segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A húbris trumpista no tempo das novas redes sociais



No Egito, Moisés, começou por liderar uma rede social que comunicava de porta em porta. Isto é só para dizer que as redes sociais remontam ao tempo da passagem das trevas para a luz. A questão que me traz é que poucos foram aqueles que souberam reverter as redes da luz para as trevas como fizeram os nazis na década de 1930. Os nazis não só criaram a sua própria rede propagandística (rádio, imprensa, organizações juvenis, rituais públicos), como neutralizaram redes rivais (sindicatos, partidos, imprensa livre, movimentos religiosos independentes) de forma sistemática e total. Esse “golpe” não foi apenas repressivo, mas substitutivo. E agora? O que se está a passar na América com Donald Trump a Presidente?

No presente, Trump segue a lógica de concentração da narrativa e deslegitimação das redes concorrentes. Controla a imprensa, restringe influenciadores não alinhados, e modela todo o ecossistema mediático para reforçar a narrativa oficial. É claro que Putin já faz o mesmo há mais tempo. Manipula redes mediáticas, reprime ONGs e assassina opositores, mantém um “cinturão” de desinformação interna e externa.  No entanto, Trump quer fazer passar a ideia de que não controla as redes como num regime autoritário. Tenta criar um ecossistema mediático paralelo (Fox News, Truth Social, podcasts, influenciadores) e minar a confiança no sistema informativo tradicional. Apesar de tudo não tem o monopólio absoluto sobre os canais como teve Hitler. Trump opera em contextos onde a multiplicidade de canais ainda persiste e teima sobreviver.

Trump opera num país que não perdeu hegemonia, mas sim parte do consenso interno. Hitler criou um sistema totalitário: um partido único que controlava sindicatos, associações de juventude, imprensa, cultura, educação, religião (na medida possível). Rede centralizada e exclusiva. Por outro lado, o Partido Comunista Chinês funciona como rede única, todos os canais (digitais, impressos, televisivos e educacionais) são vigiados e controlados. O espaço para redes independentes é quase nulo. E Putin mistura controlo estatal e tolerância seletiva a redes “neutras” ou alinhadas. A oposição independente é marginalizada, ou eliminada. Ainda assim espera-se que Trump esteja mais distante de Hitler, porque depende de liberdade de imprensa para existir, embora a ataque constantemente. Propaganda e mito são as fundações dos ditadores. Narrativa de pureza racial e destino histórico; uso de espetáculo visual e ritual político como cimento da rede.  “Make America Great Again” [MAGA] é o "slogan-mito": Apelo emocional a um passado idealizado.

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No tempo de Hitler, um dos alvos de ataque foi a rede bancária dos judeus, uma rede poderosa que já vinha do tempo dos Templários. Os seus condicionalismos de comerciantes ambulantes, para além da seleção de um certo tipo de inteligência, deram-lhes uma sabedoria como ninguém. E isso foi-lhes fatal na mente paranoica de Hitler e seus quejandos nazis. Mas a rede bancária europeia tem raízes medievais antes dos Templários, mas os Templários foram, de facto, um marco. Criaram um sistema de letras de câmbio que permitia a um peregrino depositar dinheiro num Castelo Templário em Paris e levantá-lo em Jerusalém. Essa prática, ao reduzir o risco de assaltos, criou uma confiança transnacional, algo muito raro no período medieval.

Quando a Ordem dos Templários foi destruída no século XIV, parte desse know-how financeiro espalhou-se para outras redes. Foi o caso das Casas Bancárias de famílias italianas como os Médici, os Bardi e os Peruzzi. Mas as famílias judaicas não desapareceram. Atuavam secretamente como banqueiros, por razões óbvias. Com mobilidade forçada, devido às perseguições, famílias judaicas atuavam em rotas comerciais longas. Daí a importância do fomento da literacia no seu seio, com ênfase na alfabetização e nos números para a contabilidade e os contratos. O problema é que, no imaginário antissemita europeu, isso foi distorcido numa narrativa de “rede secreta de controlo financeiro”. Hitler absorveu essa fantasia alimentada por falsos documentos. Os Protocolos dos Sábios de Sião deram muito que falar. Foi forjada uma retórica onde o “judeu internacional” era o inimigo invisível que supostamente manipulava governos, mercados e imprensa.

Antes dos Templários (séculos IX–XI) a função de emprestar dinheiro e financiar comércio já existia em feiras medievais com as rotas árabes que circulavam pela Lombardia. Alguns mercadores judeus atuavam como intermediários financeiros por estarem em contacto com várias regiões e línguas. Por isso, a ideia de que “os judeus inventaram os bancos” é um mito que ignora o papel dos árabes e das Casas da Lombardia. Os Templários criaram um sistema bancário transnacional seguro para peregrinos e cruzados com depósitos, créditos e transporte de ouro e prata. Tinham sedes e fortalezas em toda a Europa e no Médio Oriente. Praticavam algo muito próximo da letra de câmbio, antecipando a lógica bancária moderna. Riqueza e influência geram lendas de “tesouros secretos” e “sociedades ocultas”. Foi o que aconteceu depois da dissolução da Ordem dos Templários  que supostamente sobreviveram à dissolução por decreto de Filipe, o Belo, ou Filipe IV de França [1268-1314].

Com o fim da Ordem dos Templários, em 1312, parte das práticas e conexões foi absorvida pelas casas bancárias dos Médici, Bardi, Peruzzi, Fugger. Judeus continuaram ativos como banqueiros em contextos onde cristãos não podiam legalmente cobrar juros, mas o seu papel era muito desigual de país para país. Em muitos casos, serviam apenas como prestamistas locais, não como grandes banqueiros internacionais. Daí que se tenha fixado a ideia do “judeu agiota” como arquétipo negativo, reforçada em literatura e legislação discriminatória.

Em finais do século XVIII a Europa assiste à ascensão dos Rothschild. Família judaica alemã que criou um sistema bancário multinacional com sucursais em cinco capitais europeias (Frankfurt, Londres, Paris, Viena, Nápoles). Financiou governos e grandes projetos, ganhando prestígio e influência. Estratégia empresarial. Casamentos endogámicos para proteger o sigilo foi sistemático. Tornaram-se símbolo do “banqueiro judeu global”, alvo de panfletos antissemitas, mesmo que outras famílias cristãs fossem igualmente poderosas (Baring, Lazard, Morgan).

Os “Protocolos dos Sábios de Sião”, que apareceram em 1903, eram um falso documento criado pela polícia secreta russa, descrevendo um suposto plano judaico para dominar o mundo. Hitler incorporou essa mentira no Mein Kampf e na propaganda nazi. Aproveitou as crises económicas para culpar “o judeu internacional” pela miséria alemã. O regime apresentava todos os banqueiros judeus (e, por extensão, todos os judeus) como parte de uma rede única e malévola, ignorando que muitos judeus eram pobres e que havia banqueiros cristãos igualmente influentes.

Hoje estamos outra vez neste ambiente de teorias da conspiração a coberto do velho chavão da “Nova Ordem Mundial” cm a ideia de que ela é um monopólio judeu secreto. Não passa de uma ficção construída sobre pedaços de verdade, inflacionados e distorcidos. Portanto, é uma narrativa herdada de séculos de preconceito e paranoia. E tudo isto se cruza com o que continuamos a ver nos posicionamentos de trincheira em relação ao que se passa na Palestina. De um lado os remorsos do Holocausto. Do outro lado o antissemitismo exacerbado na forma de anti-sionismo. Ao antissemitismo clássico [Europa, séculos XIX-XX: demonização do judeu como manipulador económico e inimigo interno] junta-se o anti-sionismo contemporâneo que se traduz em hostilidade política ao Estado de Israel. 

Israel conseguiu, em menos de 80 anos, transformar um território pequeno, árido e hostil num polo agrícola, tecnológico e militar de alta performance. Do ponto de vista de quem vive em pobreza crónica (como grande parte da população palestiniana sob bloqueio ou em campos de refugiados), esse contraste é brutal alimentando narrativas simplistas: “Se eles têm tanto e nós tão pouco, só pode ser porque nos roubaram.” Esse tipo de raciocínio é ancestral, porque é mais fácil atribuir o sucesso alheio ao roubo ou a conspirações. Israel beneficiou de redes pré-existentes da diáspora judaica (capital, know-how, contactos internacionais). Isso permitiu acesso rápido a tecnologia, mercados e diplomacia que outros países da região não tinham. Para o palestiniano médio, esta rede é invisível como realidade histórica e visível apenas como mito. E a inveja social como combustível político acaba por se impor. A inveja social (“porque eles têm e nós não”) torna-se mais inflamável quando se conjuga com a questão da identidade dos povos ligada ao binarismo de opressores e oprimidos. Líderes políticos e grupos militantes exploram esse ressentimento para reforçar coesão interna. A desigualdade de resultados entre Israel e Palestina é estrutural e não vai desaparecer a curto prazo. Enquanto isso, qualquer sucesso israelita será lido, por muitos palestinos (e não só), como prova de injustiça. Esse ciclo é alimentado tanto pela realidade das condições de vida como pelo mito conspirativo herdado de outras épocas.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A luta social em que a sua ideologia não se cumpre totalmente na herança



As lutas sociais deixaram marcas profundas. Hoje ninguém questiona direitos como férias pagas, limites de horário de trabalho, sindicatos, ensino público, saúde universal em muitos países. Esses avanços nasceram em grande parte da pressão de movimentos operários. Mas o comunismo, enquanto projeto total, falhou em quase todos os países. A imposição de uma visão rígida da sociedade, sem respeitar a diversidade das aspirações humanas, não podia ser suportada por muito tempo. Mas mesmo nas sociedades capitalistas, e de liberalismo democrático, apesar de o marxismo não ter vingado, ainda assim alguma coisa foi absorvida pelo centro-esquerda e extrema-esquerda, tendo esta um aroma mais trotskista do que estalinista com pendor feminista. É claro que nem nas social-democracias ou regimes liberais e do socialismo democrático seria admissível algum recuo nas conquistas feministas que se iniciaram nos finais do século XIX -- as mulheres poderem votar, estudar e trabalhar independentemente da vontade dos homens.

O comunismo foi uma utopia. Como todas as utopias, almejava a perfeição. Ora, o que caracteriza o mundo humano é a imperfeição. O comunismo prometia a sociedade sem classes, sem exploração. Na prática, ao tentar impor essa perfeição, gerou ditaduras e miséria. Da mesma forma, equacionado como utopia, o feminismo ainda tem um problema para resolver: a violência doméstica. Prometendo a igualdade plena, acaba por forçar um modelo “ideal” de mulher: independente, empoderada, sem contradições. Ora, isso gerou frustração nas mulheres feministas, porque a realidade é sempre mais complexa do que a ideologia. E o risco que se corre tem sido sempre o mesmo:  a transformação numa doutrina moral, em que quem não se encaixa no modelo é misógino.

