de outras culturas enquanto demonizam qualquer tentativa europeia de afirmar a sua própria identidade.

O caso dos que se autointitulam "racializados" ilustra bem essa dinâmica. Em vez de buscarem um diálogo genuíno entre culturas, muitos adotam uma postura de antagonismo, como se a Europa devesse apenas ouvir e se adaptar, sem direito à sua própria identidade. Esse comportamento, paradoxalmente, reforça divisões ao invés de promover uma verdadeira integração. Esse tipo de autoanulação não é apenas uma característica da Europa contemporânea. Outros impérios declinantes também passaram por momentos de autoflagelação moral antes de perderem a sua centralidade. Isso é o que está hoje no campo da luta entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, e os moderados no meio a não saberem para que lado do campo a História se vai inclinar.

O que estamos vendo hoje é uma luta ideológica intensa entre a extrema-esquerda e a extrema-direita, enquanto os moderados se encontram num estado de incerteza, sem saber para que lado a História penderá. Ambas as extremas apresentam visões totalizantes e muitas vezes incompatíveis sobre identidade, cultura e pertencimento. A extrema-esquerda, com sua visão globalista e desconstrutivista, tende a minimizar ou até repudiar as identidades nacionais europeias, promovendo uma narrativa de culpa histórica e de "descolonização" que, paradoxalmente, acaba reforçando o etnocentrismo de outros grupos. A extrema-direita, por sua vez, reage de forma combativa, reivindicando um retorno às raízes europeias, mas frequentemente com um tom de ressentimento e exclusão, o que dificulta um diálogo equilibrado. Os moderados, que tradicionalmente foram os pilares da estabilidade política, estão agora num dilema. Muitos não querem ser associados nem ao radicalismo identitário da extrema-esquerda nem ao nacionalismo exacerbado da extrema-direita, mas também não conseguem oferecer uma visão clara e mobilizadora que resgate uma identidade europeia sem cair em extremos. O que torna esse cenário mais imprevisível é que a História nem sempre segue uma lógica linear. O que hoje parece dominante pode desmoronar rapidamente diante de crises ou mudanças demográficas, políticas e económicas.

A História nunca teve lógica, muito menos linear, um erro de perspectiva dos antigos historiadores judaico-cristãos, em contraste com a visão cíclica do paganismo metaforizado pelo ciclo das estações. A ideia de uma História linear, com um começo e um fim teleológico, foi uma construção dos historiadores judeu-cristãos, fortemente influenciados por uma visão escatológica. Para essa tradição, a humanidade caminharia em direção a um desfecho definitivo – seja a salvação ou o juízo final. Esse modelo foi, mais tarde, secularizado por filósofos como Hegel e Marx, que enxergaram a História como um progresso inevitável rumo a um determinado destino. Já a visão cíclica, predominante nas tradições pagãs, via a História como um eterno retorno, onde civilizações nascem, crescem, atingem um auge e, inevitavelmente, entram em declínio, sendo substituídas por novas forças. Essa perspectiva, metaforizada pelo ciclo das estações, fazia muito mais sentido para povos que viam o mundo em termos de fluxos naturais, e não como uma linha reta rumo a um "fim da História".

O problema da visão linear é que ela gera ilusões perigosas: a crença de que a humanidade está sempre avançando e que qualquer retrocesso é apenas um "acidente" momentâneo. O século XX já demonstrou o perigo dessa mentalidade, com ideologias que acreditavam estar do lado "certo" da História e justificavam atrocidades em nome desse progresso inevitável.

Hoje, parece que estamos num momento de choque entre essas duas visões. Há os que ainda acreditam na linearidade e veem a globalização e o multiculturalismo como uma fase superior do desenvolvimento humano. E há os que, instintivamente, percebem a História como um pêndulo, alertando que a ascensão e queda das civilizações segue um ritmo próprio e que o declínio da Europa não é um desvio, mas parte de um ciclo natural.

