segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A desigualdade é da natureza humana?


A Desigualdade é “intrínseca à natureza humana”? A resposta vai depender do que se entende por  natureza humana. Há evidências na psicologia e na biologia evolutiva de que os humanos têm tendências naturais a competir por recursos, estatuto e segurança. Isso pode gerar desigualdades. Mas também há tendências igualmente naturais à cooperação, partilha, empatia e criação de normas para reduzir conflitos. Ou seja, a natureza humana contém potenciais para desigualdade, mas também ferramentas naturais para mitigá-la.

A forma como estes potenciais se expressam depende muito das instituições, da cultura e das regras sociais. O capitalismo é “culpado” pela desigualdade? Aqui há várias posições legítimas. Críticos do capitalismo dizem que ele amplifica desigualdades porque recompensa acumulação de capital, cria assimetrias de poder económico e pode produzir grandes disparidades de renda e riqueza. Defensores do capitalismo respondem que desigualdades existiram em todos os sistemas, e que o capitalismo, apesar disso, aumentou a produtividade, o que levou ao aumento da riqueza suscetível de poder ser redistribuída. Mas a realidade e a evidência empírica costuma mostrar algo mais esquisito. Se por um lado Economias de mercado tendem a gerar desigualdade, políticas de redistribuição, educação, regulação e impostos podem reduzi-la substancialmente dentro de sistemas capitalistas. Por conseguinte, o capitalismo não é a causa única da desigualdade, mas influencia a sua magnitude e forma.

Muitos pensadores de esquerda (por exemplo, marxistas estruturais) defendem que o ser humano é extremamente moldável pelas condições sociais e históricas. Mas poucos defendem literalmente que a natureza humana não existe. O que muitos argumentam é que não existe uma natureza humana fixa, imutável; muito do comportamento humano é produto de estruturas sociais, e não apenas biologia. Na verdade, há posições à esquerda que aceitam explicitamente componentes biológicos da natureza humana, mas acreditam que as instituições podem melhorar resultados sociais. A questão é: quanto do comportamento humano é moldado pela sociedade? É mais sobre o peso relativo das instituições sociais sobre a biologia.

O Capitalismo levou a um aumento extraordinário da riqueza global, com grande produtividade e inovação. As melhorias históricas não têm precedentes em expectativa de vida, saúde e conforto material. Depois as coisas que não têm preço, como as liberdades civis e políticas com direito à crítica e à alternância de poder. E a grande capacidade de correção interna por via democrática. Mas temos de apontar que a desigualdade económica é significativa. E a pobreza não deixou de persistir, sobretudo em sistemas com pouca redistribuição. A exploração laboral, com exceções, não desapareceu. E as crises económicas são recorrentes, o que é inerente à economia de mercado. Apesar desses problemas, nas democracias liberais o capitalismo mostrou-se compatível com reformas corretivas e com grandes avanços no bem-estar humano.

Agora, o que é interessante perguntar é se os projetos sociais alternativos ao capitalismo, como as experiências marxistas que tentaram realizar a igualdade, produziram mais bem humano do que o capitalismo. Podemos olhar para isto com três ângulos: resultados históricos; tensões internas de cada sistema; e lições que ambos deixaram.

O que aconteceu com as experiências marxistas, dando os exemplos da URSS, China, Coreia do Norte e Cuba? É claro que há sempre aspetos positivos para além dos negativos se dermos o desconto do viés da perspectiva. Pode-se apontar que houve aspectos positivos com a experiência do comunismo puro e duro: Industrialização muito rápida em países atrasados (caso da URSS); Erradicação de analfabetismo e forte expansão de educação e saúde públicas; Redução inicial de desigualdades económicas.

Mas os aspectos negativos, apontados sobretudo nos países democráticos ocidentais a partir do fim da Segunda Guerra Mundial são muito expressivos: Regimes autoritários ou totalitários, com ausência de liberdades civis básicas; Planificação rígida, muitas vezes ineficiente, resultando em escassez crónica de bens; Repressão política em massa, incluindo purgas, Gulag e execuções; Fome induzida por políticas económicas falhadas, como na Grande Fome da China, entre 1958 e 1962; A fome na Ucrânia referenciada por Holodomor; Colapso final de quase todas as experiências socialistas de tipo soviético. O saldo humano, no seu conjunto histórico, tende a ser considerado muito negativo, sobretudo pelo custo em vidas e liberdades.

Os sistemas capitalistas democráticos produziram muito mais bem-estar humano do que os sistemas marxistas-leninistas. O socialismo real teve ganhos pontuais, mas os seus custos humanos, económicos e políticos foram extremamente elevados. A maior parte das melhorias que hoje associamos a justiça social (Estado social, educação universal, sistemas de saúde, direitos laborais) surgiram dentro de sistemas capitalistas regulados, não fora deles. Não significa que o capitalismo seja perfeito, está longe disso, mas parece ter sido mais adaptável, mais compatível com liberdades individuais, mais fértil em inovação e prosperidade, e mais corrigível democraticamente. O sonho da igualdade revelou-se uma utopia que se transformou numa espécie de inferno na Terra. 
As experiências marxistas reais foram mais virtuosas para o ser humano do que o capitalismo? A resposta histórica mais consensual é: Não.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Falácia do “se criticas a imigração, és xenófobo”



Os que dizem que “Questionar imigração é discurso de ódio” misturam motivos morais com questões demográficas e políticas concretas. Bloqueia a discussão legítima sobre capacidade de integração, pressão nos serviços e mercado de trabalho. Quando um tema se torna tabu, deixa de poder ser gerido racionalmente. Dizer claramente: “não estou a discutir pessoas, estou a discutir políticas” é entrar no debate técnico. Quantos novos alunos podemos integrar por ano nas escolas? Quantas casas a mais são necessárias? O SNS consegue absorver um crescimento populacional súbito? Desta forma, o debate sai da moralidade e regressa à realpolitik.

Umas das falácias do tipo das soluções milagrosas é a que diz : “Precisamos de imigrantes para pagar a Segurança Social. Quanto mais vierem melhor.” Não considera a qualidade do emprego, rotatividade, salários baixos e contribuições insuficientes. Ignora que a imigração não resolve o problema demográfico, apenas o adia. Ignora custos de integração, saúde, educação, habitação, aprendizagem da língua, sistemas de apoio social. Qual é a percentagem de empregos qualificados entre os recém-chegados? Países que tentaram esta estratégia (Alemanha, França, Suécia) hoje enfrentam desafios estruturais. A imigração pode ser positiva, mas não infinita. Porque de outro modo, sem regulação, seria caótica.

Todos têm direito a vir para Portugal? Os direitos humanos não incluem direito automático de imigração para outro país. Confunde asilo com imigração económica. Ignora que qualquer Estado tem o dever de gerir as fronteiras e garantir o bem-estar dos residentes. 
Todos os países desenvolvidos têm regras de entrada. Além do mais, imigração sem critério prejudica tanto residentes como imigrantes (exploração laboral, habitação precária, guetização). Muitas redações seguem códigos de conduta que evitam identificar a etnia ou a nacionalidade. Isso cria a sensação artificial de que o fenómeno é menor do que realmente é. Assim, o público não passa a perceber melhor as consequências do fenómeno. E isso gera ainda mais confusão e desconfiança. Portanto, não nomear é uma ilusão, porque não elimina os efeitos reais no seio da sociedade. Políticas baseadas em “não digas para não chocar” geralmente criam ainda mais ressentimento, o que alimenta as agendas populistas dos extremos. Não estamos a falar de centenas de pessoas, mas de centenas de milhares em poucos anos, o que exige políticas estruturais avultadas. Atualmente Lisboa, já é uma cidade onde a pressão imobiliária e os serviços demonstram os seus limites de rotura. Portanto, incapacidade de integração não é má vontade, é incapacidade logística.

Os padrões de imigração global tendem a repetir-se. Problemas de integração ignorados cedo são sempre mais difíceis de resolver tarde. Muitos países europeus passaram pelas mesmas fases: negação; minimização; choque; políticas de emergência atrás do prejuízo. Porque é que deveríamos repetir os erros de outros países se podemos aprender antecipadamente? Tipicamente urbanos, escolarizados, politicamente à esquerda ou centro-esquerda, tendem a ver a imigração como um imperativo moral. 
Têm uma visão muito universalista e cosmopolita da sociedade. Enfatizam apenas os aspetos positivos, como os contributos para a Segurança Social e a diversidade cultural. Desvalorizam a escala do fenómeno (“não é nada de especial”), mesmo perante dados oficiais. Acreditam que os problemas resultam apenas do Estado não ter recursos suficientes, não da magnitude da entrada de pessoas. Porque adotam este discurso? Temor de serem associados à extrema-direita. Forte sentido de obrigação humanitária. Socialização em meios onde a diversidade é vista como um valor absoluto. Pressão normativa: nos seus círculos sociais é incorreto admitir preocupações.