O comunismo começou como luta contra condições degradantes do trabalho. Mas, quando se extremou no “tudo ou nada”, afastou muita gente. O feminismo, por sua vez, nasceu da luta justa por direitos básicos (voto, educação, liberdade). Hoje, algumas correntes tentam impor uma leitura total da vida social em modo feminista, e isso causa rejeição com a consequente perda de simpatia da maioria, ficando fechado em bolhas ideológicas. O comunismo deixou um rasto de conquistas laborais que ninguém quer perder na eterna luta contra o Capital. E o feminismo, mesmo que lhe aconteça o mesmo e perca força como movimento organizado, as suas conquistas dificilmente terão retrocesso porque a sociedade já mudou estruturalmente. Muitas das suas tensões vêm de dentro: diferentes feminismos, críticas entre mulheres, divergências sobre maternidade, carreira e sexualidade. O comunismo falhou porque quis ser um sistema totalitário. O feminismo corre o mesmo risco. Mas, tal como o comunismo, o feminismo também já deixou conquistas irreversíveis.

Como qualquer ideologia, o feminismo é radical. De qualquer modo, a igualdade de direitos, a autonomia e a liberdade de escolha vão ficar como conquistas sociais permanentes. A bandeira deixa de ser feminista e passará a ser cidadã de direitos. Provavelmente veremos mulheres menos preocupadas em “encaixar no ideal feminista” e mais em viver como quiserem: umas vão querer carreira, outras vão querer constituir família, muitas vão conciliar, e tudo mais naturalizado, mais na ordem natural da biologia. A pressão ideológica diminuirá, a liberdade individual crescerá. A nostalgia de papéis tradicionais já se vê nas correntes mais conservadoras da Europa e dos EUA. Mas essa nostalgia dificilmente vai apagar as conquistas. A igualdade será vista como natural e não como uma  bandeira, com as tensões a dissolverem-se na normalidade.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A experiência de morte iminente


A experiência de morte iminente é um campo que já foi bastante estudado com a designação de "Experiência Quase Morte" [EQM]. Mas continua envolto em debates científicos, filosóficos e culturais. O cerne da questão está na variabilidade da experiência que depende de fatores individuais, culturais e biológicos. O que aparece com frequência são "relatos". Mas nem todas as pessoas que passaram pelas mesmas circunstâncias o referem: "sensação de paz, ausência de dor, dissociação do corpo (a chamada experiência fora do corpo); passagem por um túnel ou movimento em direção a uma luz; encontros com pessoas falecidas ou entidades religiosas; revisão panorâmica de toda a vida já vivida; sensação de ponto de não retorno. 

Apenas algumas pessoas que passaram pela experiência de morte iminente relatam isso. A maior parte não tem memória de experiência alguma, ou só lembram fragmentos confusos. Aspectos hoje revelados pela neurociência apontam para o papel dos fatores individuais que têm a ver não apenas com os traços psicológicos da pessoa, mas também com a influência da sua cultura ligada à religião. As pessoas em diferentes contextos tendem a interpretar a experiência de morte iminente segundo o seu reportório simbólico. Crenças, expectativas e até traços de personalidade influenciam o conteúdo. E experiências anteriores -- passadas nos sonhos durante o sono; ou com aqueles estados alterados de consciência; ou com o consumo de psicotrópicos como o LSD -- podem moldar o que se recorda.

Não há consenso absoluto, mas algumas hipóteses da neurociência são fortes. Atividade anómala do cérebro em hipóxia pode gerar as tais visões do túnel de luz e a sensação de flutuar. Assim como as descargas elétricas da epilepsia no lobo temporal e parietal, que são as áreas cerebrais ligadas à percepção do “eu” e do espaço. E é pela libertação de neurotransmissores e endorfinas que se explica a ausência de dor e de medo, apesar de se estar numa situação limite entre a vida e a morte. Nos casos de paragem cardíaca transitória, há no registo do eletroencefalograma um pico breve de atividade gama. Esta atividade está na base dos estados alterados de consciência.

Quando estas pessoas, que passaram por tal experiência, tentam fazer a recordação do sucedido através de um relato que seja coerente, sabe-se que estes exercícios de memória não são mais do que uma reconstrução em que as lacunas têm de ser preenchidas com passagens extraídas de outros relatos guardados na memória. Portanto, o mistério está no facto de nem todas as pessoas passarem por isso. Alguns relatam experiências “transcendentes” muito consistentes, que os transformam psicologicamente de maneira duradoura a partir desse acontecimento. Há casos de pessoas cegas de nascença que descrevem imagens visuais, algo que ainda é pouco compreendido. Em suma: os relatos dessa experiência, que são de um modo geral muito padronizados, corresponde apenas a uma pequena fatia das pessoas que sobreviveram a uma experiência de morte iminente, geralmente depois de terem sofrido uma paragem cardiorrespiratória, e terem sido reanimados. Contudo, as
 famosas imagens - túnel, luz, revisitação da vida - são padrões frequentes, mas não obrigatórios. Parece haver uma dependência de certo tipo de predisposição cerebral na forma como processa a memória, bem como do estado físico no momento da crise e também do tipo de influência cultural. 

Há uma convergência interessante com as experiências induzidas por substâncias psicodélicas como o LSD, DMT e Ketamina. Estudos recentes mostram que doses de DMT (dimetiltriptamina) produzem experiências muito semelhantes: sensação de separação do corpo e encontros com divindades. Isso sugere que o cérebro tem vias neuroquímicas próprias que, sob certas condições (trauma, hipóxia, drogas), produzem narrativas transcendentes. A Ketamina é usada em anestesia e também em contexto recreativo. Pode gerar a tal sensação de se estar a flutuar fora do corpo e a vê-lo lá fora. Isso está relacionado com o envolvimento de receptores do glutamato  NMDA. Quando se estimulam as áreas temporal e parietal, alguns pacientes relatam sensação de presença mística, de sair do corpo ou rever de forma intensa certo tipo de memórias marcantes da vida da pessoa. São exemplos a sensação de fusão com o universo ou as tais revelações religiosas das tradições ditas do Livro.

Mesmo que seja “apenas o cérebro em colapso”, 
padrões neuroquímicos e elétricos conhecidos, o efeito subjetivo é tão profundo que se torna real na biografia da pessoa. Mesmo que explicável pelo cérebro, ela marca a pessoa como se fosse uma revelação. Culturalmente é moldada pelas crenças de fundo, mas transcende-as ao tocar num medo universal que é a morte. A morte é o fim absoluto, mas o espiritualismo, ao sugerir que a "consciência" não morre, é uma necessidade para dar sentido e esperança. E há um facto inegável: quem passa por isso geralmente nunca mais encara a vida e a morte da mesma forma. Em sociedades ocidentais, a luz e o túnel são frequentes; em sociedades hindus, relatos incluem “funcionários do além” ou divindades locais. Isso sugere que o cérebro preenche o vazio com símbolos culturais.

Mas nem todos relatam as chamadas "experiências de quase morte"Muitas pessoas que passaram por paragem cardíaca não tiveram nenhuma experiência. Se fosse algo “da alma a sair”, seria universal. Agora, isso não significa que as pessoas que relatam essa experiência estejam a inventar ou a mentir. O que acontece ´r que as pessoas procuram traduzir o fenómeno para a linguagem de uma certa maneira.  Apesar das diferenças culturais, os padrões centrais (paz, luz, separação do corpo, revisão da vida) aparecem repetidamente, sugerindo que há algo mais do que pura invenção individual. A questão está no facto de até a ciência ter as suas limitações para explicar todos os fenómenos não só do nosso cérebro como de toda a natureza do Universo físico. Por exemplo, a ciência explica grande parte dos fenómenos como produtos do cérebro, embora alguns casos limite (cegos, consciência sem EEG, perceções verificáveis) permanecem misteriosos. A maior parte desses fenómenos pode ser entendida como fenómeno cerebral, apesar de haver ainda uma minoria de relatos que desafia a neurociência atual, mantendo aberta a questão filosófica e espiritual.


O caso de Pam Reynolds (1991) – o “clássico da neurociência”: ela passou por uma cirurgia de remoção de aneurisma cerebral que envolveu hipotermia profunda, paragem cardíaca e EEG praticamente plano. Ou seja, seu cérebro não deveria estar ativo. O que aconteceu foi que durante o procedimento, ela relatou sair do corpo, descreveu com precisão detalhes da sala cirúrgica, os instrumentos usados e conversas entre médicos. Também descreveu formas geométricas e movimentos que só puderam ser observados de cima, o que parecia impossível de alcançar apenas com visão normal. Após a cirurgia, contou ainda ter visto “luz brilhante e figuras familiares”, típico deste fenómeno. Este caso é citado porque combina consciência verificável com ausência de atividade cerebral detectável, algo que desafia a explicação puramente neurobiológica.


O caso de Anita Moorjani (2006) – ela estava em estado crítico de um linfoma terminal, à beira da morte. Ela entrou em coma e, segundo os médicos, o seu corpo estava falhando completamente. O que aconteceu foi que ela relatou sentir-se totalmente livre da dor e medo, experienciar compreensão profunda da sua vida e das conexões com os outros, e perceber porque estava doente. Apesar do acompanhamento médico não milagroso, o linfoma regrediu rapidamente após a experiência, algo que os médicos não sabem explicar. Este caso é usado como exemplo de transformação física e psicológica duradoura após uma experiência de quase morte, mostrando que a experiência teve efeito real sobre o seu corpo e a sua percepção de vida.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Transumanismo


Transumanismo (abreviado por h+) é um movimento filosófico, ou intelectual, que visa transformar a condição humana com o uso de tecnologias emergentes alcançando as máximas potencialidades em termos de evolução humana, que na sua evolução mais radical, ou seja, pós-humanista, prevê que seja possível transcender o patamar biológico da espécie humana, 
aumentando consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas. Em suma, transcender o envelhecimento e a morte.

Influenciada pelos trabalhos seminais da ficção científica, é a visão de uma humanidade futura transformada. Tem atraído muitos adeptos. Mas também críticos e detratores, sobretudo das religiões e filósofos conservadores de direita. Um transumano é um humano que sofreu transformações visando o tal objetivo da eterna juventude e vida eterna. Eles dividem-se entre os “grinders”, que desenvolvem implantes cibernéticos para aprimorar suas capacidades, e os "biólogos" que fazem experiências genéticos em laboratórios caseiros.


