quarta-feira, 16 de julho de 2025
BRICS - Sul Global - e as críticas às democracias ocidentais
Entre os BRICS, a maioria coincidente com o denominado "Sul global". E quantos desses países são democracias efetivas? Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul - O grupo foi recentemente ampliado (2024–2025) para incluir mais países (BRICS+), mas focando na formação original -- e considerando a coincidência com o chamado Sul Global -- a sua composição em termos de democracias efetivas deixa muito a desejar segundo a Avaliação da Qualidade Democrática dos BRICS Originais (com base em índices internacionais como o EIU Democracy Index de 2024).
O Brasil é uma democracia - mas uma democracia imperfeita (flawed democracy) - Eleições livres e regulares, Judiciário independente, imprensa relativamente livre. Problemas com polarização, corrupção e fragilidades institucionais. Considerado, portanto, uma democracia efetiva, embora imperfeita. Ao passo que o regime na Rússia é autoritário. Eleições sem competição real, repressão da oposição, e a comunicação social é estatal. Não é uma democracia efetiva. E a Índia é uma democracia imperfeita (com tendências iliberais crescentes). Apesar de manter eleições regulares, há críticas crescentes à liberdade de imprensa, perseguição a minorias e enfraquecimento de instituições. Tecnicamente ainda uma democracia, mas com sinais de erosão democrática. África do Sul - Democracia imperfeita, mas funcional. Eleições livres, sistema multipartidário, Judiciário independente. Democracia efetiva, com problemas estruturais (corrupção, desigualdade). Mas a China não oferece dúvidas. É um regime autoritário de partido único. Sem eleições livres, controlo total dos média, repressão à dissidência. Não é uma democracia. Conclusão: Entre os 5 países fundadores dos BRICS, apenas dois são democracias efetivas, ainda que imperfeitas.
Vamos então analisar os países recentemente incorporados ao grupo BRICS+ (2024–2025), conforme o convite oficial que ampliou o grupo. Os países convidados e/ou aceites são: Argentina (convidada, mas recusou adesão sob Milei); Egito; Etiópia; Irão; Arábia Saudita; Emirados Árabes Unidos. Ora, o que tem ganhado cada vez mais eco em círculos intelectuais académicos de esquerda? É uma retórica, que domina as academias progressistas, e que trata de forma assimétrica quem não respeita valores universais como democracia, direitos humanos, liberdade de expressão e igualdade de género. Quando regimes autoritários ou misóginos são ocidentais ou "brancos", o discurso é feroz, militante e inflexível. Quando esses regimes são não ocidentais, há uma tendência a relativizar os abusos, apelando a argumentos culturais, históricos ou anticoloniais. Críticas duríssimas a símbolos ocidentais de opressão patriarcal, mas silêncio ensurdecedor sobre o casamento forçado de meninas, lapidação de mulheres ou leis anti-LGBTQ+ em países como Irão ou Arábia Saudita - agora membros dos BRICS+.
Muitos ativistas contemporâneos - especialmente em setores mais ideológicos das ciências sociais - parecem operar sob uma régua moral baseada em identidade: o que é feito por "opressores históricos" (brancos, europeus, cristãos) é intrinsecamente mau; o que é feito por "oprimidos históricos" é relativizado ou ignorado. E é assim quem reivindica para si o monopólio da indignação seletiva. Se um homem branco critica costumes autoritários ou misóginos de culturas não ocidentais, pode ser chamado de racista, islamofóbico ou colonialista cultural - mesmo que esteja defendendo direitos humanos universais. O feminismo radical ocidental, que tanto se esforça por combater o machismo em suas sociedades, muitas vezes ignora ou minimiza o sofrimento de milhões de mulheres em culturas onde a desigualdade de género é institucionalizada. É um feminismo seletivo. Pouca ou nenhuma denúncia efetiva: à tutela masculina na Arábia Saudita; à criminalização do adultério feminino em muitos países muçulmanos; à mutilação genital feminina na África subsaariana e em algumas comunidades muçulmanas da Ásia; à prisão ou execução de mulheres por não cobrirem o cabelo (como no Irão).
Onde chegamos? Chegamos, talvez, a um ponto onde o discurso crítico ocidental -- muitas vezes legítimo no passado -- se perdeu num labirinto de contradições morais e dogmatismos ideológicos. A crítica ao “homem branco” tornou-se fetiche ideológico, e não análise estrutural. A luta por justiça social deixou de ser universal e tornou-se identitária e tribal. Perdeu-se a capacidade de autocrítica e de reconhecer que nem tudo o que vem do Ocidente é opressor, nem tudo o que vem do Sul Global é legítimo só porque é "não branco". Se o "Sul Global" é uma categoria geopolítica útil, mas não é acompanhada por um compromisso genuíno com direitos humanos universais, e democracia real - é eticamente vazio. Se o BRICS+ se transforma em um clube de autocracias apenas por antagonismo ao Ocidente, ele não representa nenhum progresso civilizacional - apenas uma inversão de hegemonias, com os mesmos vícios.
Nas últimas décadas o anticolonialismo académico e militante deixou de ser um projeto construtivo e passou a ser uma retórica antiocidental identitária, muitas vezes ressentida e marcada por binarismos simplistas: "Branco = opressor"; "Não branco = vítima eterna". Essa lógica anula a responsabilidade histórica dos próprios países “descolonizados” por seus fracassos democráticos ou sociais. Torna impossível criticar ditaduras ou opressões internas ao Sul Global, sob o pretexto de “respeitar a cultura” ou “evitar imperialismo moral”. Sob o manto do anticolonialismo contemporâneo, aceitam-se ou relativizam-se práticas que ferem princípios universais de dignidade humana. Criticar a opressão das mulheres sob leis da sharia em alguns países pode ser visto como "islamofobia", não como defesa de direitos humanos. Essa inversão é moralmente grave. A cultura não pode ser escudo para a barbárie.
É assim lamentável que haja uma passividade indulgente com regimes brutais, desde que estes sejam “antiocidentais”. E o abandono do universalismo é mais um sintoma do declínio da autoridade moral das academias ocidentais que trabalham em "humanidades", uma maneira de designar aquelas disciplinas do secundário do meu tempo a que chamávamos de Letras, o contraponto das outras disciplinas a que chamávamos de Ciências. As universidades ocidentais, herdeiras do Iluminismo e do humanismo europeu, já foram centros de pensamento racional, crítico e ético, mesmo com todas as contradições históricas. Porém, hoje, muitos departamentos de "humanidades" adotaram teorias identitárias radicais, onde o critério de verdade e justiça não é mais universal, mas vinculado à origem étnica, género ou "lugar de fala".
O “branco europeu”, por exemplo, é desqualificado a priori para falar sobre temas como África, Islão, racismo, mesmo que o faça com base em dados, empatia e compromisso ético. Essa lógica destrói o diálogo plural. Fere a ideia de humanidade comum. E sacrifica a razão crítica em nome da ideologia tribal. A academia ocidental, com medo de ofender, institucionalizou a autocensura. É o que alguns apelidam de tirania do politicamente correto. Professores evitam temas sensíveis. Alunos são incentivados a se sentirem “violados” por ideias desconfortáveis. Palavras como “civilização ocidental”, “valores universais”, “verdade objetiva” são vistas com suspeita -- como se fossem expressões de dominação colonial. Isso é irónico porque as universidades onde isso ocorre são as mesmas que garantem liberdade de expressão e pensamento crítico, que muitos dos países do BRICS+ nunca tolerariam. Ao relativizar ditaduras e injustiças fora do Ocidente, os intelectuais anticoloniais traem os princípios pelos quais dizem lutar (liberdade, igualdade, justiça). E isso é um preço que se está a pagar caro, alimentando movimentos populistas de direita que exploram essa hipocrisia para desacreditar toda a forma de crítica social. Ou seja, o excesso de dogmatismo à esquerda acaba fortalecendo os extremos à direita. A crítica ao colonialismo histórico é válida, necessária e inescapável. Mas o que se vê hoje, muitas vezes, é um anticolonialismo estéril, marcado por inversões morais e um relativismo perigoso.
segunda-feira, 14 de julho de 2025
A Casa de Saxe-Coburgo-Gota
Para todos os efeitos a Rainha Vitória era uma espécie de um nó em toda esta rede. Casou com o seu primo príncipe Alberto de Saxe-Coburgo-Gota (filho de Ernesto I, irmão de Leopoldo I). A sua descendência espalhou-se por toda a Europa, sendo chamada de "a avó da Europa". Dos nove filhos:
- Eduardo VII → Pai de Jorge V do Reino Unido.
- Alice → Mãe da czarina Alexandra Feodorovna, esposa de Nicolau II da Rússia.
- Alfredo → Duque de Edimburgo e de Saxe-Coburgo-Gota.
- Helena → Casada com o príncipe Cristiano de Schleswig-Holstein.
- Luísa → Casada com o marquês de Lorne, Canadá.
- Artur → Duque de Connaught, governador-geral do Canadá.
- Leopoldo → Duque de Albany.
- Beatriz → Mãe de Vitória Eugénia, rainha de Espanha (casada com Afonso XIII).
- Lisboa: Com D. Fernando II, pai da linhagem real portuguesa final.
- Londres: O centro da expansão com Vitória e Alberto.
- Bruxelas: Leopoldo I e depois Leopoldo II, influenciando o colonialismo.
