segunda-feira, 29 de abril de 2019

A linguagem e o mundo em Wittgenstein

Toda a filosofia de Wittgenstein gira à volta da linguagem e da relação linguagem-mundo. A linguagem é a totalidade das proposições. As proposições são representações do estado das coisas. A linguagem e o mundo têm em comum a relação estrutural – uma das possíveis formas de combinação dos objetos.

Wittgenstein, após a publicação do Tractatus, possuído por aquela soberba não tão rara como seria desejável, sentenciou que nada mais teria a dizer. E com uma ousadia que passou a ser lendária no meio dos seus seguidores, transcendeu-se por uns tempos, e foi à procura do mundo dos místicos. Passou-se, como se diz em linguagem não filosófica. Fechou-se coerentemente num longo silêncio filosófico, trabalhando durante anos como professor primário, por alguns meses como ajudante de jardineiro num convento, e até arquiteto como no caso das obras de transformação do palacete de sua irmã em Viena. Ludwig não foi o único a herdar o traço de arrogância dos Wittgenstein. Quando um oficial nazi informou essa sua irmã de que não deveriam temer serem classificados como judeus, ela ficou bastante indignada. Nenhum aventureiro jamais diria aos Wittgenstein o que eram ou o que não eram – e insistiu em que fossem expedidos de imediato documentos que comprovassem seu sangue judeu. A seguir aos Rothschild, os Wittgenstein constituíam a família mais rica da Europa na época de Hitler. E quando as irmãs de Wittgenstein estiveram em apuros no auge do extermínio nazi, Ludwig não esteve com meias medidas e tratou de as resgatar com nada menos do que 1,7 toneladas de ouro.

A travessia do deserto que Wittgenstein teve de fazer antes de regressar a Cambridge, em 1944, e ocupar a cátedra que era de Bertrand Russel, como se viu, não foi sem tumultos nem sobressaltos. A experiência por que passou moldou-o num outro Wittgenstein, voluntariamente mais humilde, investigando as circunstâncias da vida mais comezinhas, situações concretas da vida social a que ele chamou “jogos de linguagem”. Esse tempo culminou na sua obra mais importante: “Investigações Filosóficas”, uma reviravolta no pensamento de Wittgenstein. Tendo começado a preparar a sua publicação logo a seguir ao seu regresso a Cambridge, tal só viria a acontecer já depois da sua morte. Wittgenstein morre em Cambridge, a 29 de abril de 1951, e as Investigações Filosóficas são publicadas em 1953.

Juntamente com o Tractatus, que passou a criticar, apenas estes dois únicos livros foram preparados por ele, tendo em vista a publicação. Uma boa parte da restante obra publicada depois da sua morte resulta de apontamentos tomados pelos seus alunos, que o veneravam, que consistiam em notas das aulas que ele lhes dava. E também de vários cadernos guardados no famoso cofre, o único luxo a que se permitira durante o seu longo período de ascetismo.

A lucidez e a ousadia do Tractatus são substituídas nas Investigações Filosóficas por uma análise lógica minimalista de sensações pessoais e do significado das palavras. Não há mais filosofia, apenas o ato de filosofar – que consiste na elucidação de equívocos em nossa forma de pensar. Esses equívocos decorrem de erros linguísticos, uma vez que a linguagem não é um retrato do mundo, e sim uma espécie de rede formada por inúmeros pedaços de cordas que se intercomunicam. Nossa compreensão chega a um impasse quando empregamos erroneamente uma palavra numa situação em que ela não se aplica.

Nós temos acesso à forma e ao conteúdo das coisas através dos nossos sentidos. E o nosso cérebro recebe essas transmissões de energia física na forma de informação transformando-a numa forma de representação, que à falta de melhores termos lhe chamamos imagens: visuais, auditivas, olfativas, gustativas, táteis e propriocetivas.