Pessoas ligadas à comunicação social, cultura, artes, media digital controlam a narrativa. Evitam mencionar nacionalidade/etnia em notícias sensíveis. Criam ambientes de autocensura nas redações. Falam de imigração apenas em termos culturais, nunca estruturais. Desvalorizam problemas de convivência, pressão urbana ou serviços públicos. É a ideologia dominante nos meios culturais. E os seus leitores sentem um desejo genuíno de serem tolerantes e bondosos. Mas falta-lhes o contacto direto com a realidade. Não têm a noção do impacto cumulativo do aumento de novos residentes. E mesmo pessoas que percebem os problemas no dia a dia, rejeitam admiti-los porque colocam a cabeça na areia.  Têm medo de parecer preconceituosos. Ou medo do conflito social. É o chamado mecanismo psicológico da negação do desconforto, ou dissociação psicológica.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Errare humanum est


Associado ao erro humano está o resvalar para outra evolução, que é a moral, em nome da qual falamos em correto e incorreto. O erro humano é inevitável. Errar faz parte da condição humana. Somos falíveis por natureza. O erro nos faz elevar para outro nível de desenvolvimento: moral e ética. Tomo como primeira referência literária a Ética a Nicómaco de Aristóteles.

Ao errar, não evoluímos apenas tecnicamente ou cognitivamente, evoluímos moralmente. O erro funciona como um gatilho para reflexão ética. A moral surge como um sistema que julga os nossos atos. A partir dessa evolução moral, passamos a classificar ações como corretas ou incorretas, boas ou más, de acordo com princípios que construímos social e individualmente.

A frase em epígrafe sugere que o erro não é apenas falha, mas um mecanismo que leva o ser humano a desenvolver consciência moral, e é essa consciência que nos faz usar categorias como “certo” e “errado”. Ou seja, dizer "correto" está mais ligado à moral; e dizer errado está mais ligado à ciência (no sentido amplo do termo ciente). E o sentido moral é uma espécie de upgrade da mente humana. Quando usamos correto/incorreto em um sentido moral, estamos avaliando comportamentos segundo valores, normas, princípios. Ex.: “É correto ajudar alguém em dificuldade.” Aqui não falamos de verdade ou falsidade, mas de juízo ético. “Errado” ligado à ciência (sentido amplo de “saber”) –tem um outro registo. No domínio do conhecimento, “erro” é uma inadequação entre o que pensamos e o que é a realidade. Ex.: “É errado dizer que a Terra é plana.”

Errado aqui não é imoral = é simplesmente falso, inverídico ou inconsistente. Em português costumamos usar “erro” com mais facilidade em campo cognitivo e “correto” com mais frequência em campo moral. Esse deslizamento semântico é justamente o que a frase original aborda. A moral como um “upgrade” da mente humana está dentro da ideia de que o ser humano primeiro erra (cognitivamente, biologicamente, socialmente); depois reflete sobre as consequências; disso surge um segundo nível: a consciência moral. A moral funciona como uma camada extra da mente que permite não apenas perceber a realidade, mas avaliar ações segundo o que deveria ser, não só segundo o que é. É um “upgrade” porque adiciona capacidade de autorregulação, permite viver em sociedade de modo mais complexo, e cria critérios abstratos (justiça, dever, responsabilidade).

O erro é uma característica intrínseca à condição humana. No entanto, ele não se limita a uma falha cognitiva; é também o impulso que nos conduz a um nível superior de reflexão. Enquanto o “erro” no sentido científico indica uma discordância entre pensamento e realidade, o “correto” se insere no domínio da ética, avaliando ações segundo valores, deveres e princípios. Dessa forma, a consciência moral surge como uma espécie de evolução da mente humana: um “upgrade” que nos permite não apenas compreender o mundo, mas também julgar as nossas ações e escolhas, estabelecendo distinções entre certo e errado que transcendem a mera veracidade dos fatos.

Errar é a marca do humano, e nesse deslize se esconde a semente de nossa elevação. O erro, enquanto falha diante do mundo, não é mero fracasso: é convite à reflexão. O “incorreto” da ciência revela apenas a distância entre o nosso saber e a realidade; o “correto” da moral, por outro lado, aponta-nos para horizontes mais altos, onde valores e deveres se entrelaçam com a consciência. Assim, a moral emerge como um sopro que amplia a mente, um upgrade invisível que transforma cada falha em aprendizagem. Errar é humano; julgar é moral. No contraste entre o falso e o correto, a mente se expande e a consciência se eleva. O erro nos toca, a moral nos transforma. Entre o que é e o que deve ser, crescemos e nos descobrimos.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

O negacionismo do desastre é muito antigo


As sociedades raramente reconhecem que há um dia em que a sua civilização chegará ao fim. Mesmo quando já estão a ter sinais evidentes de que esse dia está a chegar. Isto é uma constante antropológica. O cérebro humano foi moldado para negar ameaças difusas, lentas ou incómodas, porque lida melhor com perigos imediatos (um predador, um inimigo, uma fome súbita) do que com ameaças cumulativas. É a tal fuga psicológica: se o perigo do aquecimento do planeta é enorme, mas não é imediato, cada um finge que não é para o seu tempo, incorporando aquela velha ideia sintetizada pela frase: "A longo prazo estaremos todos mortos".

A queda do Império Romano é o mantra. Agostinho de Hipona viveu precisamente no momento em que Roma começava a desmoronar-se. E o que vemos nos textos e no contexto histórico é muito semelhante ao que estamos a viver agora. As elites romanas negavam os sinais do colapso: 
Declínio demográfico; incapacidade de manter o exército; corrupção endémica; perda de território; economia fragilizada; migrações maciças a flanquear as fronteiras do império a Norte. Mesmo assim, mantinha-se a ilusão da eternidade de Roma. Agostinho não disse literalmente “o Império está a cair”, porque isso seria politicamente perigoso. Mas A Cidade de Deus está repleta de metáforas que mostram que ele via o fim de uma ordem, a chegada de uma outra, e a profunda resistência dos contemporâneos a aceitar essa transição. Tal como hoje, muitos preferiam não ver a realidade desconfortável. As alterações climáticas seguem o mesmo padrão de negação coletiva. Mas os negacionistas acreditam que a tecnologia vai resolver tudo. Quando a realidade é incómoda, quando mexe com identidades, quando implica mudar hábitos, ou quando ameaça o “imaginário de estabilidade” surge imediatamente uma camada de negação cultural.
O humano civilizado, no fundo, teme admitir que está vulnerável, está a mudar, ou está a aproximar-se de um ponto de viragem. As sociedades colapsam por se recusarem a interpretar os sinais. De acordo com a AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo), o ano de 2024 fechou os números para as migrações com milhão e meio de estrangeiros residentes em Portugal. Esse número representava o quádruplo em relação a 2017, quando havia pouco mais de quatrocentos mil. Mas um outro problema tem a ver com a distribuição geográfica dos imigrantes, que estão muito concentrados na Região de Lisboa e Vale do Tejo. Portanto, os negacionistas que dizem “a imigração não é um problema” estão a ignorar dados muito concretos.

Por que é que algumas pessoas continuam a negar que a imigração seja um “problema”? Do ponto de vista sociológico e político, há várias razões. Muitos argumentam que os imigrantes trazem mão-de-obra, pagam contribuições para a Segurança Social e ajudam a compensar o declínio demográfico. De fato, a imigração pode ser economicamente benéfica. Mas isso não elimina os desafios de integração, habitação, pressão nos serviços públicos. Há pessoas (e partidos) que veem a imigração como algo positivo e moralmente desejável, e que rejeitam a ideia de “controlo rígido” por razões humanitárias ou cosmopolitas. Para esses, criticar a imigração em massa é xenofobia. E isso dificulta um debate mais realista. Alguns políticos evitam discutir o impacto real da imigração para não dar força a partidos de extrema-direita. Mas isso pode levar a subestimação dos problemas reais. Daí o receio de falar nos números reais para não fomentar o ódio.

Sem políticas claras, o aumento acelerado de população estrangeira gera tensões sociais, segregação, ou desigualdades no acesso a oportunidades. E negar a magnitude da imigração torna difícil fazer um planeamento público eficaz (orçamentos, habitação, educação, emprego). O fenómeno não é simples, mas os dados são claros: a imigração em Portugal cresceu muito. É legítimo querer que esse crescimento seja discutido de forma aberta, responsável e séria, não apenas politicamente, mas também sociologicamente.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Um cidadão cético e irónico


"Onde já vai o tempo das certezas?": - perguntava Casimiro, nascido e criado na Ilha das Flores (o sítio mais ocidental da Europa). Ele nunca teria sido um político "profissional", ou militante de partido político. Considerava-se de "esquerda" como 'sói dizer-se', mas não tinha nada contra a "direita". Não tinha espírito de fação. Dizia: "Entre as Flores e Quioto há vários modelos interpretativos do Universo". Por conseguinte, qualquer teoria científica padrão valia o que valia. Ninguém sabe o que é o Universo. Mas não negava que se descesse às trincheiras era para pisar os calos aos facciosos de trincheira. Via valor nas ideias progressistas, mas recusava a lógica tribal. Podia pensar politicamente, mas não conseguia pertencer politicamente. Uma posição desconfortável que o coloca entre campos de pedregulhos, nada férteis. 

