quarta-feira, 10 de abril de 2019

Fé e irracionalidade. Conhecimento como crença verdadeira justificada


Se se aceitar o paradigma lockiano da Racionalidade, então os filósofos que atualmente defendem a compatibilidade da crença religiosa com a racionalidade, o paradigma de ciência, tal como é hoje entendido, e com o conceito clássico de conhecimento como crença verdadeira justificada, serão encarados como defensores da irracionalidade em matéria de fé. Porque, entrelaçadas com as diferentes posições sobre a racionalidade da fé, existem diferentes posições sobre a natureza da racionalidade, tal como, na verdade, sobre a natureza da fé.

Se tomarmos por “Realidade” tudo o que existe. E se tudo o que existe inclui não apenas tudo o que é tangível pelos nossos sentidos biológicos, e mais o que faz parte da nossa mente, o mundo das ideias, ainda assim os Dogmas da “Fé”, como entes fictícios, são algo que transcende a Realidade. É a eterna questão insolúvel, que se arrasta pelo menos desde Platão no quadrante ocidental, da representação das imagens no interior da mente. Se formos aristotélicos, e não platónicos, o mundo do imaginário não pode ser reconhecido como fazendo parte da realidade. Como tudo aquilo que um sujeito conhece do mundo externo à sua mente tem de passar por um processo de interpretação de imagens, o conhecimento também é crença, mas tem de ser crença verdadeira justificada. Tem de ser verdadeiro e justificado com argumentos racionais.

Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Esta é, na verdade, uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá a favor da crença religiosa.

Um outro aspeto que importa considerar aqui é a natureza da realidade externa que conhecemos através dos nossos sentidos. Não pode ser a “realidade em si”, mas sim a realidade fenoménica, ou seja, do domínio do fenómeno. Fenómeno significa o que aparece. E o que aparece tem a ver com um outro aspeto da mente que damos pelo nome de consciência. Assim, para o sujeito, o fenómeno é um facto. Facto esse que pode ser comum a muitos sujeitos. Ao passo que cada experiência imaginária, é única. Não pode ser partilhada. Por conseguinte, transcende a realidade.

Hoje, para aqueles que se consideram “antirrealistas”, as crenças religiosas fazem parte de um outro nível de realidade socialmente construída. Para um antirrealista não há nenhuma verdade para além de um consenso socialmente aceite. Um grupo social pode ter um conjunto de verdades religiosas por consenso, e outro pode ter um conjunto diferente. Isto permite que diferentes comunidades e sociedades tenham diferentes noções de realidade. A disputa entre realistas e antirrealistas prende-se com a interpretação que fazem da cognoscibilidade dos factos.

Há uma longa história na discussão sobre a natureza da fé. Fé é uma crença em proposições, com base no que se diz? É uma atitude de lealdade ou de confiança em alguém ou numa ideologia? É uma espécie de “cuidado”? É uma virtude de um certo tipo? Para uns a fé no fundo é fiducia (acredita-se em algo ou alguém); para outros a fé é uma fides (acredita-se que uma proposição é o caso).

Quem defende que a fé tem conteúdo proposicional considera que Deus revela verdades, e que a fé consiste em parte em aceitá-las. Quem defende que a fé não tem conteúdo proposicional considera que a revelação divina consiste simplesmente em Deus manifestar-se, e que as proposições só entram na conversa quando os seres humanos interpretam a manifestação divina de Deus. 

As discussões na tradição filosófica ocidental contrapõem a fé à razão, na confluência entre a Bíblia, por um lado, e os textos da filosofia grega clássica, por outro. Tanto Platão como Aristóteles sustentavam que a vida humana ideal era a vida dedicada à teorização. Apesar de os seus entendimentos da teorização serem diferentes em vários aspetos, ambos a encaravam como a aquisição de conhecimento e estar ciente ou ter entendimento.

Para Platão, a aquisição de episteme exige o afastamento da opinião ou crença (doxa). Quase toda a gente na tradição cristã da antiguidade tardia e na idade média concordava com os gregos clássicos que o entendimento racional é um ideal humano. Contudo, ninguém considerava que a fé fosse episteme (grego) = scientia (latim). Para os cristãos da Antiguidade tardia a fé era uma atividade, não de razão, mas de amor. Não amor à sabedoria, mas amor a Deus.