Tudo é linguagem a representar os factos que descrevem. Mas as imagens não são as cópias dos factos. Em vez disso, elas próprias são os factos. Nem a forma lógica da linguagem, nem o seu isomorfismo com o mundo são expressáveis. Entre linguagem e mundo, vejamos por exemplo o mundo dos sons, e neste sentido o caso de sons musicais, há uma relação interna de representação que conjuga não apenas a imagem representada no cérebro vinda do espaço físico, mas também a notação musical que um músico descreve na partitura. Tudo subsiste através de possíveis transformações e projeções. Estas conformações, aparentemente muito diversas, apresentam um isomorfismo regulado por leis e regras, quando são as notas musicais a traduzir, por exemplo, as notas de uma sinfonia.

Mas nem a forma lógica da linguagem, nem o seu isomorfismo com o mundo são expressáveis. É somente possível mostrá-los como condições formalmente necessárias à nossa linguagem que tem os seus limites, os quais não podemos ultrapassar. É para lá desses limites que reside o Místico, o Zen, enfim, o inefável. Disto nada se pode dizer, como a proposição conclusiva do Tractatus: “Sobre aquilo de que se não pode falar, há que guardar silêncio”.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

45 anos de democracia

Este texto, na sequência do anterior, é uma espécie de tributo a todos aqueles que tornaram possível a Revolução há 45 anos para que em Portugal tivéssemos uma democracia, por muito imperfeita que ela seja.

Como em todas as revoluções, há sempre um período de transição em que o processo corre em condições sofrendo desvios às melhores intenções dos seus heróis. Esse período ficou conhecido por PREC – Processo Revolucionário Em Curso – que terminou em 25 de novembro de 1975, num golpe contrarrevolucionário que evitou que Portugal vingasse um regime comunista satélite da União Soviética.

Não podemos ignorar que na altura do PREC o mundo ainda vivia os tempos da Guerra Fria, e a URSS ainda tinha condições de disputar com os EUA a bipolaridade de igual para igual como superpotência. A diferença, no entanto, não era de pouca monta para um país europeu saído de uma ditadura de quase meio século, com fome de democracia e desejosa de se juntar ao grupo de países europeus que faziam parte da então CEE – Comunidade Económica Europeia. Enquanto os EUA eram uma democracia respeitável, o regime soviético era um regime totalitário.

Dos regimes totalitários que se conheciam mais próximos daquela época, que tinham no seu topo ditadores com o poder reforçado pelo culto da personalidade, Estaline já estava morto desde 1953. Mao Zedong viria a falecer em setembro de 1976. E Pol Pot teve que receber abrigo na Tailândia em 1979, após a queda do regime, que havia instaurado no Camboja à frente dos Khmers Vermelhos, por intervenção vietnamita. Em abril de 1975, Saigão foi conquistada pelos comunistas, marcando o fim da guerra entre Norte e Sul com a retirada dos americanos, sendo formalmente unificados no ano seguinte.

No início da década de 1920, Mussolini e o seu escritor fantasma, o filósofo Giovanni Gentile, promoveram a expressão “totalitário” para descrever o tipo de domínio que o Estado poderia ganhar sobre os seus cidadãos através do controlo dos meios de comunicação. Os regimes totalitários distinguem-se dos meramente autocráticos não apenas pelo grau, mas pela utilização do terror. Segundo Hannah Arendt, o terror arrasa a espontaneidade individual.

Portanto, em abril de 1974, não era de todo descabido que em Portugal uma revolução comunista ainda tivesse sucesso na “conquista do poder à burguesia”. Após a Segunda Guerra Mundial, o comunismo e Estaline haviam conquistado um prestígio internacional tal que proporcionou força eleitoral aos partidos socialistas na Europa. E, por outro lado, sem esquecer o movimento maoista, que através de notícias falsas vindas da República Popular da China, impressionava a juventude ocidental ávida de idolatrias e de um sistema político que através da posse comum dos meios de produção, a humanidade viveria em harmonia numa sociedade sem classes. A Revolução Cultural que teve início na década de 1960 surgiu da convicção de Mao de que os “companheiros capitalistas” estavam a levar a economia na direção errada. E assim o presidente Mao conseguiu moldar implacavelmente a China com recurso ao culto da personalidade, à crueldade e ao terror que provocaram a morte a milhões de chineses pela fome e pelas perseguições.