A paisagem do mundo político vê-se melhor fora das trincheiras. É demasiado vasto para caber em certezas permanentes. Ainda há alguma gente sem feitio para partidário, embora abrace a cidadania como prática reflexiva, tipo Sócrates de Platão. A política não devia ser um campo de batalha entre identidades, mas entre ideias sem bandeiras. Os seres humanos são os seres mais imperfeitos do Universo. Os erros da espécie humana são incomensuravelmente maiores do que os da espécie macaca. É a complexidade.

Ser cético, no sentido filosófico clássico, não é ser niilista. É recusar aceitar afirmações sem exame nos limites da consciência. Em política, traduz-se em evitar fanatismos, resistindo à propaganda. Um cético não é um agnóstico da política; é um crítico da estupidez política com escarninho. O cético é contra o mito da infalibilidade. E com ironia, tira um raio-X à moral, para mostrar onde estão os ossos partidos da argumentação. A participação política não exige que se seja militante de slogans. O mundo político é demasiado trágico para ser levado a sério. Em suma, Casimiro detesta tribalismos e mentiras ideológicas. Fora das trincheiras via melhor a paisagem. Critica tanto aqueles que se dizem de direita; como os líricos que se dizem de esquerda. O debate é: "a condição" da Liberdade. 

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

A ordem do mundo em transição


O Ocidente, durante séculos, construiu a sua força sobre uma racionalidade instrumental e hierárquica, herdeira do pensamento grego (logos), temperada pela teologia cristã (moral teleológica) e refinada pela ciência iluminista. Essa racionalidade - cartesiana - permitiu à Europa dominar o mundo. Entretanto, com as duas guerras mundiais [1914-1919; 1939-1945] o Ocidente entrou num movimento de autoflagelação. O horror das duas guerras, e do Holocausto, gerou uma reação ética centrada na pessoa. Eram os Direitos Humanos supervisionados pela Organização da Nações Unidas. As democracias liberais passaram a medir a sua legitimidade, não pela eficácia estratégica, mas pela empatia e pela expressão moral. Esse movimento produziu o que poderíamos chamar de Estado Social: uma ideologia de bem-estar, de psicologia aplicada, de comunicação afetiva e de culto da autenticidade. 

Tudo isso gerou uma ideia de política que se traduziu na incapacidade de tomar decisões depois de se ter implantado a CEE, hoje com o nome de União Europeia. Hoje a racionalidade é diferente, com o aproximar da hegemonia a Oriente por parte da China. Mais paciente, mais hierárquica, planificando a economia em tempos longos, em suma, levou a que Deng Xiaoping tenha virado a página do maoismo para de novo para o confucionismo. E assim preparou o caminho para que hoje Xi Jinping se dê ao luxo de disputar a hegemonia do poder mundial com Donald Trump e Vladimir Putin. O seu poder é visto como parte de uma ordem cósmica; não é para ser questionado, mas para ser exercido sabiamente, em que a História é uma espiral, não uma linha de progresso. O futuro pertence a quem sabe esperar. 

A estabilidade social é mais importante que a autodeterminação individual. Xi Jinping compreendeu que a China podia usar as próprias virtudes liberais do Ocidente pela via do comércio livre em circulação pelo mundo, e foi assim que abriu canais de infiltração gradual para Ocidente. Em vez de entrar em choque direto, foi entrando lentamente e absorvendo. Xi Jinping adopta a este tempo a “Arte da Guerra” de Sun Tzu: vencer sem lutar nem guerrear.

Enquanto isso, o Ocidente enfraqueceu a sua musculatura estratégica ao moralizar o poder. Seja pelo discurso do trauma, seja pela igualdade afetiva e empática. É um humanismo bonito, mas inoperante na lógica das potências. Ao mesmo tempo, essa cultura emocional é altamente instável: muda ao ritmo das redes sociais, das indignações mediáticas e da emoção pública. A consequência é que a política tornou-se refém do humor coletivo, algo que Confúcio teria considerado impensável. Xi entende que a vitória não virá de uma guerra frontal (seria contraproducente), mas de uma erosão sistemática da confiança do Ocidente em si mesmo. Incentiva divisões ideológicas internas espartilhadas por geografias que já se desatualizaram em espetros como: esquerda/direita volver; globalismo/nacionalismo; capitalismo/socialismo; liberalismo/marxismo. Em suma, Xi não precisa invadir, basta-lhe esperar que o Ocidente, emocionalmente fragmentado, se desgaste a si mesmo.

Desde a Segunda Guerra Mundial, o Ocidente - sobretudo a Europa e, depois, os Estados Unidos - passou a legitimar o poder político através da emoção moral. O trauma das guerras levou à crença de que a paz só seria possível se o poder fosse controlado pela emoção. Daí o surgimento de toda uma gramática política: direitos humanos, igualdade, diversidade, justiça social, inclusão. Tudo isso é nobre e civilizado. Mas, em termos geopolíticos, tem um preço: a incapacidade de decidir. Cada decisão tem de passar pelo filtro da opinião pública. As decisões mais certas são as racionais. Mas são as que mais doem no corpo da cidadania. Ora, particularmente na Europa, os governantes preferiram o "bem-estar" dos cidadãos em detrimento do "tem-de-ser e o que tem-de-ser tem muita força". 

A União Europeia tem sido paradigmática na aversão ao risco, seguindo a via do consenso, da unanimidade, não a via da eficácia, da impopularidade. E os EUA, por sua vez, alternam entre moralismo democrático (Democratas) e populismo ressentido (Republicanos), sem uma coerência estratégica que sobreviva mais do que quatro anos. Xi Jinping não precisa justificar nada: a moral não é um critério político. O seu cálculo é estritamente confuciano. Cada movimento é uma peça num jogo de harmonia e poder a longo prazo. Por isso, ele pode cometer ações que o Ocidente considera “inaceitáveis” (como repressões internas ou expansão no Mar do Sul da China) sem perder legitimidade interna. A China procura influência através de projetos duradouros, ofertas económicas e redes de dependência (construção de infraestruturas, financiamento de portos, corredores e centros logísticos). A lógica é não confrontar frontalmente, mas criar interdependência e ganhos legítimos que depois se transformam em alavancas políticas. Isto é exatamente o papel do Belt & Road: investimento e ligação material que geram influência estratégica a longo prazo. 

O Ocidente, por contraste, tende a reagir de forma episódica e moral: sanções pontuais, declarações de condenação, ajuda condicionada a reformas. Resultado prático: ganhos morais mas pouca capacidade de construir lealdades duradouras quando comparados com contratos de desenvolvimento e infraestrutura que chegam hoje. E ficam. O que explica porque muitos países do Sul preferem a previsibilidade chinesa. A China combina diplomacia coerciva e presença naval/paramilitar em zonas sensíveis como o Mar do Sul da China, apoiada por legislação, guardas costeiras e projeção gradual de força. O facto consumado sem guerra aberta. As frequentes e intensas operações navais contra os navios de outros Estados é um exemplo dessa estratégia de pressão sustentada. O Ocidente, e sobretudo as democracias, respondem com patrulhas, alegações jurídicas, sanções e alianças reativas - úteis, mas muitas vezes insuficientes para contrariar um processo de erosão lenta quando falta um horizonte estratégico unitário e persistente.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Símbolos florais em revoluções



Embora o cravo vermelho se tenha tornado um símbolo único e profundamente associado ao 25 de Abril de 1974, existem paralelos interessantes noutras revoluções ou movimentos anteriores. Por exemplo, a rosa vermelha foi um símbolo importante nos movimentos socialistas e trabalhistas europeus. Representava a luta pelos direitos dos trabalhadores, justiça social e solidariedade. Curiosamente, há referência a uma “Revolução dos Cravos” protagonizada por um movimento na Macedónia, em1903. Mas apenas nominal, sem ter acontecido efetivamente. Na Rússia, durante a queda do czar em 1917, há relatos de floristas oferecendo flores aos soldados, em que estes as colocavam no cano das espingardas. E é icónica a fotografia de George Harris a colocar uma flor no cano da espingarda de um soldado durante um protesto contra a Guerra do Vietname, em 1967.

Daí a ideia de alguns semiólogos que “alguém esclarecido forjou o símbolo dos cravos”. E isso é compreensível como hipótese intuitiva. Afinal, o uso de um símbolo tão forte parece ter uma intenção prévia. Mas as evidências históricas disponíveis não apontam para uma ação organizada ou planeada. Tudo o que sabemos indica que o surgimento dos cravos foi espontâneo e contingente, resultado de circunstâncias muito particulares naquele dia. Celeste Caeiro era empregada de um restaurante que celebrava o aniversário naquele dia. E foi apanhada de manhã cedo, quando ia trabalhar, com um grande cesto de cravos para serem oferecidos nesse dia aos clientes. Com a cidade tomada pelos militares, ela viu-se envolvida naquele tipo de situação em que nem ela nem ninguém sabe explicar muito bem como aconteceu. A verdade é que, às tantas, os cravos se espalharam por mãos de transeuntes anónimos e soldados no caminho de Celeste Caeiro. E o que acabou intuitivamente por acontecer foi quando os militares começaram a colocá-los no cano das espingardas.