A célebre dúvida existencial de Hamlet encaixa-se bem neste dilema histórico. "Ser ou não ser" pode ser lido, aqui, como a incerteza entre a continuidade e a dissolução, entre a renovação e o esquecimento. A Europa, e talvez o Ocidente como um todo, encontra-se nesse limiar shakespeariano, hesitante entre assumir sua identidade e história ou entregar-se à corrente da dissolução cultural e ao universalismo abstrato. Shakespeare, com seu profundo entendimento da condição humana, não nos dá respostas fáceis. O próprio Hamlet, consumido pela dúvida e pela consciência excessiva, adia a ação até que a tragédia se torne inevitável. A História pode estar a fazer o mesmo: os moderados hesitam, os extremos avançam e, no final, a decisão pode acabar por ser tomada não pela razão, mas pelo próprio desenrolar dos acontecimentos. Se a História fosse linear, como queriam os hegelianos e marxistas, saberíamos onde isso vai dar. Mas, sendo cíclica, como intuíam os pagãos, tudo é incerteza. Tudo é possível. O Ocidente pode já não ter forças para um novo ato e estarmos apenas assistindo ao epílogo.

Porque será que o desejo de identidade é louvável, exceto o desejo de ser europeu, ou francês? Essa é uma das grandes contradições do nosso tempo. Em quase todas as partes do mundo, a afirmação da identidade cultural e étnica é vista como legítima e até incentivada – exceto quando se trata da identidade europeia ou nacionalidades como a francesa, a alemã ou a britânica. Isso se deve a uma combinação de fatores históricos, ideológicos e políticos. Comecemos pela culpa histórica do colonialismo – A Europa carrega o peso moral de seu passado colonial, das guerras mundiais e do Holocausto. Isso levou a uma espécie de autocensura identitária, onde qualquer tentativa de afirmar um "orgulho europeu" é rapidamente associada ao nacionalismo agressivo do século XX. Em contraste, povos historicamente colonizados são encorajados a resgatar as suas identidades como forma de reparação.

O pensamento iluminista e, mais tarde, a ideologia globalista e multiculturalista promoveram a ideia de que as identidades europeias deveriam ser diluídas em prol de um cosmopolitismo sem fronteiras. Enquanto outras culturas são valorizadas por sua autenticidade e diferença, a Europa é pressionada a se tornar "neutra", sem um caráter próprio. A extrema-esquerda adotou a identidade europeia como um inimigo ideológico, associando-a ao imperialismo, racismo e opressão. Isso faz com que qualquer reivindicação de identidade europeia seja tratada como uma ameaça, enquanto outras identidades são vistas como formas de resistência. Para certas elites políticas e empresariais, um continente fragmentado, sem identidade forte, é mais fácil de administrar. Sociedades desprovidas de um sentido de pertença são mais abertas a mudanças culturais e económicas sem resistência, facilitando o avanço de agendas globalistas. O paradoxo é que esse duplo padrão não só gera ressentimento, como fortalece reações opostas. Se o desejo de identidade europeia continuar a ser demonizado, ele tenderá a se manifestar de forma cada vez mais radical, dando combustível justamente aos movimentos que os críticos da identidade europeia mais temem.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Repúblicas e monarquias


Monarquias ainda existem em vários países ao redor do mundo, embora o número tenha diminuído ao longo do tempo, com muitas monarquias evoluindo para monarquias constitucionais, onde o monarca atua como chefe de Estado cerimonial, e o poder executivo e legislativo é exercido por representantes eleitos. No entanto, existem ainda algumas monarquias absolutas e monarquias constitucionais em que o monarca tem um papel importante nas questões políticas e governamentais. 

Nas Monarquias Constitucionais o monarca possui um papel cerimonial ou representativo, mas a autoridade política real é exercida por um governo eleito. O monarca pode ser o chefe de Estado, mas o poder executivo e legislativo está nas mãos do parlamento e do primeiro-ministro. No Reino Unido, a monarquia britânica é um exemplo clássico de monarquia constitucional. O poder é amplamente exercido pelo primeiro-ministro e pelo parlamento. Nos Países Baixos (Holanda), o rei é o monarca cerimonial, enquanto o primeiro-ministro e o parlamento detêm o poder executivo e legislativo. No Japão, o Imperador Akihito (até à sua abdicação em 2019) e o atual imperador Naruhito têm um papel simbólico, e o país é governado por uma democracia parlamentar com um primeiro-ministro eleito.