Finalmente, em 25 de novembro de 1975 Portugal entrou no caminho mais sensato rumo à democracia, considerada ainda a forma menos má de governo no mundo que temos. E efetivamente foram despendidos esforços para que as liberdades individuais fossem protegidas no exercício de uma cidadania num estado de direito.

As teorias sobre a democracia remontam ao século V a.C., com Péricles. É claro que os conceitos evoluíram. E não seria de esperar outra coisa. A democracia contemporânea está muito longe dos conceitos aristotélicos de democracia. Mas foi Aristóteles que fez expressamente a ligação entre democracia e liberdade individual, que foi retomada por Locke no século XVII. Por sua vez, a sua obra influenciou a Constituição americana, enquanto em França, o barão de Montesquieu registou a importância de um organismo motivado pelo conceito de bem público, e pelo conceito de separação de poderes entre o executivo, o legislativo e o judicial.

O avanço teórico correu no sentido da aceitação da liberdade e da igualdade. Antes de o sistema britânico ter evoluído de uma monarquia para uma democracia, os Estados Unido construíram o seu próprio sistema democrático de governo, inspirado nas ideias da Revolução Francesa e baseado nos direitos inalienáveis do indivíduo.

E assim caminhou também Portugal desde 25 de abril de 1974 até aos dias de hoje, com governos centrados num espetro que poderemos classificar entre o centro direito social-democrata e democrata-cristão, e o centro esquerda mais ou menos socialista, mais ou menos democrata liberal. O eleitorado português, ao oscilar entre uma pequena margem à volta do centro, tem permitido governações dentro de uma alternância democrática a convergir para o centro do espetro político-partidário.

Não sabemos, nem temos como seguro, que assim se mantenha por muito mais tempo, nesta era de uma nova Revolução Tecnológico/Informacional. Entramos numa era de maiores catástrofes naturais e maior terror global em que pontuam grupos extremistas islâmicos. Portanto, as liberdades em que a democracia assenta estão sob ameaça. Agora o valor que as populações mais apreciam é a segurança. O medo domina tudo e todos, e por conseguinte, a prioridade é a segurança pessoal, que se sobrepõe às liberdades pessoais. Ao mesmo tempo, vemos as desigualdades sociais a ampliarem-se devido a um sistema capitalista descontrolado pela usura financeira, agravadas ainda mais pelos fluxos migratórios em larga escala, lutando por igual acesso aos recursos a que os países mais desenvolvidos ocidentais deitaram a mão com maior intensidade desde a famigerada Revolução Industrial.

O 25 DE ABRIL


25 DE ABRIL DE 1974, uma quinta-feira, são 3 horas da madrugada quando vários pontos vitais de Lisboa são ocupados por elementos destacados pelo comando do Movimento dos Capitães. O Rádio Clube Português foi um deles, que passou a transmitir marchas militares e música portuguesa – Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, José Mário Branco, Manuel Freire, Sérgio Godinho, Francisco Fanhais . . .

Pelas 6:30, tropas da Escola Prática de Cavalaria, chefiadas pelo capitão Salgueiro Maia, chegam ao Terreiro do Paço e cercam o Ministério do Exército onde ministros e altas patentes do exército se encontravam refugiados. É aqui que se desenrola o primeiro momento de tensão, entre as forças do capitão Maia e uma coluna de Cavalaria 7 estacionada na rua da Ribeira das Naus a proteger os ministros. A certa altura, o brigadeiro Reis, aos gritos, dá voz de prisão ao tenente Assunção e manda disparar as peças. Rui Ochôa que estava perto fica atónito com o que vê, mas não arreda pé. Ouve a repetição da ordem, mas nada acontece. Aconselham o repórter que não regresse ao outro lado, que vão disparar. O major Anselmo avança os carros. Alguém diz que “vão disparar”. Os carros param. Novas conversações. Há mais de mil civis no enfiamento dos possíveis disparos. Mas os canhões abandonam a posição de tiro. O major Anselmo rende-se. Metade das forças do brigadeiro Reis mudam de campo. Todos se felicitam no Terreiro do Paço, porque não houve tiros.