A adesão foi imediata porque o símbolo encaixou no espírito do movimento. O MFA queria uma revolução sem sangue, e espalhou os soldados pelas ruas. E isso coincidiu, mal foram vistos, com a simpatia popular que há muito ansiava por aquele dia [como tão bem disse a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen]. Uma flor encaixou perfeitamente nesse ambiente. Não há indício de premeditação. As revoluções têm símbolos que às vezes emergem de modo orgânico. Após o dia 25, jornais, rádio e fotógrafos amplificaram a imagem. Os cravos tornaram-se símbolo oficial gradualmente, não pela mão de um “mentor” secreto. Não houve mão esclarecida. Houve sincronia histórica.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Museu Nacional Romano





O Museu Nacional Romano é um museu estatal italiano sediado em Roma. Abriga coleções sobre a história e cultura da cidade nos tempos antigos. É propriedade do Ministério da Cultura, que desde 2016 o inclui entre os institutos museológicos com autonomia especial. Originalmente inaugurado em 1889, o museu estava localizado nas Termas de Diocleciano e no mosteiro adjacente da Basílica de Santa Maria degli Angeli e dei Martiri, obtidas de estruturas pertencentes ao mesmo complexo termal. Na década de 1990, o museu passou por extensas remodelações, o que levou à subdivisão das obras entre o local original e outros três espaços de exposição.

O museu é considerado por alguns textos como um dos mais importantes do mundo, também porque preserva algumas obras-primas absolutas da escultura antiga, incluindo o Boxeador em Repouso, o Príncipe Helenístico, o Niobida Ferido, o Gaulês Suicida e, da coleção Ludovisi: o Trono, o Acólito e o Sarcófago de Portonaccio.


O Sarcófago de Portonaccio - é um sarcófago romano antigo, do século II, encontrado no bairro de Portonaccio em Roma, mantido no Museu Nacional Romano - Palácio Massimo. Datado entre 190 e 200, foi usado como sepultura de um general romano envolvido nas campanhas de Marco Aurélio. Apresenta influências semelhantes às da Coluna de Marco Aurélio.

O sarcófago faz parte de um grupo de cerca de 25 sarcófagos de batalha romanos tardios, com uma excepção, todos aparentemente datando de 170-210, feitos em Roma ou, em alguns casos, Atenas. Estes derivam de monumentos helenísticos de Pergamon na Ásia Menor, mostrando as vitórias de Pergamene sobre os gauleses, e foram todos presumivelmente comissionados para comandantes militares. O Sarcófago de Portonaccio é o mais conhecido e elaborado do grupo principal de Antonino e mostra semelhanças consideráveis com o Sarcófago de Ludovisi, o sarcófago tardio de cerca de 250, e um contraste considerável em estilo.



Discobolus no Museu Nacional - Palazzo  Massimo alle Terme



Palazzo Massimo alle Terme 
viso da Piazza dei Cinquecento

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Uma teoria para justificar a chegada de Hitler a chanceler


É a teoria de que o comunismo foi a principal causa política que moveu o eleitorado a votar no partido nazi. Porque se não fosse o comunismo o eleitorado não votaria nos nazis. Hitler chegou ao poder pelo jogo lícito democrático, e não por nenhum golpe militar, como tantos nesse século XX. Mas não foi o comunismo que “gerou” o nazismo. Foi o pavor do comunismo, num contexto de colapso das instituições liberais, que deu ao nazismo a aparência de uma alternativa de ordem.

A República de Weimar, oficialmente conhecida como Reich Alemão, foi um período histórico da Alemanha de 9 de novembro de 1918 a 23 de março de 1933, durante o qual foi uma república federal constitucional pela primeira vez na história. O nome informal do período é derivado da cidade de Weimar, que sediou a assembleia constituinte que estabeleceu o governo. Após a devastação da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Alemanha estava exausta. A consciência da derrota iminente desencadeou uma revolução, a abdicação do Kaiser Guilherme II, a rendição formal aos Aliados e a proclamação da República de Weimar em 9 de novembro de 1918.

Nos seus primeiros anos, graves problemas assolaram a República, como a hiperinflação e o extremismo político, incluindo assassinatos políticos e duas tentativas de tomada de poder por paramilitares rivais. Em 1924, uma grande estabilidade monetária e política foi restaurada e a república desfrutou de relativa prosperidade durante os cinco anos seguintes. Este período, às vezes conhecido como os Anos 20 Dourados, foi caracterizado por um florescimento cultural significativo, progresso social e melhoria gradual nas relações externas. Em 1920 aderiu à Liga das Nações, o que marcou a sua reintegração na comunidade internacional. No entanto, especialmente na direita política, permaneceu um ressentimento forte e generalizado contra o tratado e aqueles que o assinaram e apoiaram.

A Grande Depressão de outubro de 1929 impactou severamente o ténue progresso da Alemanha. O alto desemprego e a subsequente agitação social e política levaram ao colapso da coligação liderada pelo chanceler Hermann Müller. A partir de março de 1930, o presidente Paul von Hindenburg usou poderes de emergência para apoiar os chanceleres Heinrich Brüning, Franz von Papen e o general Kurt von Schleicher. A Grande Depressão, exacerbada pela política de deflação de Brüning, levou a um aumento do desemprego. Em 30 de janeiro de 1933, Hindenburg nomeou Adolf Hitler como chanceler para chefiar um governo de coligação. No final de março de 1933, o incêndio do Reichstag foi aproveitado por Hitler para reforçar o seu poder. Hitler utilizou este pretexto para impedir a governação constitucional e suspender as liberdades civis. O que provocou o rápido colapso da democracia a nível federal e estatal, e a criação de uma ditadura de partido único sob a sua liderança.

Em 1918/19, houve revoltas comunistas, como a da Liga Espartaquista, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que tentaram implantar uma república soviética à semelhança da Rússia bolchevique. Essas tentativas foram sangrentas e deixaram uma memória de pavor entre as classes média e alta. E mesmo entre muitos trabalhadores, que temiam perder a pouca estabilidade que tinham. Por isso, quando o Partido Comunista Alemão (KPD) cresceu eleitoralmente durante a Grande Depressão, grande parte da população passou a ver o nacional-socialismo como um "mal necessário" para evitar o comunismo.

O NSDAP – o partido de Hitler – chegou ao poder através de eleições legítimas. Hitler foi nomeado chanceler em janeiro de 1933 após o partido se ter tornado o maior do Reichstag, embora sem maioria absoluta. Muitos votaram nele não por antissemitismo, nem por convicção ideológica, mas porque viam no nazismo a única força capaz de manter a ordem e impedir uma revolução vermelha. O próprio Joseph Goebbels explorava esse medo. Um especialista da propaganda, difundia a ideia de que o comunismo era o provocador do caos, do fogo, da destruição da família, da propriedade e da religião. Sem o espectro do comunismo, o nazismo talvez nunca tivesse tido o impulso eleitoral que o levou ao poder. O comunismo foi o inimigo imaginário que Hitler explorou para mobilizar as massas. Mas é importante notar que isto não absolve o nazismo – um totalitarismo simétrico – cada um à sua maneira, expressões distintas da mesma crise da modernidade. Ambos provocaram uma anomia e tal desespero que levou ao colapso do liberalismo democrático.

Pode-se argumentar que o comunismo, pela sua difusão global e longevidade, causou mais mortes e destruição ao longo do século XX do que o nazismo. Mas, em termos lógicos, usar o comunismo como causa do nazismo é manifestamente exagerado. O comunismo pode ter criado o contexto que levou ao medo. O medo é que determinou o triunfo do nazismo. Mas havia muitos outros fatores: o Tratado de Versalhes; a crise de 1929; a humilhação nacional e o ressentimento social; e o vazio espiritual da época.

Nas eleições parlamentares de maio de 1928, o NSDAP (partido nazi) tinha apenas 2,6% dos votos. Era um grupo marginal. O Partido Comunista Alemão (KPD), por sua vez, já tinha 10,6%. Mas depois da crise de 1929, o desemprego disparou para 6 milhões, e tudo mudou.


Pesquisas posteriores (como as de Jürgen Falter e Detlef Mühlberger) mostram que nas regiões industriais (Berlim, Ruhr, Saxónia), o voto comunista era forte. Nas regiões rurais, protestantes e de classe média, o voto nazi cresceu com força em resposta direta ao avanço do KPD. O historiador Ian Kershaw, biógrafo de Hitler, resume isto assim: “O medo do comunismo foi o cimento que uniu a burguesia e a classe média em torno de Hitler. Ele prometia ser o único capaz de conter o colapso total.” Assim, o voto nazi foi, em grande parte, um voto de autodefesa de classe contra a ameaça da revolução proletária.

Estudos de comportamento eleitoral - Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt - mostram que o NSDAP atraiu sobretudo as classes médias em declínio – pequenos comerciantes, funcionários, agricultores endividados – que se sentiam ameaçados pela proletarização. O KPD atraía os operários industriais urbanos, muitos desempregados e radicalizados. Entre 1930 e 1932, à medida que o Partido Comunista crescia nos centros urbanos, o Partido Nazi consolidava-se nas periferias e no interior, com uma mensagem de “ordem contra o caos”. A polarização entre comunistas e nazis acabou por esvaziar o centro político. Os dois grandes partidos moderados – o Social-Democrata (SPD) e o Católico (Zentrum) – foram esmagados entre esses extremos. O resultado foi que Hitler chegou ao poder pelo voto (com o apoio da direita tradicional e do medo das elites), sem precisar de golpe militar. Foi uma autodestruição democrática, catalisada pelo terror ao comunismo. O nazismo foi, em parte, a reação patológica da sociedade liberal alemã ao trauma comunista: uma espécie de doença autoimune que acabou por matar o próprio corpo político.


segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Retrato de uma Jovem

 


Domenico Ghirlandaio

Retrato de uma Jovem [Ritratto di Giovane Donna, em italiano] -- Pintura a têmpera sobre madeira (44 x 32 cm) do pintor italiano da Renascença - Domenico Ghirlandaio (1490). Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa.