Nas Monarquias Absolutas o monarca ainda possui poderes absolutos ou quase absolutos. Embora essas monarquias sejam raras, ainda existem algumas em que o monarca exerce controlo direto sobre o governo e as políticas do país. Na Arábia Saudita o Rei Salman bin Abdulaziz Al Saud (e, antes dele, outros membros da família real) exerce um controle absoluto sobre o país, com a monarquia saudita sendo uma monarquia absoluta, onde o rei tem autoridade significativa sobre as decisões políticas e religiosas. No Brunei o Sultão Hassanal Bolkiah é o governante absoluto do país, com poderes executivos, legislativos e judiciais concentrados em suas mãos. 

Em alguns países, há monarquias com uma estrutura federal - Monarquias Federais ou Tradicionais: onde o monarca ainda tem uma importância significativa, mas o governo pode ser descentralizado. Algumas dessas monarquias coexistem com sistemas de governo mais tradicionais. Nos Emirados Árabes Unidos, embora o país tenha um sistema de monarquia federal, o poder está dividido entre sete emirados, cada um governado por seu próprio monarca (emir). O Emir de Abu Dhabi é o chefe de Estado do país, mas o sistema é amplamente monárquico e tradicional. A Malásia tem uma monarquia rotativa entre os nove sultões das províncias malaias. O Yang di-Pertuan Agong (rei) é eleito de forma rotativa entre os sultões para um mandato de cinco anos.

Em algumas nações, a monarquia ainda existe numa forma tradicional ou cerimonial, com o monarca sendo uma figura simbólica e cultural importante, sem poder político direto. Na Tailândia o Rei Maha Vajiralongkorn (Rama X) tem um papel cultural e simbólico de grande importância, embora o país seja uma monarquia constitucional. Embora o Nepal tenha abolido a monarquia em 2008, antes disso tinha uma monarquia tradicional, com um rei exercendo poder em questões culturais e espirituais. Embora o número de monarquias absolutas tenha diminuído significativamente ao longo do tempo, as monarquias constitucionais ainda estão bastante presentes, especialmente na Europa e em algumas monarquias do Médio Oriente. Nos dias de hoje, a maioria dos monarcas tem um papel cerimonial, sendo o poder político real exercido por governos eleitos. No entanto, em alguns países, como a Arábia Saudita e Brunei, o monarca ainda possui grande poder e autoridade sobre o governo e as políticas do país.

As Repúblicas são formas de governo em que o chefe de Estado não é um monarca, mas sim uma pessoa eleita ou nomeada, geralmente por um determinado período de tempo, de acordo com as leis e a Constituição do país. Diferente das monarquias, onde o título de chefe de Estado é hereditário, nas repúblicas, o líder é escolhido de maneira democrática, direta ou indireta. República Presidencialista é quando o presidente é tanto o chefe de Estado como o chefe de governo, acumulando grande poder executivo e governando de maneira independente do legislativo. Nos Estados Unidos o presidente é o chefe de Estado e chefe de governo, sendo eleito diretamente pelo povo por um mandato de 4 anos. No Brasil o presidente é eleito diretamente e exerce funções tanto de chefe de Estado como de chefe de governo, sendo responsável pela administração federal. 

Há também Repúblicas Parlamentaristas. Nesse tipo de república, o chefe de Estado é geralmente um presidente cerimonial, enquanto o chefe de governo é o primeiro-ministro, escolhido pelo parlamento. O poder executivo está nas mãos do primeiro-ministro e do seu gabinete. Na Alemanha o presidente tem um papel principalmente simbólico, enquanto o chanceler (primeiro-ministro) é o chefe de governo e tem a responsabilidade de administrar o país.

A República Semi-Presidencialista é um modelo que combina características do presidencialismo e do parlamentarismo. O presidente é o chefe de Estado e tem um papel significativo na nomeação do governo, mas o primeiro-ministro é o responsável pelo governo imanado do parlamento. Na França o presidente tem grandes poderes, mas o primeiro-ministro e o gabinete, nomeados pelo presidente, exercem funções executivas em colaboração com o parlamento. Em Portugal o presidente é o chefe de Estado, mas o primeiro-ministro tem o papel de chefe do governo e controla a maior parte do poder executivo. 