««Salgueiro Maia chegou a meio caminho e gritou ao brigadeiro: “Venha aqui conversar!” E o outro berrava: “Venha cá você!”. Perante o impasse, o brigadeiro Junqueira dos Reis mandou disparar, mas tanto o oficial do M-47 como o cabo apontador desobedeceram à ordem. O brigadeiro, furioso, afastou-se pelo seu pé, praguejando, sozinho e derrotado. Salgueiro Maia deu meia volta e começou a marchar, vitorioso e aparentemente sereno, na direção do Terreiro do Paço. É nesse instante que Alfredo Cunha, que estava encostado à estátua equestre de D. José, dispara a sua Nikon F, e consegue uma das fotos mais iconográficas do 25 de abril. O episódio culminou com as tropas do brigadeiro a correrem ao encontro de Salgueiro Maia, gritando: “Estamos com vocês, estamos com vocês!”»»

Mas por esta altura, seriam 10 horas, já os ministros e as altas patentes haviam escapado por um buraco na parede aberto a picareta (foto de Alfredo Cunha), dando passagem para a Biblioteca do Ministério da Marinha. Daqui, acabam por chegar a Lanceiros 2, em Belém, onde se encontrava o Presidente da República Almirante Américo Thomaz, tentando organizar a contraofensiva.




A cidade ia despertando e através da rádio apercebia-se que algo de muito importante estava a acontecer. Multiplicavam-se os comunicados, em que se dava conta do cerco da cidade por unidades militares. Quando as primeiras vagas de gente de Almada, Cacilhas, Barreiro e Montijo saíram dos barcos, depararam-se com um espetáculo verdadeiramente inédito. A passagem estava vedada pelos militares. As pessoas foram convidadas a regressar a suas casas.

Só por volta das dezasseis horas daquele dia tão esperado, se dá a rendição do poder nas mãos do Presidente do Conselho, Marcelo Caetano. Pedro Feytor Pinto sai do Quartel do Carmo levando uma mensagem de Caetano para Spínola com o seguinte teor: “Para que o Poder não caísse na rua, o Presidente do Conselho estava pronto a entregar o Governo ao General Spínola.” Salgueiro Maia disponibiliza-lhe um jipe que o leva a casa do General Spínola. Mas Spínola não aceita a mensagem por ser apenas verbalizada pelo mensageiro. Ele precisa de uma mensagem escrita. Neste embaraço, eis que toca o telefone. Era Marcello Caetano. Dali a pouco Spínola volta ao encontro com Feytor Pinto e diz: “Falei com ele ao telefone, reconheci-lhe a voz e não preciso de uma carta. Agora o que preciso é de outra coisa. Como sabe, não sou chefe do Movimento. Preciso que me ponha em contacto com alguém responsável, de grau mais alto do que coronel”. Depois de voltar ao encontro com o Capitão Maia, este pôs-se em contacto com os seus chefes, que lhe ordenaram o encaminhamento de Feytor Pinto até à Pontinha, onde se encontrava o comando do Movimento com Otelo à frente. Todos compreenderam e todos queriam uma solução para que não houvesse, sobretudo, um banho de sangue. Quando Feytor Pinto regressou ao Quartel do Carmo, já lá se encontrava o General Spínola, a quem o Presidente do Conselho fez a rendição do seu Governo.