- Madrid: Com Vitória Eugénia, esposa de Afonso XIII (e neta de Vitória).
- Berlim: Vários casamentos entre Coburgos e Hohenzollern.
- São Petersburgo: Alexandra Feodorovna, czarina russa, neta de Vitória.
Há um contraste entre a longevidade da influência britânica e belga - e o encurtamento progressivo dos reinados portugueses até à república (1910). A presença pontual mas significativa na Rússia, Espanha, Bulgária e México. Como os ramos colapsam todos praticamente entre 1910 e 1945, marcam o fim do ciclo da monarquia europeia tradicional que inclui outras casas rivais, como os Habsburgo, Hohenzollern, Romanov ou Orleães. Para entender o peso da Casa de Saxe-Coburgo-Gota, é fundamental contrastá-la com as outras grandes casas reais europeias do século XIX e início do século XX, que formavam uma espécie de concerto dinástico das potências imperiais. Aqui está uma síntese clara das principais casas rivais, suas características e os tronos que ocuparam.
O ramo Habsburgo-Lorena formou-se com o casamento de Maria Teresa da Áustria e Francisco de Lorena. Tiveram um papel central na diplomacia europeia e foram rivais tanto dos Bourbon como dos Hohenzollern. Figuras centrais: Francisco José I (1848–1916): imperador austro-húngaro por quase 70 anos. Maximiliano do México: irmão de Francisco José, casado com Carlota (de Saxe-Coburgo).
A Casa de Hohenzollern [Prússia, Alemanha (Império Alemão)] -- Séculos XV–XX. Surgida como eleitores da Brandemburgo, tornaram-se reis da Prússia e, depois, imperadores da Alemanha.
Protagonistas da unificação alemã sob Bismarck e da rivalidade com os Habsburgos. Militarismo, nacionalismo e protestantismo foram marcas identitárias. Figuras centrais: Guilherme I (imperador de 1871 a 1888); Guilherme II (último imperador alemão, 1888–1918), neto da rainha Vitória.
A Casa de Romanov [Rússia] 1613–1917 -- Reinaram desde a saída dos Rurik até à Revolução Russa.
Promoveram um império vastíssimo e centralizado. Casaram-se com princesas de origem germânica, como a neta de Vitória (Alexandra). Figuras centrais: Alexandre II (libertador dos servos); Nicolau II, o último czar, executado com toda a sua família em 1918.
A Casa de Bourbon [França, Espanha, Nápoles-Sicília, Parma] Séculos XVI–XX -- Um dos ramos dos Capetos, esteve no trono de França até a Revolução. Em Espanha, voltou ao poder após a queda de Napoleão e continua até hoje. Em Nápoles e Parma, o ramo secundário Bourbon / Duas Sicílias perdeu espaço com a unificação italiana. Figuras centrais: Luís XVI (executado em 1793); Carlos IV, Fernando VII de Espanha; Afonso XIII (espanhol, casado com Vitória Eugénia).
A Casa de Orleães [França (Monarquia de Julho)] 1830–1848 -- Ramo liberal dos Bourbon que reinou com Luís Filipe I. Expulsos pela revolução de 1848. Estreitamente ligados à casa de Saxe-Coburgo pela aliança de Carlota com Leopoldo I da Bélgica.
A Casa de Savóia [Sardenha, depois Itália unificada] Até 1946. Foram reis do Piemonte / Sardenha e lideraram a unificação italiana. Tornaram-se reis de Itália em 1861. Figuras centrais: Vítor Emanuel II (primeiro rei da Itália unificada). Umberto I e Vítor Emanuel III.
domingo, 13 de julho de 2025
A Ucrânia e os amigos da Rússia
Esta postura é o que podíamos classificar de má-fé com traços de teoria da conspiração. Aqui entra a paranoia conspirativa. Segundo esta visão, os media estão todos manipulados pelo “imperialismo ocidental”, a Ucrânia é apenas um peão da NATO, e a Rússia está a combater uma guerra “defensiva”. A desinformação russa é muitas vezes acolhida com pouca crítica. O que pode revelar má-fé deliberada, ou pelo menos uma vontade ideológica de aderir a narrativas que justifiquem a sua posição prévia. Neste caso, o PCP parece muitas vezes mais preocupado em manter a coerência com a sua visão tradicional do mundo do que em confrontar os factos. É uma espécie de realpolitik invertida: se a realidade não bate certo com o dogma, pior para a realidade.
Esse tipo de discurso, além de politicamente irresponsável, acaba por marginalizar ainda mais o PCP no contexto português e europeu. Ele descredibiliza-se de uma forma intelectualmente to absurda que não tem outra explicação que desonestidade intelectual, ao alinhar-se, de forma quase acrítica, com um regime autoritário como o de Putin, que reprime opositores, manipula eleições e usa o exército para anexar território estrangeiro.
O PCP tem afirmado repetidamente que a guerra não é apenas uma questão de invasão russa, mas resulta de um contexto mais amplo. Culpa os EUA, a NATO e a UE por fomentar tensões através do seu alargamento junto às fronteiras da Rússia. Manipulam os acontecimentos políticos na Ucrânia desde 2014. Ainda num comunicado de fevereiro de 2025, reafirma que “o agravamento da situação é indissociável da … estratégia de tensão e confrontação” e apela a negociar também com a Rússia. O PCP coloca consistentemente a ênfase na paz, desarmamento e diplomacia: Apelo à “urgente desescalada do conflito, à instauração de um cessar-fogo e à abertura de uma via negocial”, com referência aos princípios da Carta das Nações Unidas e da Atos de. O PCP rejeita o envio de armamento pesado ou sanções que alimentem o conflito, acusando esses caminhos de prolongarem a guerra e alimentar o “colossal processo de aumento de despesas militares”. Em fevereiro de 2022, no Parlamento, recusam-se a condenar especificamente a Rússia, argumentando que “este conflito é muito mais profundo” e apontando os EUA como os que estão “verdadeiramente interessados numa nova guerra na Europa”. A 1 de março de 2022, os eurodeputados do PCP votam contra uma resolução que condenava a invasão, justificando que se iria “alimentar a escalada” e reforçar militarização na Europa. O PCP também boicotou a sessão solene com o Presidente Zelensky no parlamento, alegando que representava “um palco para a escalada da guerra” e se recusando a legitimar o “poder xenófobo e belicista” que, segundo o partido, o representaria. Em 2022, o PCP escreveu que houve um “golpe de Estado” em 2014 em Kiev, apoiado pelas potências ocidentais e pelas elites ucranianas, com envolvimento de “forças de extrema-direita, neonazis e xenófobas”. Em março de 2024, o partido condena “atos criminosos… cometidos… pelas forças armadas ucranianas… incluindo por grupos fascistas em Odessa” em 2014, defendendo investigações rigorosas e independentes antes de qualquer julgamento ou acusação.
A posição do PCP revela uma forte aderência a uma interpretação estrutural do conflito (como um choque entre “impérios” e guerrilha ideológica anti-Sistema), em vez de uma análise centrada na violação da soberania nacional da Ucrânia. A insistência em narrativas sobre “grupo neonazi” e “golpe de Estado” reforça perceções externas de distorção e alinhamento com teorias conspirativas ou anti-Ocidente. Esta postura aproxima o PCP de certos segmentos da esquerda radical europeia, e também tem sido alvo de duras críticas por parte de analistas políticos, media internacionais e até associações de refugiados ucranianos em Portugal.
Segundo o último Comunicado do Comité Central (29 de junho de 2025): O PCP continua a denunciar a escalada militar impulsionada pelo imperialismo, com ênfase nos EUA, NATO e UE, apontando para pressões económicas e apoio ao aumento das despesas militares (incluindo a cimeira da NATO em Haia com metas de 5% do PIB). Reforça o apelo pela dissolução da NATO, pela não militarização da UE e por um sistema de segurança coletiva para assegurar paz e justiça na Europa. O PCP rejeita participação ou apoio às políticas belicistas europeias, criticando duramente o alinhamento do governo português com essas estratégias. A associação de refugiados ucranianos (UAPT) tem reagido com preocupação à postura do PCP. O presidente, Maksym Tarkivskyy, expressou desagrado com o apoio do partido à guerra.
Quando o crime tiver tratamento - volta Michel Foucault
Quando o crime tiver tratamento médico -- com a inteligência artificial a atuar como mediadora imparcial nos processos de avaliação de risco e no planeamento de tratamentos -- teremos um mundo melhor.
Os dados das investigações neurológicas e genéticas reforçam a ideia de que, em última instância, há fatores biológicos plausíveis que tornam um indivíduo mais propenso a comportamentos socialmente danosos. Esta ideia remete diretamente à lógica medicinal em vez da penal: se a criminalidade é uma expressão de disfunções biológicas, então deve ser tratada como uma patologia, e não como uma falha moral.
Apesar da força da ideia, há entraves políticos e limites científicos. Nem todos os crimes se devem a fatores neurológicos identificáveis. A linha entre “má índole” e “disfunção cerebral” continua difusa. E há questões éticas: Quem decide o que é “tratável”? E se alguém recusa tratamento? Risco de autoritarismo médico: Um regime que trata criminosos como “doentes” pode acabar patologizando a dissidência. Justiça simbólica: A vítima e a sociedade esperam, ainda hoje, alguma forma de compensação moral. A abolição completa da punição exigiria uma transformação cultural profunda.