A busca por um elixir da vida e eterna juventude já é tão velha como os primeiros épicos de Gilgamesh escritos em tabuinhas de argila fresca na Mesopotâmia pelos Sumérios. Julian Huxley, neto de T. H. Huxley, um biólogo, foi um dos primeiros a cunhar o termo ‘transumanismo’. E em 1923 o geneticista britânico, J.B.S. Haldane, pega nisso no seu ensaio Daedalus: Science and Future. Grandes benefícios viriam de aplicações das ciências avançadas para a saúde humana biológica e que cada um desses avanços daria início a algo que pareceria algo como o blasfemo ou perverso "indecente e não natural". Em particular, ele estava interessado no desenvolvimento da ciência da eugenia, ectogénese (criação e sustentação de vida num ambiente artificial) e as aplicações da genética para melhorar características humanas, como a saúde e inteligência.

Na década de 1960, é o cientista da computação Marvin Minsky que se debruça sobre as relações entre o ser humano e a inteligência artificial. Ao longo das décadas seguintes, este campo continuou a gerar pensadores influentes, como Hans Moravec e Raymond Kurzweil, que oscilava entre a área técnica e especulações futuristas de estilos transumanistas.

Os primeiros autodenominados transumanistas reuniram-se formalmente no início de 1980, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que se tornou o principal centro do pensamento transumanista. Em 1986, Eric Drexler publicou Engines of Creation: The Coming Era of Nanotechnology, que discutiu as perspetivas para a nanotecnologia e montadoras moleculares, e fundou o Foresight Institute, a primeira organização sem fins lucrativos para tal investigação. No sul da Califórnia a Alcor Life Extension Foundation torna-se um centro para os futuristas. Em 1988, a primeira edição da Extropy Magazine foi publicada por Max More e Tom Morrow. Em 1990, em outra estratégia filosófica, criou a sua própria doutrina particular transumanista, que assumiu a forma dos Princípios do Extropy, lançando os alicerces do transumanismo moderno com uma nova definição. Anders Sandberg, um proeminente académico e transumanista, compilou várias definições. O termo “transumanismo” usado como sinónimo de “aprimoramento humano”. O transumanismo às vezes é confundido erroneamente com “pós-humanismo”.

Uma característica comum do transumanismo e o pós-humanismo filosófico é a visão de uma nova espécie inteligente para onde a humanidade vai evoluir e, eventualmente substituir. O transumanismo, interiorizando a perspetiva evolucionista darwinista, inclui a criação de uma espécie animal altamente inteligente por meio de melhoria cognitiva (ou seja, elevação biológica), numa deriva pós-humana.


quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O exemplo de Roger Scruton – e a falta de gratidão nas pessoas que criticam o Ocidente


Nos últimos meses de vida Roger Scruton foi alvo de vários ataques significativos que lhe causaram tais dissabores que um cancro do pulmão lhe foi fatal seis meses após o diagnóstico. Em julho de 2019 foi-lhe diagnosticado cancro do pulmão, depois de em abril desse ano ter sido demitido do cargo de presidente da Building Better, Building Beautiful Commission, um organismo ligado ao governo britânico, meramente devido a calúnias. Isso ocorreu após a publicação de uma entrevista ao jornal New Statesman, a partir da qual, e em interpretações mal fundamentadas, lhe foram atribuídas afirmações controversas sobre a China e a Hungria, incluindo referências a um “império Soros”. Posteriormente, o jornal veio a retratar-se e a pedir desculpa, corrigindo as perversas e deturpadas interpretações das suas palavras. Precisamente em julho de 2019 o Organismo Públivo reintegrou-o, mas todo o mal já estava feito. Roger Scruton morreu pacificamente em 12 de janeiro de 2020, aos 75 anos, na companhia da família, em Londres. A família divulgou agradecimentos pelo apoio que recebeu nesse período turbulento, ressaltando que esse impulso positivo o ajudou a retomar o trabalho, apesar da doença. No Spectator, em dezembro de 2019, Scruton escreveu uma poderosa reflexão sobre o ano difícil que enfrentara. Escreveu que a aproximação da morte o levou a compreender o valor da vida e a sentir gratidão.

Após cerca de seis meses de luta contra o cancro, Sajid Javid (Chanceler do Tesouro), destacou o trabalho intelectual, que Scruton levou a cabo em prol da liberdade de um conservadoe, que impactou no apoio aos opositores do regime soviético. Timothy Garton Ash (historiador da Universidade de Oxford) descreveu-o como “um homem de extraordinário intelecto, erudição e humor, um grande apoiante dos dissidentes da Europa Central, e o tipo de pensador conservador provocador – por vezes escandaloso – que uma sociedade realmente liberal deveria alegrar-se por ter para desafiá-la.”. Douglas Murray, disse que Scruton era uma das pessoas mais gentis, encorajadoras, ponderadas e generosas que se podia conhecer. Anne Applebaum (historiadora e jornalista) recordou como Scruton, nos anos 1980, a ajudou a organizar o envio de livros para dissidentes da Europa de Leste: “Fui uma das estudantes-correio que os transportou secretamente através da Cortina de Ferro.”


O jornal Diário de Notícias de Portugal publicou uma notícia no dia 12 de janeiro de 2020, referindo que Scruton foi um "filósofo, escritor, professor universitário e conselheiro governamental" que faleceu devido a um cancro após seis meses de combate à doença. Destacou ainda a controvérsia política recente que o envolveu, mencionando sua demissão do cargo governamental por declarações consideradas controversas, que posteriormente foram retratadas, embora ele não tenha reassumido a posição. O Observador publicou, além de uma homenagem filosófica profunda ao seu legado intelectual e estético, um tributo (In Memoriam) que sublinha sua defesa apaixonada dos valores do conservadorismo e beleza, concebidos como elementos essenciais da civilização ocidental.
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Eu fico banzado com a falta de proporção e contexto histórico em certos discursos académicos sobre império, colonialismo e escravatura. É a conhecida seleção parcial do objeto de crítica. Alguns autores concentram-se quase exclusivamente no Ocidente, ignorando ou minimizando que impérios, colonialismos e escravidão existiram de forma sistemática noutras civilizações (Império Otomano, Mongol, Persa, Chinês, etc.), muitas vezes com níveis de violência semelhantes ou até superiores. Focam-se num aspeto do comportamento ocidental. Tiram-no do contexto; põem de parte quaisquer paralelos não ocidentais. E depois exageram o que o Ocidente realmente fez.

É tudo analisado e extraído do contexto histórico. Analisam eventos do passado com critérios morais de hoje, sem considerar que no período histórico em causa, a escravatura ou a expansão imperial eram práticas comuns globalmente e não exclusivas do Ocidente. Mesmo quando as críticas são justificadas, por vezes o discurso é construído como se o Ocidente fosse o único culpado universal, apagando a pluralidade de agentes históricos. Raramente se destaca que o próprio Ocidente, com todas as suas culpas, também foi o berço dos movimentos abolicionistas e das ideias de direitos humanos que depois se tornaram universais. Alguns académicos tratam o imperialismo como uma invenção ou um traço quase exclusivo da Europa moderna, ignorando que a construção de impérios é um fenómeno transversal a praticamente toda a história humana.

Exemplos omitidos: Colonização árabe (séc. VII-XIX) -- expansão pelo Norte de África, Península Ibérica, Médio Oriente e até partes da Ásia e da África Oriental, com forte imposição cultural e religiosa. Colonização japonesa (séc. XIX-XX) -- ocupação da Coreia, Taiwan, Manchúria e grande parte do Sudeste Asiático durante a Segunda Guerra Mundial. Colonização interna russa -- expansão para a Sibéria, Cáucaso e Ásia Central, com deslocamentos forçados. Tráfico de escravos pelos árabes -- escravizaram africanos durante mais de mil anos, com estimativas de milhões de vítimas, incluindo as castrações dos eunucos com elevada mortalidade. Escravatura no Império Mongol e na China imperial -- servidão em grande escala dos povos conquistados. Escravatura indígena na América antes de Colombo -- no continente americano, antes da chegada dos europeus, temos que recordar pelo menos os impérios: Inca e Asteca.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Um mal-estar profundo do Ocidente


O que ajuda a entender a reação nas universidades não é tanto uma “defesa do ataque”, mas sim o foco imediato nas consequências que se seguiram: a resposta militar de Israel em Gaza, que resultou em dezenas de milhares de mortos, em sua maioria civis, segundo a ONU. Ou seja, muitos estudantes (sobretudo no Ocidente) não se concentraram no horror inicial do 7 de outubro, mas sim naquilo que consideraram ser uma resposta desproporcional de Israel.

Para Israel e para a maior parte do mundo, foi visto como um ato de terrorismo brutal, comparado ao 11 de Setembro nos EUA. Para alguns grupos radicais, foi descrito como “resistência”, o que já por si gera uma divisão moral e política profunda. A operação militar de Israel, com bombardeios intensivos, destruição de bairros inteiros e grande número de mortos civis, fez com que grande parte da opinião pública internacional passasse a centrar-se não no ataque inicial, mas sim no sofrimento da população palestiniana. Estudantes universitários tendem a alinhar-se mais com causas contra a opressão colonialista, ou contra o imperialismo. Israel aparece como um “poder ocupante”. Os Palestinianos como “povo oprimido”. Assim, o enquadramento do ataque do Hamas ficou ofuscado pelo foco na crise humanitária subsequente.

O choque moral de ataques terroristas é o que impressiona muita gente. Sobretudo fora do meio universitário. Mas dentro desses movimentos estudantis, a narrativa deslocou-se rapidamente do “ato de terrorismo” para a “resposta desumana”, o que explica porque tantas manifestações pareceram ignorar ou minimizar a atrocidade inicial do 7 de outubro. Resposta desproporcional? Em guerra, após ser atacado, isso não existe. Pedir respostas de guerra contra o terrorismo proporcionais? Que é isso? É a interpelação de muita gente.

Essa expressão -- “resposta desproporcional” -- é uma daquelas que aparece muito em debates internacionais, mas que nem sempre bate certo com o senso comum de quem pensa em guerra: “Se me atacam, eu tenho de responder para eliminar a ameaça, não para equilibrar proporcionalmente as baixas”.

O raciocínio é este: Na lógica militar clássica não existe essa preocupação de “proporcionalidade” no sentido quantitativo (“morreram 1.000 de um lado, logo só podem morrer 1.000 do outro”). Um Estado atacado procura vencer o inimigo e garantir que não volta a ser atacado. No direito internacional humanitário (Convenções de Genebra, ONU, etc.), a “proporcionalidade” não é sobre número de mortos comparáveis, mas sim sobre limitar o sofrimento de civis. Quer dizer: mesmo que o inimigo ataque de forma bárbara, o Estado que responde deve tentar minimizar vítimas civis e não usar força excessiva contra alvos não militares. O ponto sensível é que o Hamas opera dentro de áreas civis em Gaza -- túneis, hospitais, escolas --, tornando quase impossível atingir alvos militares sem atingir civis. Israel afirma que não tem alternativa; críticos dizem que continua a usar força que vai além da necessidade militar. É nesse contexto que surge o discurso de “resposta desproporcional”. Quem fala em desproporção, muitas vezes, não está a negar o direito de Israel se defender, mas a criticar os meios usados e o impacto humanitário, sobretudo quando os números de mortos civis em Gaza cresceram exponencialmente depois de outubro.

