Se se aceitar o paradigma lockiano da Racionalidade,
então os filósofos que atualmente defendem a compatibilidade da crença
religiosa com a racionalidade, o paradigma de ciência, tal como é hoje
entendido, e com o conceito clássico de conhecimento como crença verdadeira
justificada, serão encarados como defensores da irracionalidade em matéria de
fé. Porque, entrelaçadas com as diferentes posições sobre a racionalidade da fé,
existem diferentes posições sobre a natureza da racionalidade, tal como, na
verdade, sobre a natureza da fé.
Se tomarmos por
“Realidade” tudo o que existe. E se tudo o que existe inclui não apenas tudo o
que é tangível pelos nossos sentidos biológicos, e mais o que faz parte da
nossa mente, o mundo das ideias, ainda assim os Dogmas da “Fé”, como entes
fictícios, são algo que transcende a Realidade. É a eterna questão insolúvel,
que se arrasta pelo menos desde Platão no quadrante ocidental, da representação
das imagens no interior da mente. Se formos aristotélicos, e não platónicos, o
mundo do imaginário não pode ser reconhecido como fazendo parte da realidade. Como
tudo aquilo que um sujeito conhece do mundo externo à sua mente tem de passar
por um processo de interpretação de imagens, o conhecimento também é crença,
mas tem de ser crença verdadeira justificada. Tem de ser verdadeiro e
justificado com argumentos racionais.
Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa
isso que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Esta é, na
verdade, uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a
razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos racionais,
argumentos que emanam do que a razão nos dá a favor da crença religiosa.
Um outro aspeto
que importa considerar aqui é a natureza da realidade externa que conhecemos
através dos nossos sentidos. Não pode ser a “realidade em si”, mas sim a
realidade fenoménica, ou seja, do domínio do fenómeno. Fenómeno significa o que
aparece. E o que aparece tem a ver com um outro aspeto da mente que damos pelo
nome de consciência. Assim, para o sujeito, o fenómeno é um facto. Facto esse
que pode ser comum a muitos sujeitos. Ao passo que cada experiência imaginária,
é única. Não pode ser partilhada. Por conseguinte, transcende a realidade.
Hoje, para aqueles
que se consideram “antirrealistas”, as crenças religiosas fazem parte de um
outro nível de realidade socialmente construída. Para um antirrealista não há
nenhuma verdade para além de um consenso socialmente aceite. Um grupo social
pode ter um conjunto de verdades religiosas por consenso, e outro pode ter um
conjunto diferente. Isto permite que diferentes comunidades e sociedades tenham
diferentes noções de realidade. A disputa entre realistas e antirrealistas
prende-se com a interpretação que fazem da cognoscibilidade dos factos.
Há uma longa história na discussão sobre a natureza da
fé. Fé é uma crença em proposições, com base no que se diz? É uma atitude de
lealdade ou de confiança em alguém ou numa ideologia? É uma espécie de
“cuidado”? É uma virtude de um certo tipo? Para uns a fé no fundo é fiducia (acredita-se
em algo ou alguém); para outros a fé é uma fides (acredita-se que
uma proposição é o caso).
Quem defende que a fé tem conteúdo proposicional
considera que Deus revela verdades, e que a fé consiste em parte em aceitá-las.
Quem defende que a fé não tem conteúdo proposicional considera que a revelação
divina consiste simplesmente em Deus manifestar-se, e que as proposições só
entram na conversa quando os seres humanos interpretam a manifestação divina de
Deus.
As discussões na tradição filosófica ocidental contrapõem
a fé à razão, na confluência entre a Bíblia, por um lado, e os textos da
filosofia grega clássica, por outro. Tanto Platão como Aristóteles sustentavam
que a vida humana ideal era a vida dedicada à teorização. Apesar de os seus
entendimentos da teorização serem diferentes em vários aspetos, ambos a
encaravam como a aquisição de conhecimento e estar ciente ou ter entendimento.
Para Platão, a aquisição de episteme exige
o afastamento da opinião ou crença (doxa). Quase toda a gente na
tradição cristã da antiguidade tardia e na idade média concordava com os gregos
clássicos que o entendimento racional é um ideal humano. Contudo, ninguém
considerava que a fé fosse episteme (grego) = scientia
(latim). Para os cristãos da Antiguidade tardia a fé era uma atividade, não de
razão, mas de amor. Não amor à sabedoria, mas amor a Deus.