A República é, por conseguinte, uma das formas mais comuns de governo atualmente. Está presente na maior parte dos países em todo o mundo. Ela pode adotar diferentes modelos, como o presidencialismo, parlamentarismo ou semi-presidencialismo, com variações significativas dependendo do grau de centralização do poder e do sistema político adotado. Embora a maioria dos países com regimes republicanos se classifiquem como democracias, há também várias repúblicas onde a democracia é frágil ou inexistente, dando lugar a regimes autoritários ou de partido único. As repúblicas são, de facto, a maioria entre os países do mundo atualmente. A grande maioria das nações modernas adota a forma republicana, seja democrática ou não democrática, e a tendência tem sido de crescente popularidade da república desde o século XIX, com a queda de monarquias absolutistas e a adoção de constituições republicanas em muitos países.

Há ainda um reduto de Estados que são Teocracias. As Teocracias são sistemas de governo onde o poder político é exercido por líderes religiosos ou onde a religião tem uma influência decisiva sobre o governo e a legislação. Embora sejam raras nos dias de hoje, algumas teocracias ainda existem, especialmente em países onde a religião e o Estado estão fortemente entrelaçados. Essas nações geralmente seguem uma interpretação estrita do Livro e implementam leis baseadas em princípios religiosos, com pouca ou nenhuma separação entre o clero e o político. 
O Irão é um dos exemplos mais conhecidos de uma teocracia contemporânea. O país é governado por um sistema híbrido de governo islâmico, onde a Autoridade Suprema (o Líder Supremo, cargo ocupado por um clérigo de alto escalão) exerce grande controlo sobre o governo, as leis e as políticas do país. O sistema é baseado na interpretação xiita do islão, e as leis civis e penais são fortemente influenciadas pela Sharia (lei islâmica). Embora existam eleições para o presidente e o parlamento, o Líder Supremo tem a última palavra em muitas questões importantes, e os clérigos controlam muitas das principais instituições do Estado.

É claro que há um Estado que não poderia ser outra coisa, que é o Estado do Vaticano. O Vaticano, também conhecido como a Cidade do Vaticano, é uma teocracia no sentido estrito. É o menor Estado do mundo, governado pelo Papa, que é simultaneamente o líder religioso da Igreja Católica e o chefe de Estado. O Papa exerce autoridade absoluta no Vaticano e tem influência significativa sobre os assuntos da Igreja Católica em todo o mundo. O sistema de governo do Vaticano é como se fosse uma monarquia absoluta e eclesiástica, com o Papa ao leme de uma grande instituição. O líder político é um líder religioso, ou tem uma relação íntima com as autoridades religiosas. No caso do Irão, por exemplo, a Sharia é central, enquanto no Vaticano as decisões se alinham com os dogmas católicos. 

A Arábia Saudita embora não seja uma teocracia no sentido clássico, é frequentemente considerada uma monarquia islâmica com características teocráticas. O país segue uma versão conservadora do islão sunita, conhecida como Wahabismo, e o governo é uma monarquia absoluta onde o monarca e os clérigos têm grande influência sobre as leis e a política. A Sharia é a base do sistema legal saudita, e as autoridades religiosas têm um papel importante na formulação e aplicação das leis. Portanto, há uma falta de separação entre Religião e Estado. 
O Afeganistão (sob o Talibã), embora o regime talibã não seja considerado uma teocracia no sentido mais formal, as leis são baseadas numa interpretação estrita da Sharia. A presença de clérigos no governo mostram características de uma teocracia de facto. A aplicação da sharia é central no regime talibã, com um controlo significativo sobre a vida pública e privada. 

Ao contrário das democracias liberais, onde há uma distinção clara entre as esferas religiosa e política, nas teocracias as duas estão entrelaçadas, com a religião moldando a política e as leis. Os Direitos civis são limitados. A liberdade religiosa e os direitos civis geralmente são severamente restringidos. A oposição religiosa ou política é muitas vezes silenciada, e a dissidência contra a liderança religiosa corre o risco de ser eliminada fisicamente. Países com influência teocrática como o Paquistão, e a Índia, particularmente em algumas regiões com presença de grupos religiosos dominantes, não são teocracias no sentido estrito. A presença de movimentos islâmicos e grupos hindus militantes, por exemplo, influenciam a política, embora esses países ainda mantenham um sistema constitucional de separação entre a Religião e o Estado. 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Cultura



Sem um povo não se pode falar em cultura. Ainda assim, uma nação pode albergar dentro de si mais de uma cultura. A cultura não surge do nada; ela se desenvolve dentro de uma matriz histórica que lhe dá coesão e continuidade. Fazem parte da cultura a língua, os mitos fundadores, religião, costumes e até mesmo traços psicológicos coletivo. E assim se enraízam na história e na identidade de um povo. Por isso, a ideia de uma "cultura universal" ligada ao conceito de civilização não faz sentido. Mesmo quando há influências mútuas, e sempre há, as culturas continuam distintas, pois são expressões de processos históricos singulares.