Seja como for, com os conhecimentos que temos hoje, o crime, cada vez mais, será visto como uma expressão de causas que a biologia (e a medicina comportamental) pode compreender. A lógica retributiva poderá ceder, gradualmente, à lógica terapêutica. Essa transição — embora utópica nis dias de hoje, a acontecer, provavelmente demoraria décadas ou séculos. Mas não deixaria de representar um salto ético da civilização em direção a uma sociedade menos vingativa, mais preventiva, mais científica, e mais humana.
Uma verdadeira revolução antropológica e civilizacional. Não se trata apenas de mudar o modo como tratamos os criminosos, mas de reestruturar o conceito de justiça, responsabilidade, punição e até de liberdade. As implicações políticas seriam abismais. A justiça penal deixaria de ser um pilar do poder de Estado. Não haveria “Ministérios da Justiça” com prisões e tribunais convencionais. No seu lugar haveria Ministérios de Risco Comportamental e Proteção Cívica.
A sociedade abandona o castigo como resposta moral ao mal. Em vez disso, desenvolve uma nova ética da vulnerabilidade universal: todos somos potenciais doentes; todos devemos cuidar uns dos outros. A ideia de “livre-arbítrio absoluto” é reformulada. Fala-se agora em graus de autonomia neurocomportamental, sempre contextualizados. As penas perpétuas e a pena de morte tornam-se impensáveis -- equivalem a abandonar um ser humano à sua doença. O sofrimento intencional de um criminoso passa a ser visto como barbárie -- da mesma forma que hoje se veria torturar um esquizofrénico.
A Biomedicina e a tecnologia passam a ser a base do novo sistema. A medicina comportamental integra ferramentas como a terapia genética personalizada para regular disfunções associadas à agressividade ou psicopatia. Estimulação cerebral não invasiva para modular centros de empatia, autorregulação e culpa. Interfaces cérebro/máquina que monitorizam e ajustam a impulsividade em tempo real com consentimento e supervisão ética. Terapias virtuais de reencenação empática, que expõem o paciente à experiência sensorial da sua vítima.
Esta previsão antecipa um salto de paradigma histórico: do castigo à cura, da exclusão à reintegração, da culpa à compreensão. A ciência de ponta da inteligência artificial já existe. Faltam mudanças éticas profundas, uma nova concepção de humanidade, e uma educação que prepare as futuras gerações para verem no criminoso não um inimigo, mas um humano em falha, como todos nós -- apenas mais evidente, mais urgente, mais extremo.
Esta será a refutação definitiva da tese do livre-arbítrio que durante milénios consumiu o pensamento de filósofos como Santo Agostinho. Depois vieram as prisões como resposta legítima contra o crime que tinha de ser punido com isolamento. Alimentámos uma ilusão moral: a de que o ser humano escolhe livremente ferir, matar e abusar. Uma vocação para o mal que é de nascença. Mas a ciência desfez essa ilusão. O cérebro humano não é uma fortaleza de liberdade absoluta. É uma estrutura plástica, programável, e vulnerável a ser danificada. Os atos que nos chocam, nos ferem e nos dividem: homicídios; violações; corrupção predatória - não brotam do vazio. São a flor venenosa de raízes invisíveis: infância desfeita; traumas precoces; disfunções neuronais; desregulações emocionais; genética de risco; falhas educativas; abandono afetivo . . .
sábado, 12 de julho de 2025
A matriz foucaultiana do feminismo atual
Foucault via a medicina, a psiquiatria, a sexualidade e o sistema penal como formas de poder sobre o corpo. Para ele, o conhecimento médico não é neutro: é um instrumento de disciplina e controlo. Isso foi absorvido por setores feministas que passaram a ver a obstetrícia como uma extensão do patriarcado, onde o corpo da mulher é "violentado" por normas masculinas disfarçadas de ciência. Tudo é descrito como violência sistémica, porque o corpo da mulher foi "invadido" por uma autoridade "masculina", mesmo que fosse uma obstetra mulher!
O risco desta lógica na prática é a destruição da confiança clínica num sistema onde o clínico é visto como suspeito de opressão à partida. O discurso da paciente é sempre verdade e o da equipa médica precisa justificar-se a todo o custo. A pressão pública e mediática é alimentada por ativismo propagado nas redes sociais. E assim se criou um clima de hostilidade e desconfiança, onde os médicos começam a evitar situações de risco, e as mais prejudicadas são precisamente as mulheres que precisam de cuidados complexos.
As análises de Foucault não buscam integrar correntes de pensamento, mas sim problematizar diferentes práticas sociais. Elas evidenciam que o poder opera de distintas formas no conjunto do tecido social, sendo que as lutas acerca da eliminação da desigualdade económica estão entrelaçadas às lutas contra todas as formas de discriminação, como as de género. As relações de poder, evidenciadas como jogo de forças entre géneros, produzem sujeitos nas diferentes classes sociais e, até mesmo, para além delas. Assim, uma mulher pode sofrer discriminação de género, ainda que pertença economicamente à classe dominante.
Esta posição de Foucault está muito próxima dos feminismos atuais quando estes desconfiam dos projetos neutros relacionados ao género. Sempre que projetos universais pretendem ser neutros e objetivos, têm como modelo o paradigma masculino. Por isso, as intervenções políticas e sociais precisariam prestar atenção às situações específicas que se desdobram das experiências próprias das mulheres. Não das mulheres como uma categoria uniforme determinada pela condição biológica, como se a portadora do sexo feminino já carregasse em si mesma a potencialidade de uma experiência política feminina.
Tem de se preservar a autoridade técnica do médico para decidir, em segundos, o que salva uma vida. Porque, no fim das contas, um parto não é um comício. É um momento clínico que exige sangue-frio, experiência e responsabilidade. E isso, infelizmente, não cabe num slogan.
Há, de facto, más práticas, negligência e desrespeito que devem ser combatidos com firmeza. Mas confundir atos clínicos bem fundamentados com “violência sistémica” é não apenas um erro conceptual, como uma injustiça grave. É condenar profissionais que, muitas vezes, em segundos, tomam decisões para salvar vidas. É instalar o medo, a judicialização e a desconfiança — tudo aquilo que mina a relação médico-paciente e, paradoxalmente, torna os partos mais arriscados. A boa medicina exige empatia, escuta e respeito, sim. Mas também exige ciência, discernimento e responsabilidade. Sem isso, estaremos a sacrificar a segurança do parto em nome de uma cruzada ideológica.
A propósito da “violência obstétrica”, ontem na SIC Notícias
Passando a origem do conceito na América Latina; e o grande inspirador Michel Foucault – Para quem se formou em medicina na década de 1970 as episiotomias eram realizadas segundo o princípio de que mais valia prevenir do que remediar uma laceração aleatória provocada por bebés maiores em tamanho e em períneos mais frágeis. E havia uma outra justificação que tinha a ver com o bebé, que quanto mais depressa nascesse menos tempo estaria sujeito à baixa oxigenação cerebral durante o trabalho de parto. No entanto, se as coisas evoluem é em ciência médica, e hoje a episiotomia está desaconselhada nas diretrizes da OMS. E os obstetras são os primeiros a atender a lex artis. Mas uma episiotomia bem indicada, realizada para evitar um rasgo grave ou proteger o feto em sofrimento, não é uma violência, é um ato médico responsável.
Tentar criminalizar o ato clínico baseado não na intenção médica, mas na perceção subjetiva de quem recebe o cuidado, é juridicamente perigoso e eticamente discutível. Estaríamos a aplicar o direito penal a contextos clínicos incertos e urgentes. Seja como for, esta judicialização da medicina colocou os obstetras na linha de fogo, o que é péssimo para a confiança na relação médico/paciente, em que cada vez mais os médicos se colocam na defensiva. E é sabido que os atos médicos na defensiva repercutem-se negativamente para o lado das pacientes. Está-se numa deriva que qualquer dia ninguém quer ser obstetra. Já hoje se vê isso: muitos profissionais estão a abandonar o parto ativo, preferindo ser ginecologistas, por medo de processos judiciais a aumentarem muitas vezes injustamente.
Atenção: o feminismo é um movimento histórico fundamental na luta pelos direitos das mulheres. Mas hoje existe uma vertente mais radicalizada que vê quase toda a estrutura social como “opressão de género sistémica”. Nessa ótica, até atos médicos bem-intencionados passam a ser interpretados como violência sistémica masculina. Esse tipo de fundamentalismo tende a confundir o contexto clínico com o contexto político, e trata profissionais como representantes do “patriarcado”. A medicina está a ser pressionada por narrativas que nem sempre compreendem a complexidade do ato clínico.
Ao longo da história da Medicina sempre houve más práticas, mesmo que nem sempre generalizadas. Mas competiu sempre aos próprios profissionais corrigir erros ou abusos através das suas legítimas instituições, tanto ao nível das sociedades científicas representativas, como ao nível da Ordem dos Médicos. O caminho sensato sempre passou por aí. Mas atualmente estão a passar-se fenómenos muito estranhos com estas guerras culturais da dita civilização Ocidental. Parece que todo o estado da arte científica, de matriz iluminista, se está a desmoronar num mundo virado do avesso, a substituir critérios objetivos e técnicos por perceções subjetivas absolutizadas; o saber técnico-científico a ser orientado por ideologias.
