segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Um mal-estar profundo do Ocidente


O que ajuda a entender a reação nas universidades não é tanto uma “defesa do ataque”, mas sim o foco imediato nas consequências que se seguiram: a resposta militar de Israel em Gaza, que resultou em dezenas de milhares de mortos, em sua maioria civis, segundo a ONU. Ou seja, muitos estudantes (sobretudo no Ocidente) não se concentraram no horror inicial do 7 de outubro, mas sim naquilo que consideraram ser uma resposta desproporcional de Israel.

Para Israel e para a maior parte do mundo, foi visto como um ato de terrorismo brutal, comparado ao 11 de Setembro nos EUA. Para alguns grupos radicais, foi descrito como “resistência”, o que já por si gera uma divisão moral e política profunda. A operação militar de Israel, com bombardeios intensivos, destruição de bairros inteiros e grande número de mortos civis, fez com que grande parte da opinião pública internacional passasse a centrar-se não no ataque inicial, mas sim no sofrimento da população palestiniana. Estudantes universitários tendem a alinhar-se mais com causas contra a opressão colonialista, ou contra o imperialismo. Israel aparece como um “poder ocupante”. Os Palestinianos como “povo oprimido”. Assim, o enquadramento do ataque do Hamas ficou ofuscado pelo foco na crise humanitária subsequente.

O choque moral de ataques terroristas é o que impressiona muita gente. Sobretudo fora do meio universitário. Mas dentro desses movimentos estudantis, a narrativa deslocou-se rapidamente do “ato de terrorismo” para a “resposta desumana”, o que explica porque tantas manifestações pareceram ignorar ou minimizar a atrocidade inicial do 7 de outubro. Resposta desproporcional? Em guerra, após ser atacado, isso não existe. Pedir respostas de guerra contra o terrorismo proporcionais? Que é isso? É a interpelação de muita gente.

Essa expressão -- “resposta desproporcional” -- é uma daquelas que aparece muito em debates internacionais, mas que nem sempre bate certo com o senso comum de quem pensa em guerra: “Se me atacam, eu tenho de responder para eliminar a ameaça, não para equilibrar proporcionalmente as baixas”.

O raciocínio é este: Na lógica militar clássica não existe essa preocupação de “proporcionalidade” no sentido quantitativo (“morreram 1.000 de um lado, logo só podem morrer 1.000 do outro”). Um Estado atacado procura vencer o inimigo e garantir que não volta a ser atacado. No direito internacional humanitário (Convenções de Genebra, ONU, etc.), a “proporcionalidade” não é sobre número de mortos comparáveis, mas sim sobre limitar o sofrimento de civis. Quer dizer: mesmo que o inimigo ataque de forma bárbara, o Estado que responde deve tentar minimizar vítimas civis e não usar força excessiva contra alvos não militares. O ponto sensível é que o Hamas opera dentro de áreas civis em Gaza -- túneis, hospitais, escolas --, tornando quase impossível atingir alvos militares sem atingir civis. Israel afirma que não tem alternativa; críticos dizem que continua a usar força que vai além da necessidade militar. É nesse contexto que surge o discurso de “resposta desproporcional”. Quem fala em desproporção, muitas vezes, não está a negar o direito de Israel se defender, mas a criticar os meios usados e o impacto humanitário, sobretudo quando os números de mortos civis em Gaza cresceram exponencialmente depois de outubro.

A grande fratura é esta: Uns veem "o 7 de outubro" como o “evento fundacional” e tudo o que vem depois como consequência inevitável. Outros quase saltam por cima desse dia e concentram-se apenas no sofrimento em Gaza. Há momentos da história em que sociedades ou grupos parecem perder o sentido elementar da gravidade das coisas, quase como se anestesiassem a consciência. É o que significa a frase: 
“doença moral ou social” Para quem viveu guerras, ditaduras ou terrorismo de perto, o massacre de 7 de outubro soa como um mal absoluto. Já para muitos jovens universitários, que cresceram em ambientes mais protegidos e formados em linguagens de direitos humanos, colonialismo e opressão, a lente muda: eles não relativizam o sofrimento, mas reencenam a realidade num quadro ideológico onde Israel é visto como “opressor” e os palestinianos como “oprimidos”. Nessa ótica, até um ato horrível pode ser racionalizado como “resistência”. Essa deslocação pode ser entendida como uma forma de doença social. Moral: porque relativiza atrocidades se cometidas pelo “lado certo”. Social: porque mostra a força de modas ideológicas que moldam percepções, sobretudo em ambientes universitários.

Montaigne dizia “cada época tem a sua barbárie”. Talvez estejamos a viver uma espécie de barbárie moral invertida: em nome de princípios universais (direitos humanos, justiça), há quem se torne cego ao sofrimento concreto do próximo imediato. O que muita gente sente é um choque entre o senso comum da experiência vivida (o horror é horror, sem justificações) e a racionalização ideológica que abstrai da dor imediata.

Há vários pensadores: filósofos, sociólogos e até alguns escritores que se debruçam sobre a “doença moral ou social” no Ocidente contemporâneo. Eles não usam sempre essa expressão, mas descrevem algo muito semelhante: uma perda de referências éticas, uma anestesia moral, ou uma inversão de valores. Alain Finkielkraut (França) -- fala de uma “idolatria da vítima” na cultura ocidental. Quando alguém é visto como vítima (povos colonizados, minorias, etc.), passa automaticamente a ter legitimidade moral, mesmo que cometa atrocidades. No contexto israelo-palestiniano, isso ajuda a explicar porque tantos relativizam crimes do Hamas: porque enquadram os palestinianos como “as vítimas por excelência”. Pascal Bruckner (França) -- denuncia o que chama de “tirania da penitência”. O Ocidente, por sentir culpa histórica (colonialismo, escravatura, etc.), inclina-se a desculpar qualquer ato cometido por povos vistos como oprimidos. Para ele, isto é uma forma de patologia moral, porque inverte a responsabilidade e acaba por legitimar violências. Roger Scruton (Reino Unido) -- chamava a atenção para a “corrupção da compaixão”: sentimentos nobres são manipulados por ideologias para justificar o injustificável. Scruton via nas universidades ocidentais um terreno fértil para essa confusão moral. Zygmunt Bauman (Polónia/Reino Unido) -- falava de uma “modernidade líquida” em que as referências éticas se dissolvem, e em que os indivíduos vivem numa espécie de vazio moral, facilmente preenchido por slogans ideológicos. Leszek Kołakowski (Polónia) -- lembrava que as utopias políticas, quando absolutizadas, tendem a anestesiar a sensibilidade moral. Em nome da “justiça maior”, aceita-se a injustiça imediata.

Num niilismo prático, tudo se relativiza, nada é absoluto (nem a vida humana). Uma espécie de moral invertida, em que a bondade é atribuída em função da identidade: agressor e vítima; opressor e oprimido. Colocado na sua respetiva identidade, é bom ou mau, independentemente dos seus atos. Um oprimido está sempre do lado do bem, e é bom. O opressor está sempre do lado do mal e é mau. Podem ser sinais de uma fadiga civilizacional de que padecem as gerações de sociedades ricas e seguras, que não passaram pela experiência direta da guerra, ou de atos terroristas. É o que acontece quando uma ou mais do que uma geração desconhece o sentimento da tragédia real.

Sem comentários:

Enviar um comentário