Desde os
primórdios que a humanidade procura meios para o apaziguamento do sofrimento. O
sofrimento é inerente à existência e à condição humanas, pelo que em diferentes
épocas as diversas sociedades precisaram de desenvolver meios que até aos
nossos dias se têm revelado incapazes de eliminar todo o sofrimento. Apesar de o
progresso ter sido enorme no que respeita à quase eliminação do sofrimento da
parte física do corpo, tal não tem sido o caso em relação à dor psíquica.
As estratégias e
os caminhos percorridos para atingir o objetivo têm sido ao longo da história,
e em diferentes contextos civilizacionais, muito diversos e plurais. Ainda
assim, as sociedades encontraram sempre alguém em quem delegar o poder de curar
e aliviar o sofrimento.
Questões
intangíveis, mas fundamentais da existência como: quem somos; o que fazemos
aqui; para onde vamos; e qual o sentido de tudo isto – foram sempre objeto de
inclusão no domínio do sagrado ao abrigo de conceitos e entendimentos marginais
no seio da comunidade científica. O dom de cura articulava-se nesse paradigma
conceptual. Um sagrado, umas vezes imanente, decorrente diretamente da estreita
relação do homem com o ambiente; outras vezes assumindo formas transcendentes
assentes em princípios que remetem para o absoluto.
Mas depois da
aparente conquista do espaço da superstição por parte da ciência laica
iluminista, eis que entramos na civilização do espetáculo e na era da pós modernidade
alternativa. Hoje, a cultura de uma boa parte da sociedade é uma cultura de
superfície e de aparência, de jogo e de pose, que para apaziguar o sofrimento
do nosso tempo dispõe de duas alternativas às receitas protagonizadas pela
religião católica, que se fina após dois milénios de supremacia: 1) através de seitas
com o rótulo de “Nova Era” – que vão desde o espiritualismo oriental em todas
as suas formas e divisões, passando pelas igrejas evangélicas e igrejas ainda
mais exóticas que agora pululam e se dividem nos bairros marginais, até à cientologia
tão popular em Hollywood; 2) através do álcool e estupefacientes, que apenas
tranquilizam momentaneamente o espírito das incertezas outrora apaziguadas com
rezas, confissões e sermões dos padres.
São setores muito
reduzidos de seres humanos que podem dar-se ao luxo de prescindir por inteiro
da religião. Só pequenas minorias conseguem emancipar-se da religião através da
“alta cultura”, que enfrenta os problemas de frente e não lhes foge, com
respostas sérias e não lúdicas aos grandes enigmas da existência pela
filosofia, ciência e artes.
Sempre houve quem
tivesse intuições de que os seres humanos possuíam razões que a razão
desconhecia. E o discernimento da existência de pessoas com talentos consensualmente
estabelecidos de apaziguamento e controlo de espíritos à solta. Por
conseguinte, ainda que o conhecimento da mente humana tenha recebido
incrementos extraordinários, a sua complexidade é de tal ordem que continua a
ser o maior mistério a desafiar a nossa inteligência.
Apesar de a
ciência ter dado saltos de gigante, continuam a persistir fórmulas decorrentes
de uma epistemologia ingénua, mas nem por isso destituída de algum efeito
benéfico no apaziguamento, quer dos males do corpo, quer dos males do espírito.
O que muitas vezes as pessoas sofrem é de falta de sentido para as suas vidas. E
do que precisam é de discursos que se conformem às suas mundividências
idiossincráticas.
Ora, sempre houve
conflitos de mundividências, entre epistemologias ingénuas e epistemologias
esclarecidas e organizadas em universidades, faculdades, institutos e ordens
profissionais. Estas organizações são as detentoras legais e legítimas da
última palavra, do que é e deve ser, pelo que são detentoras da sapiência com
poderes de calar as mundividências ingénuas. Daí a explicação para os discursos
inflamados de parte a parte que pretendem transformar a anomia em ação, e as
dúvidas em certezas.
Com o advento da
farmacopeia em geral e da psicofarmacologia em particular, deu-se aquilo
que em filosofia se designa por uma rotura epistemológica, a passagem do mágico-religioso
para o científico-empírico. A terapia do
sofrimento, quer ao nível do sofrimento físico, quer ao nível do sofrimento psíquico,
se é que ainda tem sentido fazer esta separação mente/corpo, teve sempre outras
figuras tutelares, onde as ordens religiosas pontuavam tanto nos cuidados do
corpo como da mente.
A par da farmacologia
é verdade que também surgiu a psicoterapia de cunho científico-empírico, se bem
que o seu precursor, Freud, tenha sido considerado pouco científico com a sua
psicanálise. Mas antes de Freud, muita gente podia desempenhar em algum momento
função terapêutica, embora longe do que hoje é tido por psicoterapia. Esta
aceção diferenciadora da ancestral função terapêutica, carece, todavia, de um extenso
conjunto de reflexões que permitam perceber a pluralidade de propostas terapêuticas
hoje disponíveis e abertas aos mais diversos contextos.
Cada vez mais, e
um pouco por todo o lado, as pessoas recorrem a terapias, as mais díspares e
diversas, para lidar com diferentes formas de dor, sofrimento ou desassossego. As
sociedades, com os seus novos hábitos de consumo e de estilos de vida, têm
gerado ondas de preocupação não apenas ao nível político, mas também ao nível
da saúde pública. Uma das preocupações prende-se com o estatuto científico de
algumas terapias e o seu enquadramento paradigmático à luz da doutrina dos dois
filósofos da ciência mais influentes no século XX – Karl Popper e Thomas Kuhn.
Ao atual conflito
entre o científico e o pseudocientífico, não é alheia a enorme proliferação de
corpos profissionais ecléticos, oferecendo terapias com quadros de referência
baseados em teorias e hipóteses demasiado heterodoxas para serem aceites pela
ciência como sustentáculo legitimador das suas práticas. A ideia, de que o
objeto da intervenção terapêutica é o indivíduo em sofrimento, pode ser enganadora.
Habitualmente, é o paradigma teórico que define o objeto. Mas, como toda a
experiência humana é eivada de subjetividade, o acesso do terapeuta ao sujeito
é feito através da sua narrativa. Daí a necessidade de recorrermos a quadros
explicativos e compreensivos dentro de um paradigma que, na impossibilidade de
ser universal, seja pelo menos consensual ao nível de organizações
internacionais, como é o caso da Organização Mundial de Saúde.
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