Levado à letra dessas feministas, um médico pode ser condenado mesmo tendo agido segundo as melhores práticas médicas, uma vez que foi a paciente a interpretar o ato como "violento". Mesmo quando for um erro médico, é colocado no terreno da má-fé e das teorias paranoicas da conspiração patriarcal.
sexta-feira, 11 de julho de 2025
Ter uma ideologia - ou modo de pensar
Estudos em neurociência e em ciência cognitiva, que são cada vez mais sofisticados, concluem que a ideologia política é só uma das manifestações do modo de pensar. Ou seja, não é uma questão de racionalidade, e que nos leve a dizer que ser de direita ou de esquerda, em termos absolutos, define a superioridade de um em relação ao outro. A ideologia política tem sido cada vez mais compreendida como expressão de traços psicológicos profundos, muitas vezes inatos ou formados muito cedo na vida, mais do que como resultado exclusivo de raciocínio lógico ou evidência empírica.
Famílias progressistas, por exemplo, costumam acreditar que os filhos devem desde cedo conhecer a realidade como ela é, sem floreados. Acreditam que a verdade, mesmo dura, não traumatiza, mas prepara. Já famílias conservadoras tendem a proteger os pequenos do sofrimento, adiando o máximo possível o contacto com as desilusões do mundo. Acreditam que é na inocência que a criança se fortalece. Ambas as abordagens, se levadas aos extremos, revelam as suas fragilidades. Do lado progressista há o risco de formar adultos ansiosos, muito expostos ao mal do mundo. Do lado conservador há o perigo de uma ingenuidade que desarma diante da dor inevitável da vida. Não se trata, portanto, de escolher um lado como quem escolhe um casaco numa loja de pronto a vestir. É mais a ida ao alfaiate para nos fazer um casaco à justa medida do nosso corpo. E já agora à medida dos nossos gostos pessoais que estão ligados à nossa esfera das emoções, e não à nossa esfera da razão.
O que parece emergir como modelo ideal é uma forma híbrida que resulta da nossa educação e aprendizagem de vida. A verdade, sim, mas com linguagem emocionalmente adequada. Impor limites, sim, mas com escuta e explicação. Preparar para a dor, mas oferecendo afeto e sentido. Educar, nesse sentido, é tanto proteger como endurecer para a vida, tanto providenciar com previdência, como libertar com cálculo de risco. Não há fórmula definitiva, mas há um norte ético: ajudar a criança a tornar-se um ser humano inteiro, capaz de enfrentar o mundo sem medo e sem desprezo. A família, afinal, é o primeiro laboratório da alma humana. É ali que se ensaia o equilíbrio entre empatia e firmeza, entre liberdade e responsabilidade. E é esse equilíbrio que, mais tarde, transbordará na forma como votamos em política, amamos, trabalhamos, cuidamos, e escolhemos em que tipo de mundo desejamos viver.
Estudos em neurociência mostraram que há correlações entre estruturas cerebrais e orientação política. Por exemplo, indivíduos mais conservadores tendem a ter uma amígdala (área ligada ao medo e vigilância) mais ativa, enquanto progressistas tendem a apresentar mais atividade no córtex anterior cingulado, ligado à abertura à novidade e à ambiguidade. Pesquisadores como John Jost exploraram como conservadorismo pode estar relacionado a um desejo maior por ordem, estrutura e certeza, enquanto o progressismo se relaciona mais com tolerância à ambiguidade, complexidade e mudança.
Isso desafia a ideia de que uma ideologia possa ser objetivamente superior à outra em termos morais ou racionais. Elas refletem preferências e estilos distintos de viver e perceber o mundo. Portanto, a polarização política muitas vezes não é fruto de ignorância ou má-fé, mas sim de visões de mundo profundamente enraizadas, emocionalmente fundamentadas, e só em parte racionalizadas. Entender isso pode levar a um debate mais civilizado e menos moralizante entre posições diferentes.
Esta dicotomia toca diretamente em duas necessidades humanas: Segurança emocional (favorecida pelo modelo conservador); Autonomia cognitiva e emocional (favorecida pelo modelo progressista). Famílias progressistas tendem a investir na preparação mental, mesmo com algum risco emocional. Famílias conservadoras investem na proteção emocional, mesmo com algum risco de falhar.
quinta-feira, 10 de julho de 2025
O estado da imigração em Portugal
Vamos então explorar o modelo português de integração de imigrantes, destacando os seus pontos fortes, limitações e as razões pelas quais, até agora, evitou os fenómenos de marginalização extrema e violência urbana observados, por exemplo, em França.
A imigração em Portugal tem sido até aqui, historicamente, ligada aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e, mais recentemente, ao Brasil e Timor-Leste. Esses imigrantes falam português ou aprendem rapidamente, o que facilita a integração linguística e cultural, ao contrário de França com populações árabes ou turcas. Há também uma familiaridade cultural histórica (embora marcada por assimetrias coloniais), o que reduz o estranhamento mútuo. Portugal tem tido até aqui uma das leis de nacionalidade mais generosas da Europa. Filhos de imigrantes que nascem em Portugal podem obter nacionalidade com relativa facilidade.
O tempo de residência necessário para naturalização tem sido de 5 anos, o que em paralelo com outros países até é curto. Isso gera um sentimento de pertença mais precoce e ajuda a evitar a criação de "portugueses de segunda classe", como ocorre em França. E podíamos continuar a elogiar não se tivesse dado o caso de as coisas estarem a mudar há dois ou três anos a esta parte: uma espécie de tsunami vindo da Ásia Central / Sul que se fez acompanhar com o crescimento coincidente do CHEGA, um partido de extrema-direita. Mas até aqui a abordagem portuguesa à imigração era menos ideológica do que a francesa ou britânica. O trabalho do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) tem sido muito meritório, com a promoção de políticas de inclusão linguística, educativa e cívica.
Portanto: Apesar dos sucessos, há riscos crescentes de pressão migratória. E isso já está muito visível na crise da habitação. E também na saturação do espaço ao nível das primeiras idades do sistema educativo. Portugal ainda é um país com uma mancha de pobreza muito considerável. Muitos imigrantes estão em setores como agricultura, construção civil ou entregas, com condições difíceis e baixa proteção legal real. Algumas escolas nas periferias têm dificuldades de integração de alunos de múltiplas origens, com baixos índices de sucesso escolar. É previsível o aumento da pressão demográfica e socioeconómica, o que irá naturalmente abalar o equilíbrio que existia ate há três anos. Em 2021 havia 698.536 estrangeiros com autorização de residência. Em 2022: 781.915 (+11,9% face a 2021). Em 2023: 1.044.606 (+33,6% face a 2022), representando cerca de 10% da população total.
O crescimento da comunidade indiana foi significativo: em 2021 -- 30.251 residentes; 2022 -- 34.232 (+13% face a 2021); 2023 -- 44.051 (+28,7% face a 2022), tornando-se a 5.ª maior comunidade estrangeira em Portugal . Além disso, estima-se que o número total de pessoas de origem indiana, incluindo descendentes, seja entre 104.000 e 120.000 . Setores principais: agricultura e pesca (30%); construção civil (15%); atividades administrativas (23%) e alojamento e restauração (22%). Contribuições para a Segurança Social: os indianos triplicaram os descontos entre 2021 e 2024, atingindo 238 milhões de euros. A maioria dos imigrantes, incluindo os indianos, reside nos distritos de Lisboa, Faro e Setúbal, com destaque para a Área Metropolitana de Lisboa, que concentra cerca de 65% da população estrangeira.
Paralelos com as esquerdas europeias
Tentemos perceber se a crise da esquerda francesa é uma exceção ou parte de um padrão continental. Veremos que há um padrão comum de declínio, mas com variações nacionais importantes. Hoje a esquerda está dividida entre o PS residual e a radicalização da France Insoumise de Mélenchon. Na Itália a esquerda histórica está totalmente desaparecida.
A Alemanha viu a fragmentação e esvaziamento do SPD. O SPD (Partido Social-Democrata) é o mais antigo da Europa. Nos anos 90–2000, com Gerhard Schröder, adotou reformas liberais (Agenda 2010) e perdeu o apoio da classe trabalhadora. Isso levou à criação da Die Linke, um partido mais radical, com base na ex-RDA.
O SPD voltou ao poder em 2021 com Olaf Scholz, mas sem entusiasmo, governando com verdes e liberais, mas sem visão mobilizadora. A Die Linke está em queda, e parte do seu eleitorado fugiu para a extrema-direita (AfD) no leste alemão. Conclusão: a esquerda alemã sem alma, sob pressão de todos os lados, cedeu agora o lugar a Friedrich Merz. Joachim-Friedrich Martin Josef Merz (nascido em 11 de novembro de 1955) é um político alemão que atua como chanceler da Alemanha desde 6 de maio de 2025. Ele também atuou como líder da União Democrata Cristã (CDU) desde janeiro de 2022, liderando o grupo parlamentar da CDU/CSU (União) como líder da oposição no Bundestag de fevereiro de 2022 a maio de 2025.
Na Espanha o PSOE (socialista) foi hegemónico, mas perdeu força com a crise de 2008. Surge então o Podemos, partido de esquerda populista, com discurso antissistema, semelhante à France Insoumise. A aliança PSOE–Podemos governou até 2023 com Pedro Sánchez. Hoje o PSOE sobrevive, mas depende de coligações e nacionalistas catalães e bascos. O Podemos implodiu; parte dele fundiu-se com Sumar, uma tentativa de "rebrand" à esquerda. A extrema-direita (Vox) cresce, mas a esquerda ainda tem espaço de manobra institucional. Conclusão: a esquerda espanhola ainda vive, mas está fragilizada e muito dependente de equilibristas políticos.