A grande fratura é esta: Uns veem "o 7 de outubro" como o “evento fundacional” e tudo o que vem depois como consequência inevitável. Outros quase saltam por cima desse dia e concentram-se apenas no sofrimento em Gaza. Há momentos da história em que sociedades ou grupos parecem perder o sentido elementar da gravidade das coisas, quase como se anestesiassem a consciência. É o que significa a frase: 
“doença moral ou social” Para quem viveu guerras, ditaduras ou terrorismo de perto, o massacre de 7 de outubro soa como um mal absoluto. Já para muitos jovens universitários, que cresceram em ambientes mais protegidos e formados em linguagens de direitos humanos, colonialismo e opressão, a lente muda: eles não relativizam o sofrimento, mas reencenam a realidade num quadro ideológico onde Israel é visto como “opressor” e os palestinianos como “oprimidos”. Nessa ótica, até um ato horrível pode ser racionalizado como “resistência”. Essa deslocação pode ser entendida como uma forma de doença social. Moral: porque relativiza atrocidades se cometidas pelo “lado certo”. Social: porque mostra a força de modas ideológicas que moldam percepções, sobretudo em ambientes universitários.

Montaigne dizia “cada época tem a sua barbárie”. Talvez estejamos a viver uma espécie de barbárie moral invertida: em nome de princípios universais (direitos humanos, justiça), há quem se torne cego ao sofrimento concreto do próximo imediato. O que muita gente sente é um choque entre o senso comum da experiência vivida (o horror é horror, sem justificações) e a racionalização ideológica que abstrai da dor imediata.

Há vários pensadores: filósofos, sociólogos e até alguns escritores que se debruçam sobre a “doença moral ou social” no Ocidente contemporâneo. Eles não usam sempre essa expressão, mas descrevem algo muito semelhante: uma perda de referências éticas, uma anestesia moral, ou uma inversão de valores. Alain Finkielkraut (França) -- fala de uma “idolatria da vítima” na cultura ocidental. Quando alguém é visto como vítima (povos colonizados, minorias, etc.), passa automaticamente a ter legitimidade moral, mesmo que cometa atrocidades. No contexto israelo-palestiniano, isso ajuda a explicar porque tantos relativizam crimes do Hamas: porque enquadram os palestinianos como “as vítimas por excelência”. Pascal Bruckner (França) -- denuncia o que chama de “tirania da penitência”. O Ocidente, por sentir culpa histórica (colonialismo, escravatura, etc.), inclina-se a desculpar qualquer ato cometido por povos vistos como oprimidos. Para ele, isto é uma forma de patologia moral, porque inverte a responsabilidade e acaba por legitimar violências. Roger Scruton (Reino Unido) -- chamava a atenção para a “corrupção da compaixão”: sentimentos nobres são manipulados por ideologias para justificar o injustificável. Scruton via nas universidades ocidentais um terreno fértil para essa confusão moral. Zygmunt Bauman (Polónia/Reino Unido) -- falava de uma “modernidade líquida” em que as referências éticas se dissolvem, e em que os indivíduos vivem numa espécie de vazio moral, facilmente preenchido por slogans ideológicos. Leszek Kołakowski (Polónia) -- lembrava que as utopias políticas, quando absolutizadas, tendem a anestesiar a sensibilidade moral. Em nome da “justiça maior”, aceita-se a injustiça imediata.

Num niilismo prático, tudo se relativiza, nada é absoluto (nem a vida humana). Uma espécie de moral invertida, em que a bondade é atribuída em função da identidade: agressor e vítima; opressor e oprimido. Colocado na sua respetiva identidade, é bom ou mau, independentemente dos seus atos. Um oprimido está sempre do lado do bem, e é bom. O opressor está sempre do lado do mal e é mau. Podem ser sinais de uma fadiga civilizacional de que padecem as gerações de sociedades ricas e seguras, que não passaram pela experiência direta da guerra, ou de atos terroristas. É o que acontece quando uma ou mais do que uma geração desconhece o sentimento da tragédia real.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Demandas e mensagens pró-Palestina nas ruas ocidentais no pós-7 de outubro


Depois do ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 houve várias manifestações de estudantes universitários na América e no Reino Unido. Essas foram, predominantemente, pró-Palestina, e não a favor de Israel. Estudantes montaram acampamentos em várias universidades – Oxford, Cambridge, Liverpool, Edinburgh, SOAS (School of Oriental and African Studies), Manchester, Leeds, Bristol, Sheffield, Newcastle, entre outras – exigindo que instituições e empresas rompessem relações com Israel, como a retirada de investimentos, como demonstrações de apoio à causa palestiniana.
Os protestos incluíam slogans como “divest from genocide” (“retirar investimentos do genocídio”), “end institutional ties with Israel” (“romper laços institucionais com Israel”) e “divest from death” (“desinvestir da morte”), apontando forte posicionamento crítico em relação à política israelita na Faixa de Gaza.
Muitos docentes de certas academias apoiaram os protestos. Centenas assinaram cartas abertas em solidariedade em universidades como Oxford, Cambridge, Edinburgh, Durham e Leeds. Algumas instituições, como Goldsmiths e Trinity College Dublin, chegaram a atender algumas reivindicações, como revisão de política de investimentos e criação de bolsas de estudo. Ocorreram denúncias de aumento de incidentes antissemitas nos campi, como grafites, insultos e outros atos hostis. Grupos judaicos e autoridades alertaram que certas manifestações cruzaram a linha para o antissemitismo, especialmente em conteúdo que glorificava líderes do Hamas ou minimizava os ataques de 7 de outubro.

Na realidade, os protestos foram marcadamente contrários às políticas israelitas e de apoio à Palestina. Não houve manifestações estudantis em defesa de Israel nesse contexto do pós-7 de outubro de 2023. Os protestos foram em massa pró-Palestina, com ações organizadas para pressionar universidades a romper vínculos com Israel, exigir cessar-fogo, e rechaçar o que descreviam como "cumplicidade com crimes em Gaza". Os governos e autoridades manifestaram preocupação em relação à segurança de todos os estudantes, incluindo comunidades judaicas, destacando a necessidade de combater o antissemitismo e, ao mesmo tempo, reforçando a lógica da liberdade de expressão.


Nos Estados Unidos da América, depois do ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, também houve uma onda muito intensa de manifestações em universidades. Assim como no Reino Unido, o movimento foi predominantemente pró-Palestina e crítico de Israel. O caso mais mediático começou em Columbia University (Nova Iorque) em abril de 2024, com estudantes montando tendas no campus pedindo que a universidade desinvestisse de Israel e das empresas ligadas à guerra em Gaza. Esse exemplo espalhou-se rapidamente para dezenas de universidades: Harvard, Yale, MIT, Brown, Princeton, UCLA, UC Berkeley, Stanford, Michigan, Northwestern, entre muitas outras. Em várias universidades, a polícia foi chamada para desmontar acampamentos e prender estudantes, o que aumentou a visibilidade dos protestos.

Muitos protestos foram pacíficos, mas houve incidentes graves: grafites e slogans, slogans interpretados como antissemitas e intimidação de estudantes judeus. Isso gerou forte reação de autoridades universitárias, do Congresso e até da Casa Branca, que condenaram o antissemitismo. Ao mesmo tempo, ativistas pró-Palestina acusaram as autoridades de tentar criminalizar a dissidência e silenciar críticas legítimas a Israel. Audiências no Congresso dos EUA chegaram a chamar reitores de Harvard, MIT e UPenn para responder se “chamar pela morte dos judeus” violava regras de conduta. Episódio que teve repercussão nacional e levou à saída da reitora de Harvard, Claudine Gay.

A administração Biden tentou equilibrar a defesa da liberdade de expressão nos campi com a condenação de discursos de ódio. Governadores republicanos (como Ron DeSantis na Flórida) chegaram a tentar dissolver grupos pró-Palestina em universidades estaduais. A opinião pública ficou dividida: pesquisas mostraram que estudantes e jovens tendem a ser mais pró-Palestina, enquanto a população geral (sobretudo mais velha) manteve maior simpatia por Israel (Pew Research).

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O desconcerto das nações


Já estamos a viver os primórdios de uma Nova Era. À falta de melhor expressão -- “desconcerto de nações”. É é muito provável que a ONU [Organização das Nações Unidas]  tenha chegado ao fim. Pode ser que venha a caber ao atual Secretário Geral [António Guterres] a missão de fechar a porta e vir para casa com a chave no bolso. Ironias à parte, isto evoca o célebre “Concerto das Nações” que emergiu após o Congresso de Viena em 1815. Foi uma tentativa de estabilizar a ordem europeia depois das diabruras napoleónicas. Hoje, o cenário é quase o inverso: multiplicação de polos de poder, erosão de alianças tradicionais, e um enfraquecimento das instâncias multilaterais, como a ONU ou a OMC [Organização Mundial do Comércio]. Em vez de concerto, temos dissonância. Há sinais claros de que estamos nos primórdios de uma Nova Era ainda a decorrer em gestação caótica.

A Guerra na Ucrânia, o conflito do Médio Oriente, o crescente e gradual distanciamento do cada vez mais assertivo Sul Global em relação ao Ocidente -- tem contribuído para a aceleração de um novo realinhamento multipolar. O declínio dos Estados Unidos Hegemónico, num Ocidente cada vez mais virado para dentro, e mais dividido internamente, é a outra face da moeda. As transições tecnológicas e energéticas aceleradas pela Inteligência Artificial está a ultrapassar os tempos da política. Este fenómeno civilizacional não é novo, se recordarmos o que aconteceu Revolução Industrial Fumegante, e outras revoluções anteriores. As revoluções tornam sempre obsoletas as instituições que foram instaladas pelas revoluções anteriores. Hoje, muito do que está instalado neste século XXI é o que vigorava no século XX. E é nos períodos de transição que mais se fazem sentir os problemas de adaptação. É o caso da crise climática e dos fluxos migratórios consequentes. Problemas esses que só poderão ser mitigados com respostas transnacionais. Curiosamente, como há sempre ironia nestas convulsões humanas, os Estados estão a ser alvo de ataque não por parte dos paridos políticos mais cosmopolitas, mas pelos partidos conservadores que são mais nacionalistas e defensivos.