A personagem retratada nesta tábua lembra as figuras da família Sassetti pintadas a fresco pelo artista para a Capela Sassetti da Igreja da Santa Trindade, em Florença. Traja à moda florentina da época da Renascença com indumentária sobreposta e ajustada ao corpo com decote enfeitado com um colar de coral.

As representações femininas de Ghirlandaio, como as de Botticelli, adequam-se ao compromisso estético que privilegia a estilização idealista numa unidade decorativa de conjunto. É a época em que se assiste à difusão do retrato da burguesia. É ao gosto da caracterização realista do retrato. O delicado equilíbrio da forma, e a harmonia das associações cromáticas, deixam adivinhar a aspiração a um ideal de ordem como princípio de composição. Este fenómeno corresponde a uma tendência generalizada da arte que tinha a ver com a filosofia humanista . 

Este retrato é um belo exemplar das representações do Quatrocento. Apresenta a cabeça voltada a três quartos, sobre fundo neutro, de acordo com a prática anterior à introdução de paisagem em segundo plano. O corte situa-se um pouco abaixo dos ombros e o rosto, embora tratado sem excessiva atenção ao detalhe, manifesta uma procura de figuração naturalista, uma vontade de “fazer verdadeiro”.

De acordo com a página do Museu Gulbenkian, os proprietários da obra foram os seguintes: Conde Savonelli, Roma, 1860; George Spiridon, 1860-1887; Joseph Spiridon, Paris, 1887-1929; venda por Joseph Spiridon a Cassirer & Helbing, em Berlim, a 31 de maio de 1929. Adquirida por Calouste Gulbenkian por intermédio de Duveen a Arthur Julius Goldschmidt, em junho de 1929.



Retrato idealizado de uma jovem como Flora

Retrato Idealizado de uma Jovem como Flora é uma pintura a óleo de Bartolomeo Veneto, datada de cerca de 1520, na coleção Städel, Frankfurt. A imagem foi pintada em têmpera e óleo em um painel de madeira de álamo medindo 43,6 cm por 34,6 cm. A imagem era, com base em uma tradição, anteriormente considerada um retrato de Lucretia Borgia, a notória filha de Rodrigo Borgia, mais conhecido como Papa Alexandre VI. No entanto, o Städel, descreve o retrato apenas como uma "senhora desconhecida", que está vestida e estilizada como Flora, a deusa romana da primavera e das flores.

A imagem pertencia a Friedrich Jakob Gsell (1812–1871) e foi listada como parte de sua propriedade em 1871. Foi vendido por Georg Plach a Louis Kohlbacher (para o Frankfurter Kunstverein) em 14 de março de 1872. Foi vendido como uma obra da "Escola Florentina" para o Städel em 11 de abril de 1872. 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O sentido evolutivo do instinto à intuição


Instinto, comportamento inato e intuição: parecem, à primeira vista, designar o mesmo tipo de fenómeno – algo que surge “de dentro”, sem raciocínio consciente –, mas pertencem a níveis diferentes da experiência e da evolução mental.

Comportamento inato = é programado geneticamente, isto é, transmitido pela herança biológica e partilhado por toda a espécie. Instinto = é o nome que damos, em linguagem comum e etológica, a esse tipo de comportamento automático, adaptativo e orientado para a sobrevivência. Esses atos não exigem experiência, nem cultura ou reflexão – são pré-programas da vida. Podemos dizer que o instinto é o inato em ação. A intuição é um fenómeno diferente. Não é puramente biológica. Ela envolve a mente, a experiência e a aprendizagem. Mas opera abaixo do limiar da consciência racional. A intuição é um tipo de conhecimento imediato, que não passa pelo raciocínio lógico nem pela análise deliberada. Surge como uma síntese rápida do que o cérebro já aprendeu e armazenou, mesmo que não saibamos explicar como. Por exemplo: um médico experiente “sente” que algo está errado com um paciente antes dos exames; um artista “sabe” que certa cor ou forma funciona melhor; um motorista evita um acidente num reflexo inteligente que não é puro instinto.

Enquanto o instinto/inato é meramente biológico, do nível pré-racional, a intuição é já dum nível superior, digamos mental, ainda que não ciente. Alguns filósofos e psicólogos consideram a intuição uma forma superior de instinto, um instinto intelectualizado, que se manifesta como orientação simbólica ou criadora. Enquanto o instinto “sabe o que fazer” na prática do corpo no espaço físico, a intuição “sente o que é verdadeiro” no espaço do mental. Vejamos brevemente como Jung, Bergson, Kant e Merleau-Ponty entenderam a intuição.

Jung = A intuição é uma das quatro funções fundamentais da consciência, ao lado do pensamento, sentimento e sensação. Mas é também a mais misteriosa, porque não depende dos sentidos nem da lógica. Ela capta possibilidades, significados e direções antes que a mente racional os reconheça. A intuição, para Jung, é um instinto espiritualizado. Assim como o instinto “sabe o que fazer” no plano da sobrevivência, a intuição “sabe para onde ir” no plano simbólico e existencial. Ela liga o consciente ao inconsciente coletivo, a essa reserva de imagens e arquétipos que orientam o comportamento humano desde tempos imemoriais. Por isso, a intuição é também uma ponte entre o biológico e o mítico, entre a natureza e o espírito.

Bergson = Vai ainda mais fundo na dimensão filosófica. Para ele, a intuição é a forma de conhecimento que se liga mais verdadeiramente à vida. Um mistério para se dizer, mas é o que temos de mais direto na ligação a esse mistério do que é a vida. É, por assim dizer, o interior de tudo aquilo que se move no tempo num fluxo contínuo. O intelecto através da ciência congela a realidade em conceitos e abstrações. A intuição, pelo contrário, penetra no movimento, acompanha a vida por dentro. Instinto tornado consciente de si: isto mostra que Bergson vê a intuição como uma evolução do instinto, um salto qualitativo da vida que, ao chegar ao humano se transforma em compreensão interior do mundo.

Kant = Usa a palavra “intuição” - Anschauung - num sentido totalmente diferente. Não místico, nem psicológico, mas epistemológico. Para Kant, a intuição é a forma como o sujeito apreende o objeto na sensibilidade. É a base do conhecimento empírico. Não é um “sexto sentido” ou “pressentimento”, mas a capacidade de receber representações imediatas: ver, ouvir, tocar são intuições sensíveis. O espaço e o tempo, para ele, são as formas puras da intuição humana, isto é, moldes internos que estruturam toda a percepção. “Intuição é a representação imediata de um objeto.” Kant, diz isso na Crítica da Razão Pura. Assim, Kant distingue intuição sensível de intuição intelectual. É como se a intuição sensível estivesse acessível a todos os seres humanos, acessível a gente comum; ao passo que a intuição intelectual fosse um privilégio acessível a uma percentagem de gente privilegiada, a que os antigos chamavam sábios ou profetas. O homem comum, portanto, intui apenas o que aparece, nunca a coisa em si.

Maurice Merleau-Ponty = A intuição é como o corpo em presença. Merleau-Ponty faz a síntese: biologia + fenomenologia. Ele retoma o sentido kantiano da percepção, mas de uma forma corpórea ou embutida na carne. A intuição é o contacto direto e corporizado com o mundo, antes da linguagem e do pensamento. Quando comtemplo uma paisagem, o meu corpo já compreende as suas formas pela mera presença. O mundo incorpora-nos, fazemos parte dele, não estamos separados. Intuir é ser tocado pelo mundo, e não apenas percebê-lo. O corpo é o lugar dessa reciprocidade. A intuição é a presença total do ser em si mesmo. Merleau-Ponty diz isso na Fenomenologia da Percepção. Assim, podíamos dizer que a intuição é como o fio contínuo da vida. Desde os primeiros seres vivos, há uma sabedoria implícita que orienta a sobrevivência e a adaptação. Esse saber não é pensado nem aprendido: é vivido. O instinto é a primeira expressão dessa sabedoria da vida, um saber fazer sem consciência.

À medida que a complexidade dos organismos em evolução aumentou, o instinto começou a abrir espaço à experiência. Passou a ser mais do que apenas ação reflexa. Quando a vida se reflete sobre si mesma – isto é, quando o homem aparece –, o instinto transforma-se em intuição: uma consciência obscura, mas já simbólica da direção das coisas. Podemos imaginar a evolução do conhecimento como uma escada e os seus degraus: Instinto, como o saber da espécie, do corpo e dos genes, atua automaticamente, sem deliberação. Intuição, como o saber do indivíduo em sintonia com o todo. É a antecipação, o pressentimento, o sentido da direção. Une a memória inconsciente, a percepção sensível e o campo simbólico. Razão, é o saber que se explica a si mesmo. É o conhecimento discursivo, analítico, que traduz em conceitos o que a intuição capta de forma imediata. A razão não é superior, mas posterior. É como o eco da compreensão ou entendimento, mais profunda e silenciosa.