O Reino Unido teve o caso Corbyn e o retorno ao centro. O Partido Trabalhista (Labour) moveu-se para o centro com Tony Blair (1997), tornando-se quase um "partido liberal social". Nos anos 2010, Jeremy Corbyn tenta reaproximá-lo da esquerda clássica — antiausteridade, pró-nacionalizações, etc. Mas a campanha da imprensa e divisões internas sabotaram-no. Hoje o Labour, com Keir Starmer, abandonou o projeto radical. Em todo o lado a extrema-direita está em ascensão à custa da raiva popular contra a esquerda que praticamente esteve ao leme dos destinos dos povos no dealbar do terceiro milénio. E o poder desgasta e paralisa o fulgor intelectual de outros tempos. A esquerda perdeu o discurso, ou a narrativa como se diz agora. E com a linguagem também se foi o chão.
Os intelectuais de esquerda da atualidade andam todos aos papeis. A “bolha académica” divorciou-se do povo. O pensamento de esquerda acantonou-se nas universidades, seminários e conferências. Resultado: um discurso cada vez mais abstrato, identitário e desconectado do chão social real. Discussões intermináveis sobre microagressões, pronomes e interseccionalidade. Defesa de causas válidas, mas com linguagem hermética. Incapacidade de falar sobre trabalho, pobreza, habitação, segurança -- temas que afligem o cidadão comum. Resultado: o povo não se reconhece mais na esquerda. Vê nela uma elite moralista, urbana, “woke”, que os julga em vez de os representar. Há vozes de autocrítica, mas são vozes isoladas, e muitas vezes hostilizadas dentro da própria esquerda, que prefere manter a pureza ideológica em vez de reconquistar terreno perdido. A esquerda fala para si mesma, com um vocabulário hermético e cada vez mais sectário. A antiga esquerda revolucionária, que dizia “vamos mudar o mundo”, deu lugar a uma esquerda performativa, que diz “vamos mudar o vocabulário”.
quarta-feira, 9 de julho de 2025
O pedido de ajuda de Mário Soares aos EUA
Mário Soares, como líder do Partido Socialista (PS) e figura central do campo democrático em Portugal, teve de recorrer deliberadamente à ajuda dos Estados Unidos e de outras democracias ocidentais para conter o avanço comunista durante o PREC. Em fevereiro de 1975, Mário Soares viajou a Washington, numa missão sem grande alarde, para se encontrar com membros da administração americana, nomeadamente Henry Kissinger, então Secretário de Estado. Nessa visita, Soares alertou para o perigo de uma tomada do poder pelo PCP e uma deriva para uma ditadura comunista, pedindo apoio político e financeiro para as forças democráticas.
Nos arquivos do Departamento de Estado dos EUA, estão registados memorandos confidenciais que mostram a desconfiança de Kissinger em relação à estabilidade da democracia portuguesa. A opinião era de que Soares era “o último bastião viável contra Cunhal”. O apoio a iniciativas discretas, incluindo financiamento indireto ao PS, suporte logístico para estruturas sindicais moderadas, e influência diplomática junto da NATO. Kissinger (mais tarde, em memórias): "Se Portugal caísse nas mãos do PCP, seria o primeiro país da NATO a ter um governo comunista. Seria um precedente devastador para o Ocidente."
A Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata Alemão (SPD), ajudou financeiramente e logisticamente o PS português. A Alemanha via Portugal como uma fronteira estratégica entre a democracia e a ditadura, temendo um “efeito dominó” no sul da Europa. François Mitterrand, líder do Partido Socialista francês, apoiava Soares, mas hesitava em antagonizar diretamente o PCP, por causa da aliança entre socialistas e comunistas em França. No entanto, os socialistas franceses ajudaram com formação política e estruturas de apoio ao PS português.
Nas eleições para a Constituinte (25 de Abril de 1975), o PS surpreendeu ao obter mais de 37% dos votos, enquanto o PCP teve cerca de 12%. A vitória clara de Soares deu-lhe legitimidade popular e internacional para travar a radicalização do processo revolucionário. Essa eleição foi essencial para convencer os EUA e a Europa de que a maioria dos portugueses não queria uma ditadura comunista. Soares enfrentou uma campanha violenta de propaganda contra si por parte do PCP e da extrema-esquerda. Era acusado de “agente da CIA”, “burguês traidor” e “vendido ao imperialismo”. Mesmo assim, viajou pelo país em caravanas democráticas, enfrentando multidões hostis, sobretudo no sul (Alentejo) e nos meios urbanos revolucionários. Mais tarde diria: “Foi a luta da minha vida. Salvámos a democracia em Portugal com o apoio do povo e do mundo livre.” Foi um jogo de altíssimo risco. E Soares, com notável habilidade política e coragem pessoal, venceu-o, consolidando Portugal como uma democracia pluralista e europeísta.
Um relatório da CIA, desclassificado parcialmente, destaca a rivalidade entre Mário Soares e Álvaro Cunhal pelo controlo da esquerda portuguesa após o 25 de Abril. O documento observa que Soares temia a organização superior dos comunistas e estava empenhado em fortalecer o seu partido para competir eficazmente. Os encontros entre Mário Soares e o embaixador dos EUA em Lisboa, Frank Carlucci, foram fundamentais. Carlucci manteve reuniões frequentes com Soares, demonstrando a profunda preocupação de Washington com a ameaça comunista em Portugal. Esses diálogos evidenciam o apoio político e estratégico dos EUA a Soares durante o processo de transição democrática.
Em janeiro de 1975, durante uma reunião entre o Secretário de Estado Henry Kissinger e o Secretário de Defesa James Schlesinger, foi discutida a possibilidade de um golpe comunista em Portugal. Schlesinger mencionou que o Pentágono tinha um plano de contingência para tomar os Açores, visando proteger os interesses estratégicos dos EUA na região. Soares: “Estamos perante uma tentativa concertada de tomar o poder por via de um putsch ideológico. A única saída é fortalecer a via democrática, com apoio externo.” Carlucci: “O governo dos EUA está atento e acompanha com admiração a sua luta. Tenha a certeza de que faremos o possível dentro dos limites diplomáticos.” ("Se Portugal virar irreversivelmente comunista, teremos de assegurar a Base das Lajes, nos Açores. Está a ser redigido um plano de contingência para uma intervenção aerotransportada limitada.")
Entretanto, enquanto Reagan e Thatcher no início dos anos 80 inauguravam uma nova era, na França, sempre a França, com Miterrand, ainda aguentava os estertores da esquerda e do comunismo. O que lhe está hoje a custar bem caro. Enquanto Ronald Reagan (1981) e Margaret Thatcher (1979) iniciavam a viragem neoliberal no mundo anglo-saxónico - baseada em cortes estatais, desregulação e culto ao mercado - a França fez o movimento oposto. François Mitterrand, eleito presidente em 1981, liderou um governo de esquerda socialista com ministros comunistas (do PCF) - algo quase impensável nos EUA ou no Reino Unido na mesma época. Medidas iniciais do governo Mitterrand: Nacionalizações maciças (bancos, seguradoras, grandes grupos industriais como Renault, Thomson, Saint-Gobain…). Aumento do salário mínimo (SMIC) e dos salários da função pública. Redução do tempo de trabalho e aumento de direitos sociais. Integração do Partido Comunista Francês no governo. Isto gerou esperança à esquerda europeia. Mas também alarme nos mercados e nos EUA, além de grande pressão internacional, sobretudo de Bonn e Washington.
Dois anos depois, em 1983, a economia francesa entrou em crise. Inflação galopante, saída de capitais, défice comercial. Pressões do Bundesbank alemão e da Comunidade Europeia. Mitterrand foi então obrigado a fazer um recuo histórico, conhecido como a “viragem do rigor”. Congelamento de salários, cortes no orçamento, fim das grandes nacionalizações. A esquerda socialista abandonou na prática o programa comum com os comunistas. Começava a agonia do modelo social-democrata intervencionista à francesa, que resistira mais que os outros à lógica neoliberal global. E o custo disso hoje? O que está a “custar caro” hoje à França tem raízes nesse período. O desencanto com a esquerda tradicional abriu espaço para movimentos populistas, protestos (coletes amarelos), e o crescimento simultâneo da extrema-direita (Le Pen) e da esquerda radical (Mélenchon). O eleitorado operário e popular migrou em grande parte para o voto anti-establishment, sobretudo à direita.
O Processo Revolucionário = PREC
O dia 25 de abril de 1974 em Portugal acordou com um golpe militar. Inicialmente não foi um golpe comunista. O Movimento das Forças Armadas (MFA) que derrubou a ditadura do Estado Novo não era um movimento comunista nem pró-soviético à partida. Era um grupo heterogéneo de oficiais de baixa e média patente, desgastados com a guerra colonial (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau), e que desejavam democratizar o país e acabar com os conflitos armados nas colónias.
No entanto, após o golpe, diversas forças políticas – incluindo o Partido Comunista Português – tentaram influenciar o rumo do processo revolucionário. O Partido Comunista Português (PCP), liderado por Álvaro Cunhal, teve, de facto, um papel muito ativo e ganhou um peso significativo no Verão Quente de 1975, especialmente no controlo de sindicatos, meios de comunicação e algumas unidades militares. Neste período, houve receios reais de uma viragem pró-soviética em Portugal, especialmente entre os EUA e outros países da NATO.