E assim se vai assistindo à deslegitimação das elites políticas e científicas em muitos países, e à ascensão de populismos que apostam mais em soluções de curto prazo do que soluções estratégicas mais sólidas em que os efeitos só se fazem sentir no médio e longo prazo. Tudo isto configura um interregno, no sentido que Gramsci lhe deu: “O velho mundo está a morrer, o novo tarda a nascer, e neste claro-escuro surgem os monstros.” Da Nova Era emergirá de certeza algo profundamente inovador. Só não sabemos, por incalculável, o preço perigosamente regressivo que as próximas gerações terão de pagar por isso. Tudo dependerá da capacidade de imaginação política, cooperação global e regulação inteligente dos novos poderes económicos, tecnológicos e militares.

Entretanto temos estado a acompanhar a Guerra na Ucrânia e a Guerra na Palestina. Focando agora o Médio Oriente, para uma parte do Ocidente, o mau da fita é o Irão. Mas há também uma parte no Ocidente, que não é pequena, para quem o mau da fita é Israel. O que não devia ser surpresa para ninguém se se recordar o que foram os dois mil anos precedentes de pogroms e antissemitismo. O que importa nesta reflexão é o tipo de inimigo que o Irão é para os judeus em geral, e para Israel em particular. Todo este agravar da situação começou com a Revolução Iraniana, em 1979, quando Ruhollah Musavi Khomeini tomou o poder e instalou uma teocracia que perdura até hoje, liderada pelos aiatolás com uma opressão inenarrável. 

A tradição do Islão no Irão é xiita. Teve sempre uma forte influência social e moral. O aiatolá Ruhollah Khomeini emergiu como símbolo de resistência ao imperialismo cultural ocidental, especialmente norte-americano. Ele soube mobilizar diferentes setores da sociedade contra o poder que estava, o do xá Mohammad Reza Pahlavi, derrubado a 11 de fevereiro de 1979 e que já reinava desde 16 de setembro de 1941, embora a coroação seja datada de 26 de outubro de 1967. O Irão é um mosaico complexo de culturas e nacionalidades. O regime iraniano teme as minorias porque podem articular movimentos secessionistas (como curdos e balúchis). São regiões periféricas com fronteiras porosas, onde insurgências podem ganhar apoio externo. Muitas lideram ou inspiram protestos organizados, sobretudo através da juventude. Dão visibilidade internacional à repressão do regime. Poetas, artistas e músicos curdos ou balúchis têm desafiado o regime. Há a história do massacre dos curdos no início da Revolução. O Irão usa o argumento da unidade islâmica para disfarçar essa repressão.

É verdade que o xá Mohammad Reza Pahlavi, aliado dos EUA, liderava um regime autoritário e modernizador que reprimiu adversários (usando a temida polícia secreta SAVAK). Impôs uma ocidentalização acelerada, vista como agressiva e alheia às tradições islâmicas. Criou desigualdades sociais profundas, apesar do crescimento económico como foi o que aconteceu após a Revolução Branca. Após a queda do xá, Khomeini eliminou os aliados temporários (esquerdistas, liberais) e centralizou o poder no clero. A nova Constituição de 1979 criou a figura do Líder Supremo, que está acima de qualquer cargo eleito. O regime estabeleceu Guardas Revolucionários (IRGC): um exército paralelo ideológico e poderoso economicamente. O Conselho dos Guardiães controla eleições e legislação, barrando candidatos reformistas ou moderados. E o sistema judicial é teocrático. O regime reprime fortemente dissidências políticas, culturais, étnicas e religiosas. O uso sistemático de prisões, torturas, execuções, censura e vigilância digital mantém o controlo da população.

Os protestos populares (como em 2009, 2019 e após a morte de Mahsa Amini em 2022) são brutalmente reprimidos. A teocracia legitima o seu poder com uma ideologia religiosa: o conceito de "Wilayat al-Faqih" (governo do jurista islâmico). Apresenta-se como única guardiã da verdadeira fé xiita, combatendo a "decadência moral" e "influência satânica do Ocidente". Por conseguinte há uma ausência gritante de liberdade política. Partidos opositores estão banidos ou neutralizados. A falta de unidade na oposição e a divergência entre reformistas, secularistas, exilados e movimentos sociais, completam o quadro tirânico. Também existe o medo da instabilidade. Muitos iranianos, traumatizados pela guerra Irão/Iraque, e vendo o caos em países como a Síria, temem uma mudança repentina.

As próximas gerações vão passar por uma espécie de distopia hostil: “A Travessia do Vazio / Civilização em Busca de Sentido”. Todos os mitos do século XX a ruir. As crises climáticas e pandémicas, os algoritmos que manipulam a vontade, as democracias corroídas por populismos, as promessas de bem-estar das minorias que excluem vastas maiorias. O niilismo hoje não é trágico nem rebelde, é silencioso, numa evasão para mundos artificiais do virtual, dopaminas digitais e cultos momentâneos. Mas o vazio tem uma função: preparar o terreno para a criação. Diante da ausência de um centro ético comum, multiplicam-se experiências na fronteirado do fim do humanismo. Este tempo não tem nome, é uma travessia. Sem bússola universal, somos obrigados a filtrar, escolher, criar sentido. O risco é o cansaço para vencer o niilismo. A promessa é o cuidado. Que da experimentação surja um novo modo de habitar o mundo.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

A grelha conceptual dos blocos geopolíticos está a mudar de orientação


No domingo começou em Tianjin, na China, a Cimeira de Segurança da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), um encontro que junta cerca de 20 chefes de Estado e governo – o maior até hoje na história da organização. O que está em causa na Cimeira? Um palco para o Sul Global e contra o Ocidente



Durante décadas, sobretudo na segunda metade do século XX, falava-se essencialmente do eixo Norte-Sul, com o Norte desenvolvido (EUA, Europa Ocidental, Japão) e o Sul “em desenvolvimento” ou “Terceiro Mundo”. Hoje, essa clivagem já não explica suficientemente as tensões. Com a ascensão do Sul Global, o vetor do eixo mudou de direção. Agora a sua força sopra de Sul para Norte. Índia, Brasil, África do Sul, Nigéria, Indonésia, México, entre outros, estão a ganhar peso demográfico, económico e diplomático. Enquanto no passado o Sul era visto como fornecedor de matérias-primas e mão-de-obra barata, agora há uma inversão: o Norte precisa cada vez mais do mercado consumidor do Sul, da sua juventude demográfica e da sua capacidade de crescimento. As crises ambientais e a desertificação estão a criar fluxos maciços de migração Sul–Norte. Este vetor é hoje talvez o mais visível, e politicamente explosivo.

E se no outro eixo o fim da Guerra Fria marcou a direção da força no sentido Oeste-Leste, agora o vetor está a desenhar-se no sentido contrário: Leste-Oeste. O declínio relativo do Ocidente já está à vista. A Europa e os EUA continuam poderosos, mas já não conseguem impor unilateralmente normas e agendas. O centro de gravidade económico deslocou-se para a Ásia. O "Indo-Pacífico" tornou-se a arena principal da competição. A Rússia, embora enfraquecida, Moscovo continua a forçar um eixo alternativo, ainda que de modo mais bélico do que estrutural. Iniciativas transversais como a A Nova Rota da Seda, os BRICS alargados, e a Organização de Cooperação de Xangai – tudo isto mostra que há já um diálogo leste-leste e sul-leste, contornando o Ocidente. O Sul Global começa a coordenar-se com o Leste, criando alianças alternativas (BRICS+, comércio em moedas locais, projetos de infraestruturas).

O Norte Ocidental vê-se obrigado a repensar a sua posição: já não pode tratar o Sul como até aqui, e já não pode conter sozinho o Leste. O futuro diálogo já não será apenas “Norte-Sul” ou “Oeste-Leste”, mas sim um mosaico multipolar: Sul-Leste, Leste-Norte, Sul-Sul. Assim, perde-se a simplicidade bipolar ou mesmo tripolar que caracterizou o século XX. Ganha-se uma rede mais fluida, mas também mais instável: alianças circunstanciais, rivalidades regionais, zonas de influência em disputa. Diria que o eixo Sul–Norte (migração, recursos, clima, juventude) e o eixo Leste–Oeste (hegemonia tecnológica, segurança, moeda) estão a cruzar-se para formar um tabuleiro de múltiplos centros, em que o Ocidente já não é o árbitro, mas apenas um dos jogadores.


O Sul Global (África, América Latina, Sul da Ásia) concentra a maior parte do crescimento populacional e a juventude. O Norte (Europa, América do Norte, Rússia, Japão) enfrenta envelhecimento e despovoamento. As crises climáticas tornam vastas regiões do Sul mais inabitáveis, acelerando fluxos migratórios. Resultado: o Norte passa de “exportador de ordem e capital” a importador de energia humana e vitalidade social, ainda que sob tensões políticas internas (choque identitário, populismos). A China já terá estabilizado como primeira ou segunda economia mundial, mas com problemas internos (envelhecimento, tensões sociais). A Índia afirma-se como potência central, com peso demográfico, económico e geopolítico. O Indo-Pacífico torna-se o epicentro da economia mundial.

A presença de Narendra Modi nesta cimeira, depois de 5 anos de ausência, não foi motivada sobretudo pela dimensão militar ou securitária da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), mas sim pelo peso económico que a China está a construir em torno deste fórum. A SCO tem evoluído de uma plataforma de segurança para um hub económico: corredores energéticos, infraestruturas, comércio em moedas locais, coordenação em cadeias de abastecimento. Para a Índia, que precisa de energia barata, exportações e acesso a mercados, ignorar esta rede começava a ser dispendioso. A Índia tornou-se o país mais populoso do mundo e precisa de sustentar um crescimento anual elevado. Estar fora dos grandes acordos do Sul-Leste significaria isolamento no próprio continente. Pequim é rival estratégico, mas também o maior parceiro comercial da Índia. Modi joga num tabuleiro duplo: mantém a aproximação ao Ocidente (Quad, parcerias tecnológicas com EUA e Europa), mas não pode abdicar da plataforma SCO, onde o dragão e o elefante precisam coexistir. O facto de Modi voltar após 5 anos mostra que a economia está a reconfigurar as prioridades, mesmo em plataformas de segurança. Enquanto o Ocidente olha para a SCO como uma ameaça geopolítica, a Índia lê-a como um espaço de oportunidade comercial e de investimento, numa altura em que precisa de consolidar o seu papel como motor do Sul Global.