Há um momento na evolução da vida em que surge a intuição, acrescentando, ao ditame da sobrevivência, a verdade. O homo sapiens começa a intuir não apenas o útil ou essencial, mas também o supérfluo: o bom e o belo. O sentido de justiça deriva de uma síntese ou simbiose do bom e do belo. Dito por outras palavras: ética e estética como sentido simbólico da vida. É neste ponto que o "físico" passa a “metafísico”. Uma comunhão direta com o Ser. Os místicos antigos chamaram-lhe iluminação. Os filósofos modernos chamam-lhe consciência pura.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

A intuição política como “olfato do tempo”


Há políticos que “sentem o tempo histórico” antes que ele se formule racionalmente, e isso está muito próximo do que Bergson ou Jung chamariam de intuição vital ou intuição simbólica, um saber pré-conceptual do rumo das forças coletivas. A política, antes de ser gestão, é leitura da emoção e estados de alma. O político intuitivo não parte de números, sondagens ou relatórios, cheira a mudança no ar, percebe as emoções subterrâneas que a maioria ainda não verbalizou. É uma espécie de radar da emoção coletiva. Pode-se, assim, sintetizar numa frase: 
“A intuição política é a arte de compreender o estado invisível do povo”. Um Mandela, ou um Mário Soares tiveram intuição profética, sentiram as forças do seu tempo.

Essa sensibilidade é poderosa, porque antecipa o que está para vir, o poder das massas. Os líderes populistas demonstram uma forma de intuição que não é intelectual. Não se funda em leitura sistemática, mas em ressonância afetiva com certos estados latentes da sociedade: ressentimento, cansaço moral, desconfiança nas elites, e desejo de simplificação. Há nisso algo que os intelectuais frequentemente ignoram. A política não é movida por dados, mas por representações emocionais. Quem capta essas emoções, mesmo que de modo visceral, antecipa o campo de batalha antes dos racionalistas chegarem com os seus gráficos. É intuição sociológica empírica, que se alimenta da escuta inconsciente do corpo social.

O excesso de lógica e de dados científicos ofusca a intuição. Bergson já o dissera de modo quase profético: a inteligência tende a cristalizar a vida, a fixar o móvel, a perder o contacto com o real que se move. A razão analisa o que já aconteceu; a intuição sente o que está a acontecer; e o instinto político, quando elevado, sente o que vai acontecer. Assim, muitos políticos tecnocratas, mergulhados em relatórios, tornam-se epistemologicamente lentos. Percebem o que mudou só depois de a mudança se ter instalado. O intuitivo, ao contrário, atua no germe da transformação, quando ela ainda é sentimento difuso.

A intuição não é, contudo, o alfa e o ómega. Ela pode servir tanto para unir como para dividir. Um político intuitivo sente o medo, o orgulho, a humilhação coletiva, e pode escolher acalmar ou explorar esses sentimentos. Ventura, nesse sentido, domina a temperatura emocional, mas não necessariamente a orienta para um bem coletivo. Outros políticos, mais racionais, têm boas intenções mas não sentem o pulso da época, e, por isso, vivem da memória passada, quando o povo já vive na memória futura.

A diferença entre um profeta e um demagogo está precisamente no uso da intuição. O profeta sente as dores do tempo e tenta redimir o povo através da verdade. O demagogo sente as mesmas dores, mas tenta explorá-las em proveito próprio. Ambos são intuitivos, o que os distingue é o nível de consciência moral. E talvez o drama das democracias contemporâneas seja: o facto de o inconsciente coletivo estar no seu limiar inferior, e ser vulnerável aos demagogos populistas; e o facto de a racionalidade se ter debilitado pela benevolência e pelo otimismo utópico; e
 os povos oscilam entre fascínio e medo.

A intuição política autêntica nasce de uma escuta profunda. O político sente os medos, esperanças e tensões do seu tempo, e procura dar-lhes forma racional ou ética. Mas há um momento perigoso em que essa escuta se converte em mimetismo: o político já não interpreta o povo, apenas repete os seus impulsos. O verdadeiro estadista consciencializa; o populista acentua o inconsciente coletivo do medo. Essa inversão é o coração do populismo: a substituição da mediação pela amplificação. A democracia degrada-se quando deixa de estar ligada à compreensão simbólica do real e passa a ser usada como mecanismo de ressonância emocional. Em termos junguianos, poderíamos dizer que o político intuitivo, ao invés de integrar os conteúdos do inconsciente coletivo, é possuído por eles. Na fase saudável, ele capta o que é difuso e dá-lhe forma (liderança simbólica); na fase degenerada, ele dissolve-se nas pulsões do grupo (liderança tribal). Daí o paradoxo: o populista não lidera o povo, é liderado por ele, ainda que o povo não o perceba. A multidão fala por sua boca.

Gustave Le Bon, na sua célebre Psicologia das Multidões (1895), antecipou este fenómeno: quando o líder compreende intuitivamente o imaginário coletivo e o reflete, a massa sente-se compreendida e confia nele sem exigir coerência. O político torna-se um espelho mágico: diz o que as pessoas sentem, não o que elas sabem; transforma o descontentamento em identidade; converte a emoção difusa em narrativa moral. Essa alquimia é uma forma de intuição social degenerada, porque ela não ilumina o inconsciente coletivo, apenas o excita.

É a tragédia das elites racionalistas e tecnocráticas. Na ânsia de se afastarem da irracionalidade, elas perdem o contacto com o imaginário popular. Mas, ao fazê-lo, deixam o campo livre para os intuitivos sem ética, que ocupam o espaço simbólico com mensagens simples e viscerais. O racional descreve os factos; o intuitivo sem ética dramatiza os factos; o populista transforma o drama em espetáculo. E o povo, carente de representação emocional, prefere o espetáculo à análise.

O processo racional de recolher dados, fazer estudos e projetar políticas é mais lento que o processo emocional e intuitivo. 
A opinião pública reage em “tempo curto”, sobretudo quando há mudanças visíveis, por exemplo, aumento rápido da presença de imigrantes em certos bairros, pressão sobre serviços públicos, etc. Os decisores políticos que dependem de relatórios e consensos institucionais costumam responder em “tempo longo”. Daí a vantagem momentânea do político intuitivo: ele capta o mal-estar antes de ele ser avaliado. Mas captar não é o mesmo que compreender; é apenas o primeiro passo. Em qualquer democracia, há uma lacuna entre a percepção popular (“estamos a ser invadidos”; “não há controlo”); e a análise técnica (estatísticas, comparações europeias, efeitos económicos). Esse desfasamento cria o terreno onde floresce a acusação de “cedência”: quando um governo começa a ajustar políticas em resposta à percepção pública, os adversários interpretam isso como se tivesse rendido ao discurso do populista.

Há um valor na intuição política: ela acorda a classe dirigente para realidades ignoradas. Mas, se o ajuste for feito por reflexo emocional e não por planeamento, o resultado é um pêndulo: políticas apressadas seguidas de recuos. A esquerda tende a enfatizar valores humanitários e benefícios da imigração. A direita moderada (como Montenegro e a AD) procura equilíbrio entre acolhimento e controlo. Os partidos populistas ganham espaço por dramatizarem o tema e falarem o idioma emocional do eleitorado. A direita tradicional, para não perder contacto com o sentimento coletivo, ajusta o discurso, o que é visto pela esquerda como “cedência”. Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. É estrutural nas democracias com fluxos migratórios intensos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Êxtase de Santa Teresa



Êxtase de Santa Teresa Santa Maria della Vittoria em Roma - é uma obra-prima de Bernini. Foi baseada num episódio relatado por Santa Teresa de Ávila em sua autobiografia. Santa Teresa sentiu um serafim atravessar o seu coração com uma lança dourada que lhe causou intensa dor em êxtase. A roupa esvoaçante e a pose contorcida revelam um transe apaixonado e voluptuoso.

Santa Maria della Vittoria é uma igreja titular dedicada a Nossa Senhora. A igreja fica no rione Sallustiano, na esquina da Via XX Settembre com o Largo Santa Susanna, ao lado da Fontana dell'Acqua Felice, e a sua fachada espelha a de Santa Susanna, do outro lado do largo. A igreja data de 1605 como uma capela dedicada a São Paulo, utilizada pelos carmelitas descalços. Depois da vitória católica na Batalha da Montanha Branca em 1620, que interrompeu o avanço da Reforma na Boémia, a igreja foi dedicada à Nossa Senhora. Estandartes otomanos capturados no Cerco de Viena (1683) foram pendurados na igreja como parte do tema da "Vitória".


Santa Maria della Vittoria

Esculpida durante o período de 1645-1652, seguindo as tendências do estilo barroco, a escultura, em mármore e bronze dourado, está localizada na Capela Cornaro da Igreja de Santa Maria della Vittoria, Roma. É considerada uma das maiores obras-primas do Barroco e um exemplo clássico da teatralidade barroca. A beleza da obra se deve ao uso da iluminação e da fidelidade da escultura, que conferem à obra sensibilidade, pois o escultor aplicava em suas esculturas o uso de corpos alongados, gestos expressivos, expressões mais simples, porém mais emocionadas. Nesta obra, Bernini, valendo-se de sua experiência direta como organizador de espetáculos teatrais, transforma, não num sentido metafórico, mas literal, o espaço da capela num teatro.