Em tempos de globalização e de migrações em massa, vemos tentativas de dissociar cultura de matriz histórica, como se fosse algo voluntário e puramente ideológico. O que estamos a assistir é a sociedades fragmentadas, com perda de sentido e identidade. Esse desenraizamento, por sua vez, pode alimentar crises de pertença e até mesmo tensões sociais. A propósito: o que se passa com as tão faladas, já a uns tempos a esta parte, das famosas "guerras culturais"? As chamadas "guerras culturais" nada mais são do que conflitos entre diferentes visões de mundo, muitas vezes entre aqueles que defendem a continuidade de uma matriz cultural historicamente enraizada e aqueles que promovem uma espécie de ruptura ou ressignificação dos valores tradicionais. O curioso é que, apesar de serem frequentemente apresentadas como debates sobre política ou direitos individuais, essas disputas vão muito além disso. No fundo, trata-se de uma batalha pelo monopólio do significado do que constitui identidade, pertença e até mesmo a própria noção de verdade dentro de uma sociedade.

A globalização e a digitalização intensificaram esse processo, pois hoje culturas distintas interagem e se chocam numa escala sem precedentes. Mas isso não significa que uma fusão harmoniosa vá ocorrer automaticamente. Muitas sociedades reagem ao que percebem como uma dissolução de sua identidade, o que pode gerar uma reafirmação cultural mais agressiva com movimentos de resistência fragmentada. Desde o século XIX que a cultura deixou de ser vista com a mesma carga analítica iluminista por via da entrada em cena das ideologias a partir dos escritos de Karl Marx. As "guerras culturais" derivaram dera fonte através dos autores franceses que ficaram conhecidos por pós-modernistas ou pós-estruturalistas. Envolveram-se nas disputas de poder e nas narrativas dominantes. 
Não são apenas disputas sobre valores ou símbolos superficiais. A busca por uma identidade "autêntica" e as tentativas de desconstruir ou deslegitimar o que é considerado tradicional ou normativo são manifestações de uma tensão mais profunda.

 As instituições sociais e políticas que, por muito tempo, garantiram a coesão de sociedades, entraram em crise. A pós-modernidade tratou de desmantelar a ideia de uma verdade universal, ou de um conhecimento "objetivo". Foi um movimento que gerou divisões dentro da própria estrutura social. O que para uns foi uma revolução transformadora, para outros foi uma ameaça existencial à sua identidade que criou um conflito de difícil resolução. Todas estas mudanças só atingiram a sua verdadeira visibilidade na segunda metade do século XX e se acelerou com a entrada do século XXI.

A ascensão do empoderamento feminino não é apenas simbólica, mas reflete uma transformação estrutural real, que se manifestou de várias maneiras, incluindo nos índices de educação académica e no mercado de trabalho. As mulheres passaram também a ocupar os espaços que antes eram praticamente do exclusivo domínio dos homens. E em algumas profissões as mulheres superaram os homens. Esse fenómeno nas universidades foi especialmente significativo nas disciplinas das chamadas "ciências sociais", bem como nas áreas da saúde. Ao passo que as áreas das "engenharias" mantém ainda o predomínio masculino. O que se observava anteriormente como uma tendência de exclusão está sendo gradualmente substituído por uma nova dinâmica de inclusão e ascensão.

Essa reconfiguração tem implicações profundas na dinâmica social, não apenas no mercado de trabalho mas também ao nível das esferas da cultura. Ela desafia normas tradicionais e coloca em xeque muitos pressupostos sobre papéis de género que pareciam imutáveis. Isso gera inevitavelmente reações, não apenas no segmento masculino da sociedade que resiste tanto quanto pode. Todo o sistema reage a mudanças. A pergunta que surge é: até que ponto essas transformações podem ser sustentadas sem gerar reações adversas ou sem levar a um novo tipo de desequilíbrio?

