Durante décadas, sobretudo na segunda metade do século XX, falava-se essencialmente do eixo Norte-Sul, com o Norte desenvolvido (EUA, Europa Ocidental, Japão) e o Sul “em desenvolvimento” ou “Terceiro Mundo”. Hoje, essa clivagem já não explica suficientemente as tensões. Com a ascensão do Sul Global, o vetor do eixo mudou de direção. Agora a sua força sopra de Sul para Norte. Índia, Brasil, África do Sul, Nigéria, Indonésia, México, entre outros, estão a ganhar peso demográfico, económico e diplomático. Enquanto no passado o Sul era visto como fornecedor de matérias-primas e mão-de-obra barata, agora há uma inversão: o Norte precisa cada vez mais do mercado consumidor do Sul, da sua juventude demográfica e da sua capacidade de crescimento. As crises ambientais e a desertificação estão a criar fluxos maciços de migração Sul–Norte. Este vetor é hoje talvez o mais visível, e politicamente explosivo.
E se no outro eixo o fim da Guerra Fria marcou a direção da força no sentido Oeste-Leste, agora o vetor está a desenhar-se no sentido contrário: Leste-Oeste. O declínio relativo do Ocidente já está à vista. A Europa e os EUA continuam poderosos, mas já não conseguem impor unilateralmente normas e agendas. O centro de gravidade económico deslocou-se para a Ásia. O "Indo-Pacífico" tornou-se a arena principal da competição. A Rússia, embora enfraquecida, Moscovo continua a forçar um eixo alternativo, ainda que de modo mais bélico do que estrutural. Iniciativas transversais como a A Nova Rota da Seda, os BRICS alargados, e a Organização de Cooperação de Xangai – tudo isto mostra que há já um diálogo leste-leste e sul-leste, contornando o Ocidente. O Sul Global começa a coordenar-se com o Leste, criando alianças alternativas (BRICS+, comércio em moedas locais, projetos de infraestruturas).
O Norte Ocidental vê-se obrigado a repensar a sua posição: já não pode tratar o Sul como até aqui, e já não pode conter sozinho o Leste. O futuro diálogo já não será apenas “Norte-Sul” ou “Oeste-Leste”, mas sim um mosaico multipolar: Sul-Leste, Leste-Norte, Sul-Sul. Assim, perde-se a simplicidade bipolar ou mesmo tripolar que caracterizou o século XX. Ganha-se uma rede mais fluida, mas também mais instável: alianças circunstanciais, rivalidades regionais, zonas de influência em disputa. Diria que o eixo Sul–Norte (migração, recursos, clima, juventude) e o eixo Leste–Oeste (hegemonia tecnológica, segurança, moeda) estão a cruzar-se para formar um tabuleiro de múltiplos centros, em que o Ocidente já não é o árbitro, mas apenas um dos jogadores.
O Sul Global (África, América Latina, Sul da Ásia) concentra a maior parte do crescimento populacional e a juventude. O Norte (Europa, América do Norte, Rússia, Japão) enfrenta envelhecimento e despovoamento. As crises climáticas tornam vastas regiões do Sul mais inabitáveis, acelerando fluxos migratórios. Resultado: o Norte passa de “exportador de ordem e capital” a importador de energia humana e vitalidade social, ainda que sob tensões políticas internas (choque identitário, populismos). A China já terá estabilizado como primeira ou segunda economia mundial, mas com problemas internos (envelhecimento, tensões sociais). A Índia afirma-se como potência central, com peso demográfico, económico e geopolítico. O Indo-Pacífico torna-se o epicentro da economia mundial.
A presença de Narendra Modi nesta cimeira, depois de 5 anos de ausência, não foi motivada sobretudo pela dimensão militar ou securitária da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), mas sim pelo peso económico que a China está a construir em torno deste fórum. A SCO tem evoluído de uma plataforma de segurança para um hub económico: corredores energéticos, infraestruturas, comércio em moedas locais, coordenação em cadeias de abastecimento. Para a Índia, que precisa de energia barata, exportações e acesso a mercados, ignorar esta rede começava a ser dispendioso. A Índia tornou-se o país mais populoso do mundo e precisa de sustentar um crescimento anual elevado. Estar fora dos grandes acordos do Sul-Leste significaria isolamento no próprio continente. Pequim é rival estratégico, mas também o maior parceiro comercial da Índia. Modi joga num tabuleiro duplo: mantém a aproximação ao Ocidente (Quad, parcerias tecnológicas com EUA e Europa), mas não pode abdicar da plataforma SCO, onde o dragão e o elefante precisam coexistir. O facto de Modi voltar após 5 anos mostra que a economia está a reconfigurar as prioridades, mesmo em plataformas de segurança. Enquanto o Ocidente olha para a SCO como uma ameaça geopolítica, a Índia lê-a como um espaço de oportunidade comercial e de investimento, numa altura em que precisa de consolidar o seu papel como motor do Sul Global.
O regresso de Modi à SCO e o maior peso desta cimeira só podem ser compreendidos no contexto de um Ocidente menos coeso — e nisso, Donald Trump tem sido um fator decisivo. Durante a presidência de Trump (e agora com o seu regresso à política internacional), os aliados europeus e asiáticos percebem que Washington já não é fiável como garante de segurança e estabilidade global. A ideia de que os EUA podem “abandonar” a Europa, ou tratar parcerias como negócios de ocasião, enfraquece a hegemonia ocidental construída desde 1945. Trump tende a privilegiar acordos bilaterais (muitas vezes transacionais) em vez de defender instituições multilaterais. Isso abre espaço para plataformas alternativas como a SCO ou os BRICS, porque os países do Sul e do Leste veem a necessidade de criar mecanismos próprios em vez de depender de um Ocidente errático.
Trump não inventou o declínio da hegemonia ocidental, mas pode estar a dar-lhe o “golpe de misericórdia”, porque transforma um processo lento e reversível em algo abrupto e irreversível. Trump impôs, recentemente, tarifas de 50% sobre diversos produtos indianos, o que reforçou a percepção de uma ruptura nas relações económicas entre os EUA e a Índia. Em que medida Trump está a “dar o golpe de misericórdia” na hegemonia ocidental? Este movimento de tarifas é emblemático de uma mudança mais ampla na política externa dos EUA — de promotor de uma ordem multilateral para um ator transacional e unilateral. Nesse sentido: Simbolicamente, Trump intensifica a percepção de que os EUA já não são um parceiro previsível, corroendo a confiança dos aliados tradicionais no Ocidente. Economicamente, o golpe é concreto: setores vitais da economia indiana enfrentam um choque direto, ao tempo que a Índia reforça sua orientação estratégica em direção ao Sul-Leste e aos fóruns alternativos, como a SCO e os BRICS. Trump acentua e acelera uma tendência já existente de multipolaridade, tornando irreversível uma erosão na coesão ocidental e abrindo espaço para realinhamentos emergentes.
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