Bernini seguia as determinações da Igreja Católica Romana, que diziam que a arte religiosa deveria ser inteligível e realista, e servir, acima de tudo, como um estímulo emocional à religiosidade. Bernini serviu a Cidade do Vaticano durante muito tempo, criando esculturas feitas por pedido.

A representação dos êxtases místicos dos santos e das suas visões do divino representa um dos temas mais caros da arte barroca: os santos com os olhos elevados ao céu ajudam - seguindo as recomendações dos Jesuítas sobre as funções pedagógicas da arte sacra - a sentir emocionalmente, com sangue e carne, o que significa a inspiração mística que conduz à comunicação com Cristo e que é apanágio da mais profunda devoção. Ainda sob este aspecto, da representação do êxtase, a obra realizada por Bernini na capela Cornaro estará destinada a abrir um precedente e a ser tomada como modelo inúmeras vezes na história da arte sacra.

A crise do SNS em Portugal


A crise do SNS [Serviço Nacional de Saúde] em Portugal, que é análoga à do Reino Unido, não é apenas técnica ou orçamental. É também sociocultural: expectativas de prolongamento da vida a todo o custo; recursos limitados. Em Portugal, cerca de 30% da despesa em saúde já é paga diretamente pelos cidadãos. A disposição constitucional do "tendencialmente gratuita" o que tende é cada vez mais para uma miragem. Precisa-se de uma campanha de saúde pública sobre envelhecimento saudável e aceitação do fim de vida – dando informação sobre expectativas realistas, e prestando cuidados mais focados na qualidade de vida do que na quantidade de anos de vida. Este é o maior desafio de política pública e de civilização.

A solução não é técnica isoladamente: exige reformas ao nível do financiamento e da reconfiguração do Serviço. É preciso engajar profissionais e sociedade numa conversa séria sobre o que é razoável esperar da medicina moderna. Portugal chegou a um nível no orçamento para a Saúde que é incomportável para o nível da riqueza que o país produz. O corporativismo médico é um dos nós mais estruturais que bloqueiam a reforma do SNS. Não se trata de desrespeitar a medicina enquanto ciência e vocação, mas de reconhecer que o modelo de autorregulação profissional, criado no passado, tornou-se incompatível com as exigências democráticas, transparentes e de prestação de contas do momento atual. A Ordem dos Médicos (como as suas congéneres europeias) nasceu para defender a profissão liberal (num tempo em que os médicos exerciam a sua profissão de forma autónoma, não como funcionários do Estado, ou trabalhadores por conta de outrem. Esse papel foi essencial num tempo em que não havia um Serviço Nacional de Saúde. Mas, desde que o Estado passou a ser o principal empregador e financiador do setor, a ordem profissional tornou-se um ator político e não apenas regulador.

O que acontece hoje é o fenómeno clássico de “captura do Estado pelo regulador”. A Ordem detém poder quase exclusivo sobre licenciamento, formação especializada e deontologia, sem mecanismos externos de escrutínio eficaz. Atua como grupo de pressão corporativa (lobby), interferindo em políticas de saúde pública, gestão hospitalar e definição de carreiras, sob o manto de “autoridade técnica”. Bloqueia as reformas estruturais, nomeadamente a expansão de competências para a profissão de enfermagem. E o fica pé no número de elementos nas equipas de urgência com o argumento falacioso da “defesa da qualidade”, quando o mesmo critério não é exigido ao setor privado.

Este corporativismo produz custos elevados e ineficiências: entradas controladas artificialmente (numerus clausus e estágios) que criaram a escassez relativa em certas especialidades. E por fim, mas o principal, a promiscuidade do "duplo emprego" público/privado. 
Em termos de economia política, é um exemplo de “renda de posição”: o grupo profissional usa o controlo sobre um recurso essencial (licença para exercer) para extrair benefícios sem aumento proporcional de produtividade ou valor social. Os governos, receosos de conflito com uma classe altamente prestigiada e organizada, têm sistematicamente evitado confrontar o poder corporativo médico. E é assim que a população se vê refém de um sistema que protege o médico mais do que o doente. Em suma, o modelo que fazia sentido no tempo da profissão liberal individual está agora desajustado a um sistema público universal, onde a medicina é uma função de Estado e de interesse coletivo. Enquanto o Estado for capturado por interesses de grupo, o SNS não poderá cumprir a promessa de universalidade e justiça.

domingo, 16 de novembro de 2025

A questão migratória em Portugal


Aplicar a grelha = política - social - moral =, especificamente à questão migratória em Portugal, tem de se fazer com menos ruído mediático em cima e no meio de uma ponte pênsil onde se abraçam as elites políticas e a sociedade civil. Portugal, por razões históricas e culturais, manteve durante muito tempo uma moral generosa. Um povo de emigrantes, com memória do partir, tem alimentado uma empatia espontânea com quem chega. Um povo eminentemente católico, em que ainda recentemente acolheu o Papa Francisco na grande Jornada Universal da Juventude. As elites políticas e mediáticas associaram-se. Ou seja, o português tem sido benevolente, animado por uma ética de hospitalidade convicto de que não é por aí além racista, se comparado com povos com os quais nos podemos comparar. 

Contudo, chegados a estes novos tempos, começou-se a perder o passo no compasso com a realidade. Os fluxos migratórios cresceram imenso na Europa da última década. No contexto da mortandade de migrantes afogados no Mediterrâneo às portas da Europa rica e civilizada, originários da Síria, mas não só, em 2015, a chanceler Angela Merkel anunciou que acolheria centenas de milhares de refugiados. E a Alemanha reagiu com humanismo. Havia o trauma europeu das guerras e a convicção de que a Alemanha, potência rica e estável, podia suportar esse esforço económico-demográfico. O país precisava de mão-de-obra jovem e qualificada. A decisão foi vista por muitos como uma reafirmação dos valores europeus: hospitalidade, solidariedade e direitos humanos. A integração revelou-se desigual: houve histórias de sucesso e outras de isolamento social. O sistema de acolhimento ficou sobrecarregado em algumas regiões. Grupos de extrema-direita, que são anti-imigração, ganharam terreno ao explorar sentimentos de insegurança cultural e económica. Partidos como a AfD conseguiram transformar esse ressentimento em capital político, sobretudo no leste do país. Apesar de esses fatores explicarem o crescimento de forças populistas, não significa que a decisão inicial tenha sido “certa” ou “errada”. Apenas significa que gerou uma reconfiguração duradoura no debate político. Em todos os casos, o tempo emocional do eleitorado reagiu mais depressa que o tempo administrativo da integração.

No tempo político da governação "Costa", até há pouco, as instituições subestimaram o ritmo e a escala do fenómeno. O discurso político manteve-se moralmente correto, mas logisticamente ingénuo. A integração foi deixada em grande parte a ONGs, autarquias e iniciativas locais, sem um plano central robusto. Costa, confiando na ausência de tensões étnicas históricas, não antecipou a reação social. Agora, com a pressão pública crescente, o tempo político de Montenegro tenta reequilibrar-se, reconhecendo as falhas. Mas ao fazê-lo, Montenegro é acusado de “ceder ao Chega. Na verdade, não se trata de ceder, mas de sincronizar o tempo político com o tempo social, que mudou mais rapidamente do que se previa.

O tempo social português está agora num ponto de inflexão. Durante muito tempo, o tema da imigração não existia como preocupação central. Mas a súbita emergência de certas realidades: habitação escassa; serviços públicos saturados; casos de criminalidade amplificados pelos media; transformações visíveis em certos bairros e escolas - criou um choque perceptivo. Mesmo que os dados empíricos não confirmem uma degradação dramática, a percepção coletiva já mudou. E, parafraseando Durkheim, “na política, a percepção é tão real como os factos”. É isso que o tempo moral (idealista) tende a esquecer. O povo sente antes de compreender. E a intuição popular reage antes dos relatórios oficiais.

Daí o ruído atual de idiomas com línguas de pau. Quem vive no tempo moral chama "fascistas" aos que reagem. E quem vive no tempo social chama “hipócritas” aos que vivem o tempo moral. Ora, este tempo é o tempo de políticos como André Ventura, cuja intuição política é particularmente afinada para o tempo social. É a intuição do mal-estar latente dos tais "abandonados" antes de ele ser mensurável. Mas atenção: essa intuição, por si só, não é nem boa nem má. Depende do uso ético que se faz dela. Se é usada para antecipar soluções, é uma virtude política. Se é usada para inflamar divisões, torna-se uma forma de manipulação. Os políticos mais lúcidos são os que conseguem aliar intuição e razão, em vez de jogar uma contra a outra.