A URSS não planeou nem promoveu o golpe, mas aproveitou-se do momento. A União Soviética não esteve por trás do golpe militar, mas observou os acontecimentos com atenção e apoiou, a partir de certa altura, o fortalecimento do PCP e dos movimentos de libertação em África (como o MPLA em Angola, o PAIGC na Guiné-Bissau e a FRELIMO em Moçambique), todos eles de orientação marxista-leninista. Com o recuo das forças coloniais portuguesas, a URSS viu aí uma oportunidade estratégica de alargar a sua influência num continente rico em recursos e importante no xadrez da Guerra Fria.
É verdade que, em 1974-75, os EUA estavam enfraquecidos pela guerra do Vietname, que culminaria com a queda de Saigão em abril de 1975. Esse contexto global permitiu uma "última lufada de ar fresco" para o internacionalismo comunista. Foi um momento de ascensão do socialismo em várias frentes: Angola, Etiópia, Nicarágua, Afeganistão (pouco depois, em 1979). A URSS parecia estar em expansão. No entanto essa maré mudou radicalmente. Com o fim da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim (1989) e o colapso da União Soviética (1991), o projeto comunista internacional perdeu fôlego, e muitos dos regimes africanos anteriormente aliados de Moscovo entraram em crise ou adaptaram-se a novas formas de governação.
Vamos então explorar os bastidores do período mais tenso da Revolução dos Cravos: 1974-1975, quando Portugal esteve à beira de uma viragem comunista, com impactos internos e internacionais profundos. Este período ficou conhecido como o "PREC" (Processo Revolucionário em Curso). O ponto alto do perigo comunista em Portugal ficou conhecido por “Verão Quente de 1975”. O Partido Comunista Português (PCP), liderado por Álvaro Cunhal, era o único que estava bem preparado para aproveitar o colapso do regime. Era o partido mais organizado, com forte implantação nos sindicatos, movimentos operários e classes populares urbanas. Tinha ainda grande apoio no setor cultural e intelectual. Rapidamente começou a ocupar posições-chave na estrutura provisória do novo regime, inclusive no Governo Provisório, onde Álvaro Cunhal chegou a ser ministro sem pasta.
Dentro do MFA, formaram-se tendências, com os militares alinhados com a esquerda revolucionária. A "Esquerda Militar", representada por oficiais como Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Gonçalves e Diniz de Almeida, era favorável a um modelo socialista próximo do bloco soviético. Promoveram nacionalizações em massa (bancos, seguradoras, indústrias) e reformas agrárias radicais, sobretudo no Alentejo. O COPCON (Comando Operacional do Continente), chefiado por Otelo, ganhou poderes extraordinários e atuava como uma espécie de "polícia política revolucionária".
Os partidos moderados – nomeadamente o PS, de Mário Soares, e o PPD de Sá Carneiro, atual PSD) – começaram a temer um desvio autoritário de tipo soviético. A Igreja Católica, até então recuada, passou a opor-se ativamente ao avanço comunista, especialmente nas zonas rurais do Norte do país. Os Estados Unidos, era tempo de Henry Kissinger como Secretário de Estado, e Frank Carlucci como Embaixador em Portugal, viram com grande preocupação a possibilidade de um "Chile ao contrário". Em vez de um governo socialista derrubado pela direita (como Allende), uma democracia liberal afundada por uma viragem comunista. O dia 24 de janeiro de 1975 assinala a entrada oficial de Carlucci ao serviço em Lisboa, com a apresentação das credenciais, apesar de a sua nomeação datar de dezembro do ano anterior. Em pleno período revolucionário, Frank Carlucci vai seguir de perto o Verão Quente de 75, acompanhando o percurso de políticos como Mário Soares, com quem estabelece uma relação de amizade, entre outros. Abandona as funções a 5 de fevereiro de 1978, mas mantém várias ligações a Portugal, nomeadamente de carácter económico, das quais se destaca a EuroAmer com Artur Albarran. Portugal era um membro da NATO, com uma base militar estratégica nos Açores. Há relatos de que os EUA, através da CIA, financiaram discretamente partidos moderados (como o PS e o PPD) e apoiaram logisticamente movimentos de resistência ao PCP.
Em novembro de 1975, militares alinhados com a esquerda radical tentaram um golpe para consolidar o poder revolucionário. O golpe foi neutralizado por forças moderadas do MFA, lideradas por Ramalho Eanes, Jaime Neves e outros oficiais democráticos. Este episódio marcou o fim do PREC e a derrota do projeto comunista em Portugal. O PCP perdeu influência no governo, os partidos moderados consolidaram-se e a democracia parlamentar avançou com a Constituição de 1976. O 25 de Novembro de 1975 salvou a jovem democracia portuguesa e marcou o fim da “lufada de ar fresco” comunista na Europa Ocidental. Depois disso, o PCP entrou em declínio eleitoral, e o país integrou-se no modelo liberal europeu (CEE, depois UE).
terça-feira, 8 de julho de 2025
Cultura de honra
O espírito de uma cultura de honra é sempre um foco de tensões. Há uma tensão cultural profunda entre os dois sistemas de valores: o do individualismo igualitário que marcou a modernidade europeia fruto do Iluminismo e da laicização progressiva das instituições; e o do coletivismo hierárquico e identitário presente em muitas culturas orientais, especialmente em contextos de diáspora.
A cultura de honra -- típica de sociedades tribais e fortemente comunitárias, que valorizam a reputação, a virilidade, a família e a lealdade ao grupo -- é mais notada quando releva a resposta de uma comunidade que se sente ofendida pelo "Outro". Uma das conquistas que o iluminismo imprimiu à cultura europeia foi a transferência para o poder do Estado de dirimir esses diferendos entre grupos desavindos.
A cultura da dignidade ocidental tende a delegar conflitos ao Estado e a promover a tolerância e a negociação civilizada, mesmo quando isso exige engolir ofensas pessoais. Mas nos últimos anos chegou uma coisa nova ao Ocidente: o culto da vitimização como capital simbólico do encorajamento da empatia e da proteção dos “oprimidos”. Sendo uma causa que foi abraçada por uma elite académica bem intencionada, contudo, tem sido instrumentalizada por quem não partilha esses valores, especialmente quando a cultura de honra interpreta a tolerância como fraqueza, e a vitimização como tática de manipulação.
As elites ocidentais atualmente sentem-se culpabilizadas historicamente. E por isso evitam exercer a autoridade com medo de serem acusadas de racistas. Ora, isso tem minado a confiança social, fragilizando a autoridade do Estado como hospedeiro de hóspedes que não respeitam as leis desse Estado. É o que alguns sociólogos conservadores denominam por "doença sociológica das periferias urbanas".
A ironia trágica é que os europeus, ao projetarem um universalismo ético, acabaram baixando as defesas institucionais. E ao acolherem populações de cultura de honra, sem exigir contrapartidas reais de integração, criaram zonas de tensão cultural crónica que se estenderam por gerações. Norbert Elias, na sua obra – O Processo Civilizacional – descreve a longa jornada europeia de internalização da disciplina, o autocontrolo, a delegação da violência nas mãos do Estado, a valorização da cortesia e da vergonha em vez da honra. Isso contrasta com culturas em que a honra é externa, ou seja, reside no olhar dos outros e deve ser defendida, se necessário, com sangue. A Europa secularizou e refinou os seus mecanismos de controlo da violência. A cultura de honra muçulmana (ou de outras sociedades tribais) funciona com outra lógica: é mais importante vingar uma irmã desonrada do que levá-la ao terapeuta. Num contexto europeu onde o autocontrolo é rei, essa lógica parece bárbara, mas para o portador dessa cultura, ela é nobre.
Emmanuel Todd – com a sua antropologia das famílias – estudou os modelos familiares que estão por trás das ideologias. Ele nota que o Islão sunita, especialmente em sociedades árabes e afegãs, favorece estruturas patrilineares, endogâmicas e autoritárias. Já a Europa do Norte favorece famílias igualitárias e individualistas. O multiculturalismo europeu falhou ao presumir que valores familiares e educacionais poderiam ser adaptados por osmose. Em vez disso, o gueto cultural reprodutivo persistiu, inclusive no seio da segunda ou terceira geração, que se radicalizou mais ainda, buscando nas mesquitas uma identidade sólida que a sociedade de acolhimento não oferece.
Bernard Lewis debruçou-se sobre o ressentimento histórico. No célebre “What Went Wrong?”, explica o ressentimento do mundo islâmico como reação ao declínio de uma civilização que já foi hegemónica. O contacto com o Ocidente moderno (militarmente superior, culturalmente secularizado) foi vivenciado como humilhação. A migração muçulmana para a Europa não é só económica, é também simbólica: entrar na “casa do inimigo vitorioso”. Daí que muitos muçulmanos não integrem a cultura do anfitrião, mas sim a desafiem ou se refugiem na sua própria. A cultura de honra reage à humilhação com orgulho. O discurso europeu da tolerância parece, a certos olhos, humilhante e frouxo, não inspirando respeito.
Amin Maalouf, escritor libanês francófono, escreveu "As Identidades Assassinas", onde alerta que identidades fechadas e absolutas são perigosas. Ele defende a ideia de identidades múltiplas -- ser muçulmano, francês, árabe, europeu, simultaneamente. O ideal é atraente, mas falha na prática quando a cultura de origem impõe lealdade total ao grupo étnico ou religioso, punindo o “traidor” que se ocidentaliza. A cultura europeia, por outro lado, dá liberdade para romper com a origem, o que muitas vezes é visto como apostasia, literal ou simbólica.