O regresso de Modi à SCO e o maior peso desta cimeira só podem ser compreendidos no contexto de um Ocidente menos coeso — e nisso, Donald Trump tem sido um fator decisivo. Durante a presidência de Trump (e agora com o seu regresso à política internacional), os aliados europeus e asiáticos percebem que Washington já não é fiável como garante de segurança e estabilidade global. A ideia de que os EUA podem “abandonar” a Europa, ou tratar parcerias como negócios de ocasião, enfraquece a hegemonia ocidental construída desde 1945. Trump tende a privilegiar acordos bilaterais (muitas vezes transacionais) em vez de defender instituições multilaterais. Isso abre espaço para plataformas alternativas como a SCO ou os BRICS, porque os países do Sul e do Leste veem a necessidade de criar mecanismos próprios em vez de depender de um Ocidente errático.


Trump não inventou o declínio da hegemonia ocidental, mas pode estar a dar-lhe o “golpe de misericórdia”, porque transforma um processo lento e reversível em algo abrupto e irreversível. Trump impôs, recentemente, tarifas de 50% sobre diversos produtos indianos, o que reforçou a percepção de uma ruptura nas relações económicas entre os EUA e a Índia. Em que medida Trump está a “dar o golpe de misericórdia” na hegemonia ocidental? Este movimento de tarifas é emblemático de uma mudança mais ampla na política externa dos EUA — de promotor de uma ordem multilateral para um ator transacional e unilateral. Nesse sentido: Simbolicamente, Trump intensifica a percepção de que os EUA já não são um parceiro previsível, corroendo a confiança dos aliados tradicionais no Ocidente. Economicamente, o golpe é concreto: setores vitais da economia indiana enfrentam um choque direto, ao tempo que a Índia reforça sua orientação estratégica em direção ao Sul-Leste e aos fóruns alternativos, como a SCO e os BRICS. Trump acentua e acelera uma tendência já existente de multipolaridade, tornando irreversível uma erosão na coesão ocidental e abrindo espaço para realinhamentos emergentes.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

A discrepância entre o mundo mediático e o mundo real


O que vemos -- na televisão, nas redes ou nos grandes portais -- não é exatamente o que se passa na realidade sentida por qualquer pessoa na lide da sua vida diária. O que vemos são "narrativas" de um mundo imaginado. Os temas são escolhidos por critérios de impacto emocional, polarização ou conveniência política. Problemas reais e profundos muitas vezes desaparecem do radar mediático porque são complexos, não rendem cliques ou incomodam certos interesses. E o que sobra é um mundo artificial, onde as perguntas certas quase nunca são feitas.

Os jornalistas do papel eram melhores do que os jornalistas digitais. Mal preparados no domínio da língua e dos conhecimentos em ciências naturais, história da ciência e da filosofia. Hoje está tudo enviesado no comentário político. Essa combinação gera um jornalismo frágil, em que as perguntas resvalam para a irrelevância imbecil. A função crítica do jornalismo perdeu-se. Veja-se, por exemplo, o que se diz acerca da saúde em Portugal. Raramente se diz que a degradação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Portugal resulta um processo longo, estrutural, multifatorial. Começou há mais de duas décadas, e atravessou vários governos de má gestão. E, no entanto, a narrativa mediática tende a personalizar o problema. É o que se faz com a ministra da saúde, como se ela fosse a origem de todos os males, quando na verdade é mais um elo num sistema já esgotado. Isto é a velha lógica do "bode expiatório"-- uma forma simplista e emocional de lidar com o mal-estar coletivo, que desvia as atenções do essencial.

No fundo, o sistema mediático e político hoje reduz questões sistémicas a casos individuais, como se trocar uma pessoa resolvesse um problema estrutural; alimenta a impaciência e a indignação instantânea, o que impede reformas consistentes e de longo prazo; e mina a confiança nas instituições, o que acaba por favorecer discursos radicais e populistas. O que muitos dos que gritam por demissões ainda não perceberam, ou não querem perceber, é que governar não é fazer milagres, é fazer escolhas difíceis num campo minado. E que o SNS só se salva se houver uma visão política e social ampla, sem gritaria.

Nos dias de hoje, as crianças que estão a nascer mais em Portugal deve-se aos imigrantes. E isso tem-se refletido em partos mais precários por falta de acompanhamento. Mas como isso é um ponto sensível (imigrantes) ninguém quer assumir as verdadeiras causas e a comunicação alarma-se e culpa a ministra. Ora, isso já aconteceu noutros países da Europa, que começaram mais cedo a viver estes problemas que só agora chegaram a Portugal. É verdade que, nos últimos anos, a natalidade em Portugal tem sido sustentada sobretudo por mães imigrantes. Enquanto as mulheres portuguesas têm uma taxa de fertilidade muito baixa (das mais baixas da Europa), as imigrantes, sobretudo vindas do Brasil, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Índia, Bangladesh, Nepal e Paquistão -- têm contribuído decisivamente para travar o colapso demográfico. 

Segundo o INE (dados de 2023), mais de 20% dos nascimentos em Portugal já são de mães estrangeiras, e essa proporção continua a crescer, especialmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Os serviços de obstetrícia e neonatologia -- já fragilizados por décadas de desinvestimento e falta de planeamento de recursos humanos -- estão a ser pressionados por esta nova realidade. A grande maioria das mães imigrantes vive em condições socioeconómicas cuja vulnerabilidade se deve à dificuldade de acesso ao sistema de saúde, seja por barreiras linguísticas, seja por iliteracia burocrática. Daí não ser surpreendente que tenham um menor acompanhamento pré-natal. Já para não falar da insegurança no estatuto de residência, e no emprego precário com horários longos ou instáveis. Isto leva a partos com mais risco, com menos acompanhamento médico, e com desfechos perinatais mais preocupantes. Algo que os profissionais de saúde têm vindo a denunciar, ainda que de forma velada.

Por conseguinte: um tema muto sensível rodeado de tabu político e mediático. Qualquer menção direta a "filhos de imigrantes" associada a "problemas nos partos" é evitada para não ser explorada pelos discursos xenófobos. Assim, os governos evitam tratar o tema com frontalidade. E a comunicação social fala do assunto, mas omite dados sobre a origem dos partos em causa. Isto já aconteceu noutros países europeus, nomeadamente em França, Alemanha, Bélgica e Suécia, que começaram décadas antes a receber imigração em massa vinda de antigas colónias ou de países em desenvolvimento. Nestes países, observou-se um aumento dos partos de mulheres imigrantes. Dificuldades iniciais no acesso e adaptação ao sistema de saúde arrastaram-se por anos à espera de reformas específicas para responder a essas novas realidades. 

Portugal está, de certa forma, a viver agora o que outros viveram nos anos 1990 e 2000. A diferença é que, aqui, ainda não há uma política clara de saúde pública para responder a essa mudança demográfica. Para evitar que esta realidade alimente discursos populistas, seria necessário: nomear o problema com coragem e sem preconceito; explicar com dados e empatia o que está a acontecer; investir nos serviços de saúde materna e neonatal, com foco nas populações vulneráveis; e evitar tratar a imigração como tabu, ao mesmo tempo que se exige uma gestão realista e humana.

Em 2023, nasceram em Portugal 85 699 bebés, dos quais 18 734 tinham mães estrangeiras. Ou seja 21,9%, pouco mais de um quinto do total. Em 2024, nasceram cerca de 84 650 bebés, e a proporção de filhos de mães estrangeiras subiu para um terço (≈33%) do total. Algumas regiões são ainda mais afetadas, como a Grande Lisboa (≈48%), a Península de Setúbal (≈47%) e o Algarve (≈47%). Em 2024, a proporção nacional de partos de mães estrangeiras foi de 26,3%, variando muito por município: em alguns a percentagem atinge os 60–70% (por ex. Aljezur, Albufeira, Amadora). Partos instrumentais (cesarianas, fórceps) têm aumentado nas últimas décadas (de 27% em 1999 para 37% em 2023 nos hospitais), o que pode refletir sobrecarga, mudança de práticas e desafios no acompanhamento pré-natal. Relatos de gravidezes mal vigiadas, barreiras de acesso e menores recursos podem estar a contribuir para um aumento da mortalidade infantil (que subiu de 2,5‰ em 2023 para 3,0‰ em 2024).

Em Portugal a população residente aumentou para cerca de 10,64 milhões em 2023, com grande contribuição do saldo migratório positivo, o que explica parte do aumento dos nascimentos. A fertilidade tem subido ligeiramente (índice sintético de 1,44 filhos por mulher em 2023), mas sem a imigração a situação seria pior. O aumento dos partos de mães estrangeiras decorre tanto do crescimento dessa população como de uma tendência geral do declínio da natalidade entre mães portuguesas.

sábado, 30 de agosto de 2025

O mecanismo da “pureza ideológica” que nunca se satisfaz


Hoje as tribos esquerdistas do mundo Europa-América estão a pagar pelos erros programáticos cometidos neste primeiro quartel do século XXI. As suas ilusões acerca de uma política utópica orientada por valores morais, em contradição com o seu silêncio por conveniência em relação à falta de democracia e direitos humanos em certos "países amigos" -- China, Irão, Venezuela e tantos outros de África, Ásia e América do Sul -- foi fatal. A chamada “esquerda utópica” deixou-se embalar por princípios morais universais, mas muitas vezes aplicados de forma seletiva ou instrumentalizada.

A incoerência de exigir justiça social, direitos humanos e democracia nos países ocidentais, mas fechar os olhos ou relativizar a repressão em regimes autoritários “anti-imperialistas” ou aliados táticos não passou despercebida à opinião pública. Esse duplo padrão minou a credibilidade da esquerda moralista e tornou-a vulnerável às críticas dos setores mais cínicos ou realistas da sociedade, muitos dos quais hoje migram para opções conservadoras, populistas ou mesmo reacionárias.

É o velho dilema entre idealismo e realpolitik. Só que, neste caso, o idealismo não foi capaz de gerar resultados concretos – seja no plano da segurança interna, da integração cultural, ou da resposta às ameaças externas – e, ainda por cima, foi cúmplice ou omisso em relação a violações graves, desde que viessem dos “aliados certos”. O caso Hamas, por exemplo, é particularmente sensível: a acrítica dogmática da causa palestiniana por parte de certos setores da esquerda ignorou, ou mesmo justificou, métodos terroristas e uma ideologia profundamente reacionária, misógina e autoritária.

Essa “cegueira seletiva” foi percebida pelas populações como hipocrisia, e isso abriu espaço para o descrédito generalizado da opinião publicada progressista – aquela que antes parecia marcar o tom moral da sociedade. O pêndulo da opinião pública está a oscilar de forma abrupta, e a esquerda está agora a pagar o preço de ter subestimado os efeitos das suas próprias incoerências.