Wittgenstein postulou que a racionalidade da fé é irrelevante quanto à sua aceitabilidade, na medida que para aquilo que a linguagem não tem palavras temos de calar. Essa posição tem tradicionalmente sido denominada “fideísmo”. Que a fé não precisa do apoio da razão e não deve procurá-lo. Um fideísta, pois, sustentará que a fé não precisa, ou não manifesta, uma forma de racionalidade, e irá proclamar isto mesmo em sua defesa. Mais habitualmente, o fideísta irá sustentar que a fé não obedece a critérios de prova, mas poderá ir mais longe e sustentar que as suas proclamações são paradoxais. Tanto na forma moderada como na radical, o fideísmo irá envolver o rebaixamento da razão como fonte de verdade espiritual e irá encontrar bases na natureza da fé para defender que ser sustentado pela razão é um defeito e não uma vantagem.

No início da era moderna surgiu o ceticismo fideísta, ou fideísmo cético. O fideísmo cético assume duas formas: O de Michel de Montaigne e Pierre Bayle, que procuraram apresentar a fé como uma aceitação não-dogmática de convenções e práticas tradicionais; e o de Blaise Pascal e Kierkegaard que reconheciam que o convencionalismo dos primeiros estava profundamente em conflito com os compromissos da verdadeira fé. O cético é um aliado involuntário que desmascara as pretensões da razão, de modo que a fé pode então entrar e preencher o vazio espiritual que o cético ajudou a criar.

A fé não é apenas uma questão de aceitar doutrinas, mas um estado de confiança e compromisso que tem por objecto o próprio Deus, e não uma série de proposições acerca dele. A razão exige uma objetividade e um distanciamento que é apropriado na ciência, mas é uma fuga do envolvimento apaixonado que é preciso para conseguir a salvação.

Pascal é um fideísta moderado, a fé e o raciocínio filosófico são incompatíveis com respeito aos seus motivos, e que as verdades da fé estão para lá do poder da razão. Um fideísta radical diz-nos que a fé é inequivocamente contrária à razão. É difícil ao filósofo responder ao fideísmo radical, dado que o fideísta radical parece rejeitar todas as regras a que um filósofo pode apelar. O fideísta parece superficialmente ter escolhido aceitar as afirmações de uma autoridade e ter posto de lado os protestos da outra. Viver conscientemente a inconsistência é um problema. Se eu pensar que algo do que acredito é verdadeiramente paradoxal, então, passei também a acreditar na sua falsidade. Terei então um conflito de crenças. Há um conflito interno que está condenado a persistir enquanto persistir a consciência do juízo negativo da razão. Que o conflito não seja agonizante em algumas pessoas (que a paixão seja feliz) só mostra que o autoengano pode ser bem-sucedido. Apesar de toda a sua insistência na pureza espiritual da fé, o fideísmo radical é uma forma de falsa consciência.

Pascal diz-nos que a fé é Deus conhecido pelo coração e não pela razão; e que o coração tem razões que a razão desconhece; e no “argumento da aposta”, Pascal adotando uma postura prudencial, como uma maneira de minimizar os riscos que se corre face à eternidade, exorta um leitor sério, mas descrente, a reconhecer as vantagens da fé em comparação com a descrença. Pascal exorta o seu descrente a adotar várias estratégias para induzir a crença em si próprio, apesar da ausência de bases convincentes.

São argumentos importantes, que tanto Pascal como Kierkegaard usam, de que muitas crenças de senso comum partilham com a fé a característica de estarem para lá da justificação racional. Se isto for verdadeiro, a situação da fé não é pior que a de muitas formas seculares de prova, e deve-se reconhecer que também envolvem fé. Kierkegaard fala de fé secular, tal como de fé religiosa. Apesar da solidez do argumento, enquanto manobra apologética, pode ser apartado das suas conexões fideístas, e tem-no sido. A analogia entre as crenças religiosas e as que dependem da perceção ou da memória ou da indução, é o que alimenta o movimento da pós-verdade da pós-modernidade.

As discussões da fé e da razão centram-se habitualmente em determinar em que medida a fé se conforma ou deve conformar-se com padrões de racionalidade cognitiva. Mas a tradição fideísta tem também algo a dizer sobre até que ponto a vida de fé se conforma com padrões de racionalidade prática.

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