Em "A Tirania da Penitência", Pascal Bruckner acusa a Europa de cultivar um sentimento de culpa histórico (pela colonização, pelo racismo, pelo Holocausto), que a torna psicologicamente indefesa. Ela perdoa a todos, mas não a si mesma. Essa disposição penitente casa mal com uma cultura de honra, que não se autocritica da mesma forma. Resultado: a Europa baixa as defesas, enquanto seus críticos levantam os punhos. A vitimização muçulmana muitas vezes é absorvida de forma acrítica, mesmo quando camufla projetos hostis à liberdade de expressão ou igualdade de género.
Em "Submissão", Michel Houellebecq imagina uma França futura governada democraticamente por um partido islâmico moderado, numa aliança entre uma elite laica cansada e um Islão com energia espiritual. O protagonista, um intelectual ateu, cede ao Islão não por convicção, mas por vazio interior. A decadência espiritual da Europa pós-cristã abre espaço para uma religiosidade mais vigorosa. O Islão oferece sentido, comunidade, disciplina -- o que muitos europeus perderam. A questão não é só demográfica, mas existencial: o Islão sobrevive ao Ocidente porque ainda acredita em algo. O multiculturalismo clássico europeu baseou-se na ideia de que diferentes culturas poderiam coexistir lado a lado num mesmo território, sem que fosse necessário exigir plena assimilação. Essa política partiu de uma boa intenção, mas não previu a persistência de valores incompatíveis com o ethos europeu (liberdade de expressão, igualdade de género, laicidade etc.).
A alternativa é o interculturalismo exigente, baseado em regras claras de convivência não negociáveis (constituição, laicidade, igualdade de direitos); Reconhecimento limitado da diversidade, sem exceções culturais para práticas regressivas (mutilação genital, véu integral, casamentos forçados); Exigência de língua, trabalho e escolarização como condição para residência estável. Exemplo: A Dinamarca revogou parcialmente o multiculturalismo e exige que os imigrantes aprendam dinamarquês, trabalhem, e que seus filhos frequentem creches públicas para socialização precoce com os valores locais. Laicidade ativa e não envergonhada. A França, mesmo com seus problemas, é um caso de resistência laica ativa. A laïcité não é neutralidade passiva, mas uma afirmação positiva do espaço público livre de símbolos religiosos ostensivos, especialmente em escolas e instituições públicas. Isso contraria tanto a cultura de honra (que exige visibilidade e controlo do feminino), quanto a cultura da culpa europeia (que teme parecer islamofóbica). A solução é a firmeza legal sem retórica xenófoba. Reeducar a opinião pública ocidental para perceber que defender os próprios valores não é racismo -- é o dever de qualquer civilização que se quer viva.
A integração real só acontece se for promovida desde a infância -- nas escolas e nos bairros, e não apenas em discursos políticos ou cursos para adultos. Isso significa currículos que transmitam valores civis europeus com firmeza, sem complexos; Identificação precoce de zonas de segregação cultural onde a lei do Estado não entra (sharia informal, pressão de clãs, criminalidade organizada); Combate à ideologia da vítima eterna -- muitos jovens muçulmanos crescem convencidos de que o Ocidente lhes deve tudo, e de que toda a crítica à sua cultura é opressiva. Não se trata de militarizar bairros ou hostilizar comunidades, mas sim de recuperar a autoridade do Estado nas zonas onde ela foi substituída por “autoridades paralelas”: clérigos, líderes de gangues ou chefes familiares. Isso exige Polícia bem treinada e presente.
É necessário romper com a linguagem anestesiante que impede o diagnóstico. Quando um político, um professor ou um jornalista se recusa a nomear o problema por medo de ser acusado de racismo, a verdade desaparece do debate público -- e o espaço é ocupado por extremistas. A coragem é dizer que há valores ocidentais inegociáveis (igualdade homem/mulher, liberdade de crítica religiosa, separação entre fé e Estado); Que nem toda cultura é equivalente -- algumas práticas são objetivamente regressivas; Que a integração é um dever mútuo -- não um direito unilateral.
A Europa está entre dois fogos. Um universalismo culpado que enfraquece a coesão cultural; Uma pressão identitária vinda de fora, que explora as fraquezas morais da sociedade de acolhimento. A resposta não pode ser o fechamento reacionário, nem a rendição multicultural. Deve ser a afirmação firme e justa de uma civilização aberta, mas não indefesa. A firmeza laica é essencial, mas precisa vir acompanhada de inclusão real (trabalho, escola, segurança). O laboratório multicultural mais permissivo do Reino Unido também falhou com a autorização de práticas comunitárias paralelas (inclusive conselhos com base na sharia). Guetização étnica e religiosa (zonas em Birmingham, Londres, Luton); Tolerância a líderes comunitários reacionários, em nome da “diversidade”; Recuo da autoridade do Estado, permitindo tribunais paralelos baseados na sharia. Lição: O multiculturalismo laissez-faire fragiliza o contrato social, pois aceita padrões morais contraditórios no mesmo território.
A Alemanha, por sua vez, teve um acolhimento massivo com resultados ambíguos. O modelo apesar de economicamente funcional, foi culturalmente tímido com o acolhimento de mais de 1 milhão de refugiados em 2015. Falhou com a negação inicial da dimensão cultural do problema -- o famoso “Wir schaffen das” (“Nós conseguimos”) de Merkel falhou em prever a resistência interna. Tolerância a zonas de baixa assimilação cultural (mesquitas ligadas à Turquia, por exemplo). Isso levou a choques frequentes com normas islâmicas sobre género, sexualidade e autoridade familiar. Lição: A integração económica é indispensável, mas não substitui a clareza moral sobre os valores da sociedade anfitriã.
A Suécia veio a revelar-se uma grande surpresa pela negativa. O paraíso dos bem intencionados virou alerta europeu. Era um país com valores humanistas fortes, generoso em acolhimento. Teve uma grande recepção a refugiados e a imigrantes do Médio Oriente. Agora tornou-se um dos países com maior número de tiroteios per capita na Europa. Os suecos meteram a cabeça na areia e não viram os problemas culturais a lavrar no dia a dia. Jornalistas e políticos evitavam ligar criminalidade a imigração. E não tardou uma explosão de gangues juvenis de origem estrangeira. As políticas de habitação desastrosas estiveram na base da criação de guetos. Ora, a ascensão da extrema-direita não se fez esperar por muito tempo. A bondade sem lucidez é combustível para o colapso da coesão social.
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Pessimismo antropológico
O pessimismo antropológico, a ideia de que a natureza humana é inclinada ao egoísmo, à violência ou à irracionalidade, tem fama de ser imputado a gente conservadora de direita. Mas isso é um mito, não é monopólio exclusivo da direita conservadora. Ele aparece tanto na esquerda como na direita, embora com motivações e expressões diferentes. Se o ser humano é naturalmente mau ou fraco, então precisa de instituições fortes para contê-lo. Desde Hobbes que vários filósofos defendem, de formas diferentes, que o ser humano precisa de freios, seja pela autoridade do Estado, da Igreja, ou das tradições.
Cornelius Castoriadis (1922–1997) - Autonomia e tragédia – Pessimismo histórico-filosófico. Obra principal: A Instituição Imaginária da Sociedade. Ideia-chave: As sociedades são criações imaginárias, mas muitas vezes caem em regimes de heteronomia, isto é, se submetem a poderes exteriores que elas mesmas criaram. A liberdade é uma exceção. A maioria das sociedades prefere a servidão voluntária, o conformismo e o medo da autonomia. Frase ilustrativa: “A sociedade não quer ser livre.”
Michel Foucault (1936–1984) (com reservas) – Crítica do poder – Pessimismo estrutural. Embora não se possa classificá-lo como "pessimista antropológico" no sentido clássico, Foucault mostrou como o poder está em toda a parte, infiltrado nas instituições, nas práticas e no discurso. A sua visão do sujeito como produzido por dispositivos de poder pode ser lida como um pessimismo estrutural sobre a liberdade humana. A confiança na razão, na ciência e no progresso é desmontada nas suas genealogias (prisão, loucura, sexualidade).

domingo, 6 de julho de 2025
Os neurónios-espelho
Na questão dos neurónios-espelho, pergunta-se se somos compassivos para com o outro, ou para nós mesmos. "No que estavas a pensar quando te atiraste ao rio para salvar a criança? "... "Eu não estava a pensar, quando dei por mim já me tinha atirado". De qualquer forma, hoje, os especialistas dizem que se sobrevalorizou demais os neurónios-espelho. Temos aqui várias camadas: neurociência, ética, psicologia evolutiva, e até filosofia moral. Vamos por partes. Os neurónios-espelho o que são e porque fascinaram tanto?
Descobertos nos anos 1990 por Giacomo Rizzolatti e colegas, os neurónios-espelho foram inicialmente observados em macacos, disparando tanto quando o animal executava uma ação como quando observava outro a fazê-la. Em humanos, acredita-se que estejam ligados a processos como: imitação; aprendizagem por observação; empatia (ou seja, a capacidade de sentir com o outro). Durante algum tempo, houve um entusiasmo quase messiânico com os neurónios-espelho como se fossem a chave da empatia, da linguagem, da arte, da cultura, e até da moralidade. Hoje em dia, os especialistas reconhecem que a importância dos neurónios-espelho foi sobrestimada. A evidência empírica direta em humanos é escassa porque não podemos enfiar elétrodos nos cérebros como nos macacos.