O pêndulo ainda se está a mover, ainda não chegou ao centro aparentemente imóvel. Ainda não se chegou a um paradigma, essa estabilidade segundo a teoria de Thomas Kuhn. O "pêndulo" cultural oscila de um extremo para outro extremo antes de encontrar esse ponto mais estável. Esse movimento é um reflexo natural de qualquer transformação social profunda. É o que estamos a viver agora: um período de intensas flutuações entre os polos de afirmação de identidade, poder e género. A aceleração das mudanças sociais, como o empoderamento feminino, pode ser vista como uma reação a desigualdades históricas, mas também como uma força que gera uma espécie de "perda de equilíbrio". Esse desequilíbrio está levando à necessidade de um novo centro, onde diferentes visões de mundo, tanto masculinas como femininas, possam integrar-se de forma mais harmónica. Isso não significa necessariamente uma "volta atrás", mas sim a criação de novas formas de convivência e de hierarquia, em que todos os géneros, experiências e perspectivas possam ter o seu valor e espaço legítimo.

Seja como for, o risco de uma crise de identidade masculina não é uma coisa trivial. Muitos homens podem sentir-se alienados ou desorientados neste mundo que já não reforça os padrões tradicionais aos quais estavam acostumados. O modelo de masculinidade tradicional, que muitas vezes se baseava no poder e na dominação, já não é mais tolerado. E em muitos contextos, os homens se veem desafiados a se redefinir sem recorrer aos antigos estereótipos de virilidade. No entanto, a chave para essa transição será a capacidade de encontrar um novo centro que não seja uma mera "compensação" entre os género, mas um paradigma que seja genuíno, flexível e, mais importante, reconheça as complexidades da identidade humana em todas as suas formas. Se esse centro for encontrado, será possível estabelecer uma estabilidade maior, onde as tensões atuais possam ser resolvidas de uma forma mais cooperativa, não por uma luta para dominar ou ser dominado, mas por um entendimento mais profundo das necessidades e limitações de todos os lados.

Esse movimento pendular que começa com excessos, vai-se desacelerando até atingir um ponto de equilíbrio. Isto não é novo na História. O desafio é que, hoje, estamos lidando com um movimento muito mais acelerado num mundo globalizado e conectado, onde as repercussões dessas mudanças se fazem sentir mais rápido e de forma muito amplificada. Mas a História nos mostra que as sociedades tendem a ajustar-se de forma a atender a uma maior pluralidade de interesses. Mas no início da crise são necessárias as quotas ou políticas de ação afirmativa. 
Esse tem sido o ponto debatido sobre a igualdade de oportunidades. 

A meritocracia tem sido uma ideia central em muitas sociedades, especialmente nas democracias liberais, e faz sentido que as pessoas sejam recompensadas de acordo com o seu talento e esforço. Porém, a questão da competência é mais complexa quando se considera o impacto das desigualdades históricas e estruturais. As quotas, por exemplo, surgiram como uma tentativa de corrigir desequilíbrios que não podiam ser facilmente superados à partida. O campo de jogo estando inclinado, só para o lado do género masculino, é injusto. Muitos argumentam que, sem uma intervenção inicial para nivelar o campo de jogo, a meritocracia, por si só, pode perpetuar a exclusão de grupos historicamente desfavorecidos. 

Num mundo ideal, onde todos têm um ponto de partida verdadeiramente igual, a competência seria o critério exclusivo para determinar quem merece estar onde. Isso é o que muitos aspiram, mas como garantir que essa igualdade de oportunidades de facto exista? Na prática, as políticas de quotas podem ser vistas como uma forma de compensação pelos efeitos das desigualdades estruturais e históricas, enquanto a meritocracia idealiza uma situação onde as condições de partida são universalmente justas. O desafio é encontrar um equilíbrio entre esses dois modelos. Se as quotas forem progressivamente reduzidas será fundamental garantir que as desigualdades de acesso à educação, saúde e outras áreas essenciais sejam tratadas antes de implementações de uma meritocracia plena, para que ela se torne verdadeiramente justa. 

Portanto, se a competência é de fato o fator determinante, ela precisa ser acompanhada de um esforço por criar um sistema onde todos, independentemente de sua origem, tenham as mesmas oportunidades para se desenvolver e competir. Caso contrário, o risco é que a meritocracia apenas reforce as divisões existentes, em vez de promover uma mobilidade genuína.