Ao tentar impor uma ética política universalista, mas com alianças e omissões que a contradiziam, as “tribos esquerdistas” perderam autoridade moral e influência sobre a narrativa dominante. E hoje enfrentam um refluxo perigoso, com o crescimento de forças que não estão minimamente interessadas em valores éticos universais. Apenas em força, ordem e identidade.

Banalizou-se a descida de pessoas às praças dos centros das cidades capitais a manifestarem-se com ativismo por causas morais que nunca mais acabam. Estes movimentos funcionam espartilhados por uma agenda de validação moral onde é preciso mostrar que se é contra a opressão dos governos. Isso leva a uma escalada incessante: hoje é a favor dos imigrantes e dos palestinos; ontem pelo colonialismo; amanhã pelo capitalismo digital da inteligência artificial. O resultado são facções que pululam e se atacam mutuamente -- ninguém é puro o suficiente. É a versão académica da Revolução Francesa a devorar os próprios jacobinos.

As discussões são sobre conceitos abstratos. E a vida concreta da maioria das pessoas mora ao lado. Como consequência, fora do campus universitário, esta retórica começa a soar a elitismo ou sectarismo. Quando investigadores mais empíricos, ou jornalistas da escola passada, expõem essas lacunas, o discurso perde credibilidade devido à sua vacuidade. A estratégia de silenciar críticos como “racistas” deixou de funcionar. É a narrativa do establishment universitário que perdeu a aura de rebeldia e que atraía jovens e intelectuais contestatários. Agora está a começar a aparecer um outro tipo de "juventude", dita de estudantes,  cuja provocação é a defesa da liberdade de expressão absoluta, criticando os próprios tabus dentro da esquerda académica.

E agora com a Administração Trump a romper de vez com o status quo académico, cortando financiamento a torto e a direito, exigindo resultados mensuráveis, o pânico instalou-se nas Faculdades de Humanidades. Áreas demasiado enclausuradas em debates internos, sem produção aplicável, começam a ver cortes orçamentais. Isto força alguns departamentos a reorientar-se para temas mais amplos e menos ideologicamente fechados. No fundo, é o ciclo natural de movimentos ideológicos em ambiente livre: crescem rapidamente quando encontram terreno fértil, radicalizam-se, depois perdem contacto com a realidade, e acabam minados pelas próprias contradições internas e pela irrelevância prática.

Se percorrermos algumas universidades americanas, por exemplo, começando por Princeton, avulta a controvérsia sobre “cancelamento” e liberdade académica. Um professor de história havia sido alvo de críticas internas por defender uma abordagem mais equilibrada de figuras históricas controversas como Thomas Jefferson. Apesar de autor da Declaração de Independência, não escapou porque tinha escravos a trabalhar para ele. Estudantes e colegas mais “radicais” tinham exigido a sua demissão com a acusação de “normalizar o racismo”. Mas, finalmente, a universidade foi obrigada a intervir para garantir a liberdade académica. Gerou-se tensão, com o corpo docente dividido.

Na Universidade de Toronto, “campus culture wars”, em várias faculdades, geraram-se acesos debates sobre políticas de diversidade, uso de linguagem inclusiva e “microagressões”. 
Professores que questionavam certas abordagens foram denunciados por “não criarem ambientes seguros”. Estudantes começaram a cansar-se do clima pesado e da vigilância constante, exigindo que o foco voltasse para o ensino e pesquisa tradicional. Surgem agora grupos contrários às políticas identitárias, promovendo debates abertos e defendendo a pluralidade. O caso do "Departamento de estudos de género da Universidade de Sussex (Reino Unido), em que uma docente foi criticada por publicar textos que ponderavam criticamente alguns conceitos dogmáticos da teoria queer e do feminismo pós-moderno, desencadeou alvoroço. Levou a manifestações internas e pedidos formais para que fosse retirada de certas disciplinas. A polémica ganhou repercussão nacional, e muitos viram o episódio como um sinal de que a liberdade intelectual está a ser estrangulada por ortodoxias ideológicas.

Em vários países, cursos e programas baseados quase exclusivamente em “Teoria Crítica” começaram a perder estudantes e financiamento. Por exemplo, na Alemanha e Holanda, há relatos de departamentos de estudos pós-coloniais a reduzir pessoal e repensar currículos para incluir mais dados factuais, história comparada e perspectivas plurais. A pressão para resultados práticos, inclusive relacionados a emprego dos alunos, obriga a uma “normalização” gradual. Esses exemplos mostram como o discurso radical está a gerar divisões internas, a cansar a comunidade académica e a provocar reações externas que o forçam a adaptar-se, recuar ou, em alguns casos, desmoronar-se. É um processo complexo, mas natural numa sociedade aberta onde as questões do poder são as que mais importam.

As consequências? Uma espécie de harakiri civilizacional. Perfeito! A ideia de um harakiri civilizacional encaixa bem como metáfora para as consequências profundas e potencialmente perigosas desse fenómeno entre grupos na sociedade em que de um lado estão os “oprimidos” e do outro os “opressores”. É o fomento de emoções destrutivas para o tecido social -- o tão conhecido ressentimento -- que personaliza a culpa coletiva. Por outro lado mais minorias podem também sentir que precisam competir com outra minorias por estatuto de “vítima” para terem voz. E lá se foi a solidariedade entre grupos. A censura de pontos de vista divergentes e a pressão por conformidade ideológica geram um ambiente onde o debate aberto desaparece, e se paralisa o intelecto na assunção de uma cultura. Isso sufoca a criatividade e o progresso, porque o conhecimento depende de confronto e questionamento constante.

A demonização da “civilização ocidental” ou do “homem branco” leva à rejeição ou destruição de patrimónios culturais, obras literárias, monumentos, símbolos que sustentam a memória coletiva. Sem uma narrativa histórica partilhada, a sociedade perde a capacidade de se reconhecer enquanto comunidade com um passado comum. Essa perda de memória pode abrir caminho para narrativas revisionistas ou simplistas, abrindo portas a movimentos populistas ou autoritários. O discurso radical da esquerda identitária provoca uma reação no campo oposto -- grupos nacionalistas, racistas e populistas -- que se sentem legitimados a usar retórica agressiva, muitas vezes xenófoba e violenta. O que era para ser uma correção moral torna-se uma guerra cultural sem vencedores claros, com riscos reais de instabilidade política e social. Essa polarização pode fragmentar sociedades inteiras, enfraquecendo instituições democráticas e o Estado de Direito.

Quando o foco está centrado em debates identitários e cancelamentos, questões essenciais como desigualdade económica, alterações climáticas, saúde pública e educação ficam em segundo plano. Isso pode retardar políticas públicas eficazes e criar frustração generalizada, especialmente entre a chamada classe média que já tem consciência crítica e aspira a subir na vida. A polarização entre discursos identitários de esquerda (muito focados em raça, género e história) e a reação de direita nacionalista cria um ambiente político radicalizado. Muitos cidadãos comuns sentem-se excluídos das narrativas académicas e políticas, porque não se reconhecem nem no “vitimismo estrutural” nem no nacionalismo agressivo. Isso resulta em apatia, desconfiança nas instituições, ou apoio a líderes que prometem “quebrar o sistema”, mesmo que sejam autoritários.

Movimentos como Black Lives Matter, que começaram por denunciar violência policial e desigualdade, por vezes viram o seu discurso ser capturado por vertentes mais radicais que promovem divisões identitárias. Isso provoca reações violentas de grupos contrários, manifestações recorrentes, e uma sensação geral de “guerra civil cultural”. E a migração em massa, a fugir de guerras, pobreza e alterações climáticas, pressiona as sociedades ocidentais, que estão a tentar redefinir a sua identidade num mundo globalizado. Isso alimenta o medo do “outro”, dando força a movimentos xenófobos e nacionalistas que prometem “proteger a identidade nacional”.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O “mal” como parte da natureza humana


Historicamente, tentamos eliminar ou moralizar tudo o que consideramos “mal”: violência, egoísmo, ódio, fanatismo. Mas essas tendências não são defeitos acidentais, são parte do instinto de sobrevivência, competição e organização social. Negar isso gera ilusões de utopia. Pessoas que acreditam que as sociedades podem ser perfeitas, sem conflito ou sofrimento, acabam por rapidamente chocar com a realidade. Quando tentamos aplicar compaixão de forma absoluta ou indiscriminada, sem reconhecer os riscos do mal, tornamo-nos vulneráveis à manipulação e alvo de abuso. O que parecia “bondade” transforma-se em legitimação involuntária do mal. O mundo não é um tabuleiro moral limpo; é uma rede complexa de forças, algumas construtivas, outras destrutivas.

A humanidade tende a subestimar ou negar o mal, e quando menos se espera os conflitos instalam-se, a discórdia torna-se insanável, e instala-se a guerra. Reconhecer o mal como parte da vida não significa resignação, mas agir com consciência das consequências reais, equilibrando compaixão e rigor. O problema não é a maldade em si, mas a ilusão de que podemos eliminá-la completamente. A vida exige uma espécie de pragmatismo moral: ser compassivo, mas sem cegar-se para a dureza da existência e os riscos do fanatismo ou da violência. A verdadeira ética de sobrevivência humana exige compaixão informada, realismo estratégico e consciência da maldade inerente. Evita o pecado original da esquerda idealista: romantizar causas sem avaliar consequências concretas. Quanto mais equilibrado entre compaixão, realismo e reconhecimento do mal, mais eficaz e ético é o ato humano. Quanto mais deslocado em algum eixo, maior o risco de ingenuidade, legitimação indireta do mal ou cinismo.

Israel está sob ameaça permanente de extinção. Desde 1948, no momento da sua criação, Israel enfrenta invasões sucessivas (1948, 1967, 1973) e uma retórica constante de eliminação por parte de vizinhos árabes e grupos islamistas. O Hamas, no seu estatuto fundador, é explícito: o objetivo não é a paz com Israel, mas a sua destruição. Mesmo quando Israel recua (como em Gaza, 2005), o resultado não foi paz, mas o fortalecimento de grupos armados que querem a sua erradicação. Ou seja, Israel vive num estado de ansiedade existencial que nenhuma democracia europeia conhece. Israel, apesar das tensões internas, é uma democracia funcional, com nível de desenvolvimento tecnológico, científico e cultural comparável ao europeu. É uma economia de inovação (startups, biotecnologia, software, agricultura avançada). Tem direitos de cidadania reconhecidos a mulheres, minorias sexuais e até cidadãos árabes israelitas. Ao passo que no mundo árabe em redor, grande parte dos países caiu em regimes autoritários, religiosos ou militares. Muitos receberam enormes recursos financeiros (petróleo, ajuda externa, fundos europeus e internacionais), mas não conseguiram criar sociedades abertas, democráticas ou economicamente diversificadas. A exceção relativa é alguns países do Golfo, que modernizaram cidades, mas sem democratização. É legítimo sentir frustração: como é possível, com tantos recursos, os vizinhos de Israel estarem tão atrás em termos de liberdade, prosperidade e tolerância?