Wittgenstein postulou que a racionalidade da fé é
irrelevante quanto à sua aceitabilidade, na medida que para aquilo que a
linguagem não tem palavras temos de calar. Essa posição tem tradicionalmente
sido denominada “fideísmo”. Que a fé não precisa do apoio da razão e
não deve procurá-lo. Um fideísta, pois, sustentará que a fé não precisa, ou não manifesta, uma
forma de racionalidade, e irá proclamar isto mesmo em sua defesa. Mais
habitualmente, o fideísta irá sustentar que a fé não obedece a critérios de
prova, mas poderá ir mais longe e sustentar que as suas proclamações são
paradoxais. Tanto na forma moderada como na radical, o fideísmo irá envolver o
rebaixamento da razão como fonte de verdade espiritual e irá encontrar bases na
natureza da fé para defender que ser sustentado pela razão é um defeito e não
uma vantagem.
No início da era moderna surgiu o ceticismo
fideísta, ou fideísmo cético. O fideísmo cético assume duas formas: O de
Michel de Montaigne e Pierre Bayle, que procuraram apresentar a fé como uma
aceitação não-dogmática de convenções e práticas tradicionais; e o de Blaise
Pascal e Kierkegaard que reconheciam que o convencionalismo dos primeiros
estava profundamente em conflito com os compromissos da verdadeira fé. O cético
é um aliado involuntário que desmascara as pretensões da razão, de modo que a
fé pode então entrar e preencher o vazio espiritual que o cético ajudou a
criar.
A fé não é apenas uma questão de aceitar doutrinas,
mas um estado de confiança e compromisso que tem por objecto o próprio Deus, e
não uma série de proposições acerca dele. A razão exige uma objetividade e um
distanciamento que é apropriado na ciência, mas é uma fuga do envolvimento
apaixonado que é preciso para conseguir a salvação.
Pascal é um fideísta moderado, a fé e o raciocínio
filosófico são incompatíveis com respeito aos seus motivos, e que as verdades
da fé estão para lá do poder da razão. Um fideísta radical diz-nos que a fé é
inequivocamente contrária à razão. É difícil ao filósofo responder ao fideísmo
radical, dado que o fideísta radical parece rejeitar todas as regras a que um
filósofo pode apelar. O fideísta parece superficialmente ter escolhido aceitar
as afirmações de uma autoridade e ter posto de lado os protestos da outra.
Viver conscientemente a inconsistência é um problema. Se eu pensar que algo do
que acredito é verdadeiramente paradoxal, então, passei também a acreditar na
sua falsidade. Terei então um conflito de crenças. Há um conflito interno que
está condenado a persistir enquanto persistir a consciência do juízo negativo
da razão. Que o conflito não seja agonizante em algumas pessoas (que a paixão
seja feliz) só mostra que o autoengano pode ser bem-sucedido. Apesar de toda a
sua insistência na pureza espiritual da fé, o fideísmo radical é uma forma de
falsa consciência.
Pascal diz-nos que a fé é Deus conhecido pelo coração
e não pela razão; e que o coração tem razões que a razão desconhece; e no
“argumento da aposta”, Pascal adotando uma postura prudencial, como uma maneira
de minimizar os riscos que se corre face à eternidade, exorta um leitor sério,
mas descrente, a reconhecer as vantagens da fé em comparação com a descrença.
Pascal exorta o seu descrente a adotar várias estratégias para induzir a crença
em si próprio, apesar da ausência de bases convincentes.
São argumentos importantes, que tanto Pascal como
Kierkegaard usam, de que muitas crenças de senso comum partilham com a fé a
característica de estarem para lá da justificação racional. Se isto for
verdadeiro, a situação da fé não é pior que a de muitas formas seculares de
prova, e deve-se reconhecer que também envolvem fé. Kierkegaard fala de fé
secular, tal como de fé religiosa. Apesar da solidez do argumento, enquanto
manobra apologética, pode ser apartado das suas conexões fideístas, e tem-no
sido. A analogia entre as crenças religiosas e as que dependem da perceção ou
da memória ou da indução, é o que alimenta o movimento da pós-verdade da
pós-modernidade.
As discussões da fé e da razão centram-se
habitualmente em determinar em que medida a fé se conforma ou deve conformar-se
com padrões de racionalidade cognitiva. Mas a tradição fideísta tem também algo
a dizer sobre até que ponto a vida de fé se conforma com padrões de
racionalidade prática.
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