Portugal ainda está numa fase atrasada do processo. O crescimento rápido da imigração gera um choque de percepção, mesmo que os indicadores económicos mostrem benefícios em certas áreas. A experiência europeia mostra quão essencial é a gestão transparente dos fenómenos migratórios. Não bastam dados, ou planeamento urbano, mas uma comunicação política transparente para que o espaço emocional não seja ocupado por discursos simplificadores. A intuição deve servir de alerta, mas a resposta tem de vir da razão e da ética democrática. O caso alemão mostra como o tempo moral e o tempo político raramente coincidem. O gesto moral de 2015 foi rápido. Mas quem tem estudado estes fenómenos, sabe que a integração, para além de ser lenta, muitas vezes é incompleta. A percepção pública muda muito rapidamente. Governar bem, em qualquer país, significa conseguir sincronizar os três tempos: moral; administrativo; político/social.

O tempo moral está ligado ao impulso imediato da consciência. É o do coração humano e das convicções éticas. Ele reage de forma instantânea diante da dor ou da injustiça. É o tempo dos princípios, da empatia, da indignação e do dever. Quando Merkel abriu as fronteiras, em 2015, agiu sobretudo em nome desse tempo: “Diante do sofrimento, não podemos hesitar” - disse Ela. Esse é o tempo de Kant e do imperativo categórico: o dever é o dever, independentemente das consequências. O tempo moral é impaciente, não mede a capacidade humana no terreno, apenas a urgência do ideal.

Quem governa precisa de conciliar princípios com realidades. É o tempo do cálculo, da negociação e da adaptação. Enquanto o tempo moral se move por impulso, o político precisa de traduzir valores em instituições. Se age rápido demais, é acusado de imprudência. Se age devagar demais, é acusado de insensibilidade. Os governos vivem nesse intervalo impossível - entre o grito moral da sociedade e a lentidão das estruturas. O tempo social é o da assimilação coletiva. O tempo social é o mais lento de todos. É o tempo das mentalidades, dos costumes, da aceitação cultural. Mudar leis é rápido; mudar percepções é uma obra de décadas. Por isso, políticas socialmente avançadas em prol da igualdade atingem a sociedade antes de a sociedade estar pronta para elas. Surge então o que Tocqueville chamaria de reação democrática: o povo sente-se ultrapassado, e o ressentimento cresce. E é assim esse desalinhamento de tempos que cai num terreno propício para populismos que se polarizam para as duas extremas do relvado político que em pouco tempo o transformam num pântano.

Mas o que é isso de equilibrar uma democracia? Neste cenário, e recorrendo às metáforas futebolísticas e o seu jargão, do que se precisa é de um avançado centro. É libertar um dos médios mais recuados para apoiar o ataque. Que em jargão futebolístico se designa por trinco. O papel de um trinco é exatamente preencher os espaços vazios por um jogador que dentro do seu raio de ação se tenha libertado da sua posição no momento em que a equipa ataca, precaver possíveis transições rápidas do adversário encurtando-lhe o espaço. No fundo, é deixar a sua formação organizada. No entanto, quando a sua equipa não tem a bola, independentemente da atitude pressionante ou expectante que tenha de ter em determinada zona do campo, torna-se importantíssimo quando o adversário está no último terço do terreno, fundamental a preencher espaços, tapar linhas de passe, garantir a organização coletiva e conseguir superioridade numérica.

A intuição política pode servir de trinco entre esses tempos: traduzir o sentimento moral em linguagem compreensível; acelera o tempo político sem atropelar o social; detectar a sociedade a mudar antes que os indicadores o mostrem. Os extremos deformam esse trinco e transformam o descompasso em clivagem. A torre de marfim deixa de ser intérprete e torna-se amplificador da desordem. As sociedades que melhor lidam com crises partilham um tipo de comunicação pedagógica preparando o povo antes das mudanças. É gradualista, combinando o ideal moral com a viabilidade prática. Educam o tempo social para que o povo acompanhe o tempo moral. E não deitam fora a memória, mantendo estabilidade geracional mesmo durante choques rápidos. A arte de governar consiste em harmonizar esses três ritmos, não os fundindo, mas fazendo-os jogar sem que se choquem.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Museu Alexandre Villedieu


Localizado em Loos-en-Gohelle, o Museu Alexandre Villedieu reúne uma coleção de objetos da Primeira Guerra Mundial encontrados em grande parte na zona à volta da cidade.



No Museu Alexandre Villedieu, em Loos-en-Gohelle, um cartaz avisa: "Visitante, lembre-se que por trás de cada objeto havia um homem". Gilles Payen, presidente da associação Loos, nas pegadas da Grande Guerra, que gere o museu, aproxima-se de uma vitrine: aquilo é a faca de abrir cartas do meu bisavô. O abridor de cartas é exibido no meio de centenas de armas, medalhas, cartões, uniformes, mas também colheres e garrafas. Todos os objetos estiveram nas mãos dos soldados: franceses, escoceses, canadianos. Gilles Payen e os voluntários da associação fazem com que os objetos falem para contar a história da Grande Guerra através deles.


A caneta Waterman de Alexandre Villedieu

Em 4 de agosto de 1908 a Waterman's Fountain Pen Company gravou a data de fabrico numa das suas novas canetas de tinta permanente com aparo de ouro. A caneta viria a tornar-se propriedade de um francês chamado Alexandre Villedieu. Entretanto Alexandre acabou por ser alistado na Frente Ocidental da Primeira Grande Guerra. Ora, Villedieu, enquanto combatia, levava no bolso a tal caneta, e ainda a tinha em maio de 1915. Mas foi morto em batalha e, o seu corpo, tal como o corpo de dezenas de milhar de outros, não foi encontrado até chegar à primavera de 1996, quando um agricultor o encontrou quando lavrava a terra para a nova sementeira. Foi assim que o corpo de Alexandre Villedieu voltou à luz do dia, bem como o seu cachimbo, um canivete suíço, o cinto militar, e a dita caneta Waterman.


O Museu Alexandre Villedieu, havia sido fundado por Duparcq em 1992. Depois passou a ter o nome do dono da caneta Waterman, que ainda funciona. Todos os objetos apresentados no museu foram encontrados de forma semelhante, ou proveniente de doações: "Muitas vezes, as pessoas trazem-nos de volta porque não conseguem deitar fora um pedaço da sua história. Em breve não teremos espaço suficiente!"

Os objetos às vezes vêm de muito longe: Loos foi palco de três batalhas. Aqui as forças alemãs lutaram contra os franceses, os britânicos e os canadenses. A associação mantém ligações em todo o mundo com os descendentes dos soldados. Nos dias 12 e 13 de outubro de 2019, o museu comemorou a Batalha de Loos, que começou em 25 de setembro de 1915. Uma oportunidade para mergulhar neste período da história através de um desfile musical. Não esquecendo o que aqui se passou, preservando e transmitindo a memória dos soldados, sensibilizando os mais novos. É isso que move Gilles Payen e todos os membros da associação.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

As famosas gárgulas de Notre Dame




As famosas gárgulas de Notre Dame - depois do incêndio - já começaram a ser reinstaladas na catedral parisiense. Os escultores tiveram de reconstruir algumas gárgulas que haviam sido destruídas no incêndio de 2019. Destruídas total ou parcialmente as figuras fantásticas de ar assustador foram reconstruídas uma a uma. Na arquitetura, especificamente na arquitetura gótica, uma gárgula é um ser grotesco esculpido ou formado com um bico projetado para transportar água do telhado, evitando assim que a água da chuva escorra pelas paredes. Os arquitetos costumavam usar várias gárgulas neste tipo de edifícios para dividir o fluxo de água da chuva do telhado a fim de minimizar os danos potenciais das tempestades. Uma calha é cortada na parte de trás da gárgula e a água da chuva normalmente sai pela boca aberta. 

Gárgulas são geralmente animais fantásticos alongados porque o seu comprimento determina a que distância a água é direcionada da parede. Gárgulas, especialmente na Idade Média, eram ornadas com figuras monstruosas, humanas ou animalescas, comumente presentes na arquitetura gótica. O termo vem do francês - gargouille, gargalo ou garganta (latim gurgulio, gula). Palavras similares derivam da raiz gar (engolir) - palavra onomatopaica do gorgulhante som da água.


Por assim dizer, as gárgulas, que fazem parte de toda uma mitologia religiosa supersticiosa, eram colocadas nas Catedrais Medievais para indicar que o demónio nunca dormia, exigindo a vigilância contínua das pessoas, mesmo nos locais sagrados. Uma lenda francesa gira em torno do nome de São Romano, primeiro chanceler do rei merovíngio Clotário II, que foi bispo de Ruão. A história relata como ele e mais um prisioneiro voluntário derrotaram a Gargouille (um dragão-do-rio ou serpente-do-rio) que vivia nos pântanos da margem esquerda do rio Sena, em Ruão, e que afundava os barcos e comia as pessoas e os animais da região. Um dia, o bispo atraiu a gárgula para fora do rio com um crucifixo, e usando o seu lenço como cabresto, levou o monstro até à praça principal. Lá, os aldeões queimaram-na até à morte.

O aspectos surpreendente dos monstros e o lado místico que os envolve não passou despercebido dos artistas que viam neles criaturas fabulosas, integrando-as as suas histórias. Assim, Victor Hugo, em seu romance - Notre-Dame de Paris -, concedeu um espaço importante da sua estória às gárgulas. Elas fazem referência, por causa da sua feiura aparente e função de salvação, ao corcunda Quasimodo.