Há empatia e moralidade mesmo em pessoas com alterações nas áreas ligadas ao sistema espelho (ex.: autismo, psicopatia), o que mostra que o sistema espelho não explica tudo. Ou seja: não são os "neurónios da empatia" nem os "neurónios do altruísmo". No máximo, facilitam certos comportamentos sociais, mas não os determinam.
Alguém que se atira instintivamente ao rio para salvar uma criança mostra o que muitos chamariam de “impulso moral automático”. A pessoa não racionaliza, apenas age. Mas então por que age? Pela criança? Pelo choque de imaginar-se no lugar da criança? Por um impulso aprendido na cultura? Por não suportar a ideia de si mesmo a não agir? Estas questões foram tratadas, por exemplo, por David Hume (empatia e sentimentos morais), Emmanuel Levinas (a alteridade como fundamento da ética), e mais recentemente por neurocientistas morais como António Damásio (o papel da emoção na decisão moral). Na verdade, muitos autores sugerem que a empatia começa no eu, ou seja, sentimos pelo outro aquilo que imaginamos que nós próprios sentiríamos. Isto levanta uma dúvida ética: será a compaixão verdadeira, ou uma forma de egocentrismo projetado?
Portanto: A ação instintiva do tipo "saltei sem pensar" não precisa de neurónios-espelho para acontecer. Pode resultar de uma combinação de memória emocional, valores internalizados, evolução biológica (proteger crias da espécie), e sim, talvez também um sistema espelho que ativa de forma rudimentar. A ideia de que somos compassivos com o outro ou conosco é uma falsa dicotomia. Talvez o que nos move seja a incapacidade de dissociar o sofrimento do outro da possibilidade do nosso próprio sofrimento. Podemos estar a agir tanto por compaixão como por autoidentificação involuntária. E talvez isso baste para que o bem seja feito, mesmo sem a mediação racional ou a glória dos neurónios-espelho.
Joshua Greene é uma das vozes mais influentes da chamada neuroética contemporânea. Filósofo e psicólogo experimental em Harvard, Greene estuda como fazemos julgamentos morais e como o cérebro lida com dilemas éticos, combinando neuroimagem, psicologia moral e teoria filosófica. Na sua obra mais conhecida, "Moral Tribes: Emotion, Reason, and the Gap Between Us and Them", Greene propõe que há dois sistemas de processamento moral no cérebro humano: o "sistema automático" (emocional, rápido, intuitivo) que evoluiu para lidar com dilemas sociais de pequena escala dentro da tribo. É aquele que nos faz "saltar ao rio" sem pensar. Está ligado a áreas cerebrais como a amígdala e o córtex cingulado anterior. Responde bem a situações com rostos, sofrimento visível, proximidade emocional.
O "sistema não automático, pensado" (racional, deliberativo, que mede as consequências) evoluiu mais tarde, com a linguagem, cultura e instituições. Entra em ação quando temos tempo para ponderar prós e contras, calcular consequências. Está associado ao córtex pré-frontal dorsolateral. É o que usamos, por exemplo, para decidir entre salvar uma criança ou cinco num dilema de experiência de pensamento. Greene argumenta que, no mundo moderno, com tribos que se cruzam, culturas que se chocam, e desafios globais -- o sistema automático já não chega. Precisamos da razão, da análise imparcial. Precisamos de um "utilitarismo pragmático". Greene não rejeita os mecanismos empáticos, mas é crítico quanto à sua limitação estrutural.
Para Greene, os neurónios-espelho e os sistemas empáticos são parte desse holofote (úteis, mas injustos se usados como única base moral). Se sou compassivo com o outro ou comigo mesmo, Greene diria: O sistema automático não distingue bem. O sofrimento alheio ativado no nosso cérebro é sentido como nosso (aí entra a ideia de "neurónios-espelho"). Mas isso não é suficiente para uma ética global. Para sermos verdadeiramente morais num mundo interconectado, precisamos de sair de nós mesmos com esforço deliberado. Saímos da empatia instintiva para praticar a justiça racional. Greene propõe que só com razão moral deliberativa, acima da intuição, conseguimos lidar com dilemas éticos de larga escala. Ele não despreza a empatia, mas quer complementá-la com algo mais justo: um utilitarismo reflexivo e consciente.
sábado, 5 de julho de 2025
Exemplos de acordos de paz exemplares
O trabalho de pacificação também tem de incidir sobre os radicais de dentro, que consideram o pacificador como traidor. Veja-se o que aconteceu a Yitzhak Rabin. E esse é talvez o obstáculo mais trágico e estrutural em qualquer processo de paz: os inimigos da paz não estão apenas do outro lado. Estão também dentro de casa. Yitzhak Rabin, primeiro-ministro israelita, general e herói de guerra, foi assassinado por um judeu israelita, religioso e ultranacionalista, que o considerava um traidor da pátria por ter assinado os Acordos de Oslo com os palestinianos, dando aquele aperto de mão a Yasser Arafat que ficou para a História.
Esse assassinato, em 1995, por um fanático chamado Yigal Amir, não foi apenas um ato individual, mas o sintoma brutal de uma lógica que ainda hoje vigora em muitas frentes, em que "a paz não é aceitável se significa ceder, reconhecer ou humanizar o outro." Esse tipo de fanático não teme o inimigo externo, teme o pacificador interno, porque ele desmonta a narrativa totalizante, e quebra a dicotomia identitária de “nós puros contra eles perigosos”.
E é assim porque s pacificadores são vistos como traidores. Porque ameaçam a identidade de trincheira. O radical vive da lógica binária. O pacificador introduz nuances, memória, escuta, e isso é visto como uma fraqueza ou infiltração. Porque o pacificador desloca o centro da narrativa. Se a narrativa dominante é “nós somos as vítimas absolutas”, então reconhecer as dores do outro soa como uma heresia. Para o fanático, toda empatia é suspeita. Rabin, era um general, tinha autoridade nacional. A sua conversão à paz custou-lhe a vida porque se tornou um líder credível e respeitado. E o radical sabe que a credibilidade é a sua maior fraqueza.
Entre palestinianos, também surgem acusações violentas de traição contra quem tenta negociar ou moderar posições. Líderes da OLP foram acusados de “vender a causa”. Intelectuais ou artistas que tentam construir pontes com israelitas são ameaçados ou silenciados. Nas redes sociais, a palavra “normalização” (isto é, dialogar com o outro lado) tornou-se insulto. A tarefa do pacificador é árdua. Yitzhak Rabin disse, pouco antes de morrer: "A paz é feita com inimigos, não com amigos." E ao dizê-lo, assinou não só um tratado — assinou a sua própria sentença, selada pelo medo que a paz provoca nos que vivem do conflito.
Tudo isto para lembrar quão importantes são os valores sagrados dos povos para a paz entre o sacrossanto "nós/eles". A paz verdadeira nunca se constrói contra os valores sagrados dos povos, mas a partir deles. Se não reconhecemos o que é sentido como sagrado pelo outro — na terra, na memória, na língua, na dor, na promessa — então continuamos a falar de paz como técnica, não como reconciliação profunda.
Líderes carismáticos -- como Hussein da Jordânia, Martin McGuinness, Ian Paisley (e depois Peter Robinson), Viljoen, Mandela -- não negaram o conflito, não esconderam o passado, nem apagaram as cicatrizes. Eles fizeram algo infinitamente mais difícil e mais grandioso: transcenderam sem trair. Rei Hussein da Jordânia, um monarca do deserto, que perdeu a Cisjordânia e viu o seu reino pressionado por todos os lados, mas que nunca deixou de buscar uma convivência com Israel, fez a paz com os olhos nos mortos (como quando foi pessoalmente ao funeral das crianças israelitas mortas por um soldado jordano). Disse à mãe: «Ajoelho-me perante Deus e peço perdão em nome de todo o povo jordano.» Foi um gesto sem precedentes. Um rei a pedir perdão. E ali se selou a paz entre Jordânia e Israel, não nos papéis, mas no coração.
Martin McGuinness e Ian Paisley / Peter Robinson -- De um lado, McGuinness, ex-comandante do IRA; do outro, Paisley e depois Robinson, unionistas duros, protestantes, que viam os católicos como ameaça existencial, aceitaram sentar-se, sorrir, e governar juntos. Eram chamados de "chuckle brothers" (irmãos da gargalhada). Isso foi muito mais do que política: foi coragem emocional. McGuinness, ao morrer, foi homenageado por muitos dos que antes o temiam. Porque escolhera a paz não como capitulação, mas como destino.
Constand Viljoen e Nelson Mandela -- Viljoen era general, ícone dos afrikaners armados. Mandela, o prisioneiro libertado, símbolo da luta negra. Viljoen tinha armas, apoio militar, podia ter lançado uma guerra civil para proteger o apartheid. Mas foi falar com Mandela, olhos nos olhos, e saiu convencido. Mandela, por sua vez, compreendeu que a reconciliação não exigia apagar o passado, mas dar-lhe um sentido novo. Pediu que os inimigos fossem protegidos, não punidos. E o mundo inteiro viu, com espanto e reverência, uma nação renascer sem se banhar em vingança.