sexta-feira, 12 de abril de 2019

O sofrimento humano e o poder de curar


Desde os primórdios que a humanidade procura meios para o apaziguamento do sofrimento. O sofrimento é inerente à existência e à condição humanas, pelo que em diferentes épocas as diversas sociedades precisaram de desenvolver meios que até aos nossos dias se têm revelado incapazes de eliminar todo o sofrimento. Apesar de o progresso ter sido enorme no que respeita à quase eliminação do sofrimento da parte física do corpo, tal não tem sido o caso em relação à dor psíquica.

As estratégias e os caminhos percorridos para atingir o objetivo têm sido ao longo da história, e em diferentes contextos civilizacionais, muito diversos e plurais. Ainda assim, as sociedades encontraram sempre alguém em quem delegar o poder de curar e aliviar o sofrimento.

Questões intangíveis, mas fundamentais da existência como: quem somos; o que fazemos aqui; para onde vamos; e qual o sentido de tudo isto – foram sempre objeto de inclusão no domínio do sagrado ao abrigo de conceitos e entendimentos marginais no seio da comunidade científica. O dom de cura articulava-se nesse paradigma conceptual. Um sagrado, umas vezes imanente, decorrente diretamente da estreita relação do homem com o ambiente; outras vezes assumindo formas transcendentes assentes em princípios que remetem para o absoluto.

Mas depois da aparente conquista do espaço da superstição por parte da ciência laica iluminista, eis que entramos na civilização do espetáculo e na era da pós modernidade alternativa. Hoje, a cultura de uma boa parte da sociedade é uma cultura de superfície e de aparência, de jogo e de pose, que para apaziguar o sofrimento do nosso tempo dispõe de duas alternativas às receitas protagonizadas pela religião católica, que se fina após dois milénios de supremacia: 1) através de seitas com o rótulo de “Nova Era” – que vão desde o espiritualismo oriental em todas as suas formas e divisões, passando pelas igrejas evangélicas e igrejas ainda mais exóticas que agora pululam e se dividem nos bairros marginais, até à cientologia tão popular em Hollywood; 2) através do álcool e estupefacientes, que apenas tranquilizam momentaneamente o espírito das incertezas outrora apaziguadas com rezas, confissões e sermões dos padres.

São setores muito reduzidos de seres humanos que podem dar-se ao luxo de prescindir por inteiro da religião. Só pequenas minorias conseguem emancipar-se da religião através da “alta cultura”, que enfrenta os problemas de frente e não lhes foge, com respostas sérias e não lúdicas aos grandes enigmas da existência pela filosofia, ciência e artes.

Sempre houve quem tivesse intuições de que os seres humanos possuíam razões que a razão desconhecia. E o discernimento da existência de pessoas com talentos consensualmente estabelecidos de apaziguamento e controlo de espíritos à solta. Por conseguinte, ainda que o conhecimento da mente humana tenha recebido incrementos extraordinários, a sua complexidade é de tal ordem que continua a ser o maior mistério a desafiar a nossa inteligência.

Apesar de a ciência ter dado saltos de gigante, continuam a persistir fórmulas decorrentes de uma epistemologia ingénua, mas nem por isso destituída de algum efeito benéfico no apaziguamento, quer dos males do corpo, quer dos males do espírito. O que muitas vezes as pessoas sofrem é de falta de sentido para as suas vidas. E do que precisam é de discursos que se conformem às suas mundividências idiossincráticas.

Ora, sempre houve conflitos de mundividências, entre epistemologias ingénuas e epistemologias esclarecidas e organizadas em universidades, faculdades, institutos e ordens profissionais. Estas organizações são as detentoras legais e legítimas da última palavra, do que é e deve ser, pelo que são detentoras da sapiência com poderes de calar as mundividências ingénuas. Daí a explicação para os discursos inflamados de parte a parte que pretendem transformar a anomia em ação, e as dúvidas em certezas.

Com o advento da farmacopeia em geral e da  psicofarmacologia em particular, deu-se aquilo que em filosofia se designa por uma rotura epistemológica, a passagem do mágico-religioso para o científico-empírico.  A terapia do sofrimento, quer ao nível do sofrimento físico, quer ao nível do sofrimento psíquico, se é que ainda tem sentido fazer esta separação mente/corpo, teve sempre outras figuras tutelares, onde as ordens religiosas pontuavam tanto nos cuidados do corpo como da mente.
A par da farmacologia é verdade que também surgiu a psicoterapia de cunho científico-empírico, se bem que o seu precursor, Freud, tenha sido considerado pouco científico com a sua psicanálise. Mas antes de Freud, muita gente podia desempenhar em algum momento função terapêutica, embora longe do que hoje é tido por psicoterapia. Esta aceção diferenciadora da ancestral função terapêutica, carece, todavia, de um extenso conjunto de reflexões que permitam perceber a pluralidade de propostas terapêuticas hoje disponíveis e abertas aos mais diversos contextos.

Cada vez mais, e um pouco por todo o lado, as pessoas recorrem a terapias, as mais díspares e diversas, para lidar com diferentes formas de dor, sofrimento ou desassossego. As sociedades, com os seus novos hábitos de consumo e de estilos de vida, têm gerado ondas de preocupação não apenas ao nível político, mas também ao nível da saúde pública. Uma das preocupações prende-se com o estatuto científico de algumas terapias e o seu enquadramento paradigmático à luz da doutrina dos dois filósofos da ciência mais influentes no século XX – Karl Popper e Thomas Kuhn.

Ao atual conflito entre o científico e o pseudocientífico, não é alheia a enorme proliferação de corpos profissionais ecléticos, oferecendo terapias com quadros de referência baseados em teorias e hipóteses demasiado heterodoxas para serem aceites pela ciência como sustentáculo legitimador das suas práticas. A ideia, de que o objeto da intervenção terapêutica é o indivíduo em sofrimento, pode ser enganadora. Habitualmente, é o paradigma teórico que define o objeto. Mas, como toda a experiência humana é eivada de subjetividade, o acesso do terapeuta ao sujeito é feito através da sua narrativa. Daí a necessidade de recorrermos a quadros explicativos e compreensivos dentro de um paradigma que, na impossibilidade de ser universal, seja pelo menos consensual ao nível de organizações internacionais, como é o caso da Organização Mundial de Saúde.

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