Khomeini, depois de ter chegado ao poder no Irão, em 1979, teve um papel decisivo no alastrar do fanatismo islâmico em todo o mundo islâmico. A revolução iraniana liderada pelo aiatola Khomeini foi um marco. Substituiu um regime autoritário pró-Ocidente (o Xá) por uma teocracia xiita militante. Exportou a ideologia da jihad revolucionária para o Líbano (Hezbollah), Iraque, Síria e até Gaza. Desde então, o Médio Oriente ficou marcado por um crescimento do fanatismo religioso, que travou reformas democráticas e económicas. Isto agravou a radicalização contra Israel, usando-o como bode expiatório, para legitimar os seus regimes opressores, acusando Israel de ser um opressor sobre o povo palestiniano.

Israel, com todos os erros, defeitos e excessos militares, inegáveis, é uma sociedade que procura funcionar nos moldes europeus, com pluralismo, eleições e imprensa livre. A anos-luz de distância do Hamas, Hezbollah e regime iraniano cujas ideologias são de morte, onde o sacrifício dos próprios civis é usado como arma política. Comparar Israel e Hamas nem chega a ser equilibrado – é comparar uma democracia imperfeita com movimentos ou regimes teocráticos e fanáticos. Desde Khomeini, o fanatismo religioso foi uma das maiores travagens ao desenvolvimento do Médio Oriente. E isso não se pode ignorar. Muitos intelectuais celebraram Khomeini. Um deles foi Michel Foucault, a dar loas a quem ia deitar abaixo o capitalismo através da revolução do espírito. É histórico: Michel Foucault, em 1979, escreveu artigos elogiando a revolução iraniana. O que ele admirava não era o fundamentalismo religioso em si, mas a rotura radical contra o poder estabelecido e a ideia de que uma “revolução do espírito” poderia transformar a sociedade. Foucault não previu ou subestimou a violência, a repressão e a ideologia de morte que emergiu com o regime xiita. Resultado: um exemplo clássico de intelectual fascinado pelo simbolismo da revolução, mas que ignorou consequências humanas reais. Moral: os intelectuais podem ser cegos às consequências concretas quando encantados por ideias “puras” ou radicais. Como Foucault, tantos outros se deixam levar apenas pelo símbolo da luta humanitária ou anticolonial, ficando cegos para os efeitos indiretos.

A confiança cega na moralidade das causas, acreditando que lutar contra a opressão automaticamente coloca a pessoa ou movimento “do lado certo da história”, tem sido o maior erro de toda a esquerda desde sempre. Cegueira aos meios e consequências: a obsessão por justiça social e crítica decolonial, faz ignorar que alguns aliados ou instrumentos podem ser moralmente repugnantes (terrorismo, teocracia, violência). Ou seja, é a exaltação da narrativa simbólica que dá mais atenção ao “ato heroico” e à solidariedade performativa do que ao impacto concreto da ação. Mortágua encarna isso no contexto português atual. Defende causas humanitárias e anticoloniais, mas o faz de forma que pode legitimar indiretamente regimes ou grupos extremistas, mesmo sem intenção. Usa retórica poderosa e simbólica – flotilhas, campanhas, declarações de solidariedade – que engana emocionalmente o público, dando impressão de moralidade absoluta. É admirada por muitos como paladino da justiça, mas a análise crítica mostra que há uma ingenuidade estratégica e ética: foca-se no ato simbólico, não nas consequências reais. Este “erro” da esquerda idealista não é novo: a admiração de Foucault por Khomein – admiração por revolução espiritual e rutura radical, ignorando repressão e mortes – remonta aos Estalinistas ou maoistas ocidentais quando apoiaram regimes totalitários por serem “revolucionários”, ignorando purgas e fome. Mortágua é, assim, uma versão contemporânea desse padrão: humanista e idealista, mas com cegueira ética parcial.

O “pecado original” da esquerda é confundir causa justa com aliados justos, símbolo com realidade, ou moralidade abstrata com consequência prática. Mortágua é paladino e paradigma moderno desse erro: boa intenção, retórica poderosa, mas vulnerável a legitimar involuntariamente extremismos. Portanto, o que atrapalha a humanidade é a ilusão de que se pode contrariar as forças da Natureza, em que aquilo a que nós chamamos "mal", faz parte, mas não queremos reconhecer que faz parte. E por isso a vida é uma luta em que a compaixão a mais se transforma logo em "mal". A dificuldade da humanidade não é só a maldade objetiva, mas a nossa incapacidade de reconhecer que o mal faz parte da existência.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Ninguém gosta de terroristas


O que é o fanatismo? O fanatismo pode ser entendido como uma adesão cega e intransigente a uma ideia, causa, ideologia, religião ou pessoa, acompanhada de intolerância para com qualquer visão diferente. É mais do que convicção forte: é uma crença sem espaço para crítica ou dúvida. Está associado a um excesso de paixão, em que a emoção se sobrepõe à razão. Muitas vezes, assume a forma de hostilidade contra quem discorda.

Um fanático típico costuma ter alguns traços: certeza absoluta é padrão, não admitindo dúvidas nem incertezas; com visão binária divide o mundo em “bons e maus”, “nós e eles”; intolerante à crítica, interpretando objeções como ataques pessoais; com proselitismo não se cansa de tentar converter ou impor a sua visão. Por conseguinte, um fanático é um rígido ideológico com grande dificuldade de adaptação a contextos novos.


Mariana Mortágua encaixa-se nesse perfil? Mariana Mortágua é uma figura política portuguesa, deputada do Bloco de Esquerda, bastante ativa no discurso público. O discurso dela por vezes parece enquadrar em “ricos vs. pobres”, “opressores vs. oprimidos”. Isso é um traço que pode resvalar para o maniqueísmo, que alimenta fanatismo. Mariana Mortágua encaixa-se no lado da convicção forte.

A flotilha conta com centenas de barcos de diversos países, com a presença de ativistas, deputados e jornalistas, numa tentativa de pressionar pela abertura de um corredor humanitário para Gaza. Mortágua condena explicitamente tanto os atos de terror cometidos pelo Hamas quanto os crimes de guerra praticados por Israel, denunciando o que considera ser uma política genocida em Gaza.

É importante separar bem as coisas, porque houve reações muito diferentes à esquerda logo após o 7 de outubro de 2023. Em várias cidades do mundo (Nova Iorque, Londres, Paris, Berlim, Lisboa) houve manifestações imediatas contra Israel e em apoio à “resistência palestiniana”. Nesses atos, alguns grupos foram explícitos a celebrar ou justificar os ataques do Hamas, apresentando-os como resistência legítima à ocupação. Isto gerou enorme controvérsia, porque para a maioria do público global ainda estava fresco o massacre brutal de civis israelitas (incluindo mulheres, crianças e idosos).

Setores mais radicais da esquerda internacional (ex.: certas alas universitárias americanas, grupos trotskistas, movimentos antissionistas radicais) tenderam a romantizar o Hamas como “resistência”. Partidos de esquerda democrática, como o Bloco de Esquerda (onde está Mariana Mortágua), o Podemos em Espanha, ou partidos verdes europeus, foram mais cautelosos: Primeiro, alguns caíram na crítica apenas a Israel, omitindo condenar o Hamas. Mas rapidamente ajustaram o discurso para condenar tanto os crimes do Hamas como os de Israel (o BE fez isso de forma explícita, ainda em outubro de 2023).

O que Mortágua disse em 11 de outubro de 2023 (quatro dias depois do massacre) foi: “Condenamos os crimes de guerra cometidos pelo Hamas e por Israel” (Expresso). Ou seja, fez uma dupla condenação. Ainda que, se possa considerar, que Mortágua colocou no mesmo plano o Hamas (um grupo terrorista fundamentalista) e Israel (um Estado). Este pode ser o erro. 
Mariana Mortágua entra claramente no grupo da Esquerda anticolonial crítica. Condena o Hamas, mas centra o foco na ocupação israelita. Usa a grelha de leitura de colonialismo/apartheid, muito comum nesse campo. Há a sublinhar que ela nunca se dispõe a iniciativas de solidariedade para com Israel – um Estado democrático, plural e com instituições fortes. As ações simbólicas (como flotilhas, vigílias, campanhas) são sempre em defesa da causa palestiniana. Isso gera a perceção (e até um efeito político prático) de que o terrorismo do Hamas é relativizado, porque a ênfase recai sempre sobre Israel como culpado maior. Participa em ações humanitárias como a flotilha, mas não legitima o Hamas. Em Nova Iorque e noutros sítios, manifestações de grupos radicais chegaram a justificar ou mesmo a apoiar o Hamas.

Israel é apontado como potência ocupante, praticando políticas de apartheid e violência desproporcionada. Mas raramente a esquerda reconhece com igual intensidade que Israel é uma democracia, com parlamento pluralista, tribunais independentes, imprensa livre e forte diversidade interna (incluindo cidadãos árabes israelitas com assento no Knesset). O Hamas é formalmente condenado, mas muitas vezes retratado de forma indireta como “resistência armada”. Ora, na prática, o Hamas é uma teocracia autoritária, que persegue opositores, reprime mulheres e minorias, e cujo programa político inclui explicitamente a destruição de Israel.

A consequência é que, enquanto o sofrimento palestiniano merece mobilização internacional organizada, o sofrimento israelita é um dado colateral da guerra. Isso, mesmo sem intenção, acaba por alimentar a propaganda do Hamas, porque reforça a narrativa de que a sua violência seria “resistência legítima”. Ainda que nada tenha a ver com o que se viu 
em Nova Iorque, realmente um segmento mais radical da esquerda internacional, com menos pudor em chamar o Hamas de resistência legítima, Mortágua, ainda assim, apesar de se situar no campo do humanitarismo anticolonial, condenando Israel como potência ocupante, erra ao validar indiretamente, ainda que sem intenção, o terrorismo do Hamas.

É esse o ponto incómodo que geralmente ninguém de esquerda tem coragem de falar: Hamas pratica uma ideologia de morte (não só contra Israel, mas contra os próprios palestinianos de Gaza que não se alinham com ele). Quando não é salientada a diferença em relação a Israel, que é uma democracia, ainda que imperfeita, com a mesma força que é salientada a “Resistência”, cria-se um desequilíbrio moral. Portanto, mesmo sem querer, Mortágua e outros, ao só enfatizarem o lado palestiniano, acabam por legitimar indiretamente o Hamas. A escolha de causas simbólicas tem peso político e moral. O erro da esquerda anticolonial é ignorar que o apoio ao povo palestiniano acaba por dar munição discursiva ao Hamas.