ÀS 18 horas o Capitão Maia anuncia à multidão o desfecho por que todos ansiavam. O Largo cheio como um ovo, alguns empoleirados nas árvores, outros até nas próprias viaturas militares. Uma massa humana tensa gritando “assassinos . . . assassinos”, que subiu de tom quando um veículo militar, com o nome “Bula” escrito na chapa blindada, sai do Quartel do Carmo rumo à incerteza. E o Capitão Maia: “O Movimento atua em nome da Liberdade. Não se fará justiça pelas próprias mãos”. Algum tempo depois é Francisco Sousa Tavares, empoleirado não sei onde com um megafone na mão, que apela à multidão para que se comporte civicamente. E nas televisões e nas rádios mais uma vez “Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas”, informando a concretização da queda do regime pela rendição de Sua Exª o Prof Marcello Caetano e Sua Exª o Almirante Américo Thomaz, entregando o poder a Sua Exª o General António de Spínola. O Movimento das Forças Armadas agradece a toda a população o civismo e a colaboração demonstrados de maneira inequívoca desde o início dos acontecimentos, prova evidente de que ele era o intérprete do pensamento e dos anseios nacionais.

Ao princípio da noite crescia o temor pelo que se poderia estar a passar em Caxias e em Peniche, prisões políticas ainda à mercê dos ‘pides’ aí concentrados. Cerca das 21 horas a multidão dirige-se para a sede da PIDE/DGS. E é aqui, infelizmente, onde há derramamento de sangue, com a morte de quatro manifestantes e algumas dezenas de feridos por tiros disparados por elementos dessa ex-polícia política. Mais uma vez se apela à calma e as Forças Armadas cercam o edifício. Um desses agentes que tentava fugir é abatido por um elemento das Forças Armadas.

É só no dia seguinte, pelas 23.30, que o Tenente Nunes chega ao forte de Caxias trazendo a ordem de libertação para todos os presos ali detidos. As portas da prisão de Caxias abrem-se de par em par, e perto de uma centena de ex-presos políticos saem ao encontro de familiares e amigos que há longas horas esperavam o momento da libertação. O que então se passou é indescritível. Abraços e lágrimas misturados com gritos de reivindicação das liberdades fundamentais e do slogan “o povo unido jamais será vencido”.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Paradoxos e contradições do progresso tecnológico

Apesar do desenvolvimento técnico-científico em latitudes onde seria de esperar que o fosso entre ricos e pobres diminuísse, pelo contrário, aumentou. Longe de estar aqui a amaldiçoar o progresso, limito-me a constatar que o progresso não é mais do que uma solução parcial e contraditória da miséria humana. Chegou a pensar-se que o progresso tecnológico nos iria libertar das religiões. Mas o que aconteceu foi sermos manipulados pelos mercados de consumo rápido e globalizado. E, apesar de dispormos de mais meios de informação, continuamos a ser enganados e surpreendidos pelo inesperado.

A ciência é uma coisa boa. Mas contribuiu mais para o domínio da técnica do que para a literacia científica das pessoas comuns. E assim tem continuado a esterilização das classes trabalhadoras por multimilionários detentores do poder cibernético ultrarrápido. Os espantosos progressos complicaram ainda mais a vida às pessoas, ao ponto de disporem cada vez menos tempo para pensar nos valores que importam para a sustentabilidade das nossas vidas com harmonia e equanimidade.

Assim, a fulgurante expansão da Inteligência Artificial na Economia tem proporcionado não apenas coisas boas. O desemprego é um exemplo das coisas más.

Para cada responsável de uma empresa, um O grau de complexidade cresce à medida que se multiplicam as variáveis a ter em conta. É por isso que os CEO (a chief executive officer, the highest-ranking person in a company or other institution, ultimately responsible for taking managerial decisions) erram tantas vezes nas suas decisões.

Segundo Edgar Morin, a complexidade é aquilo que se teceu em conjunto para formar um todo que é mais do que a soma das suas partes. O conhecimento analítico dos diferentes fios que compõem uma tapeçaria não permitirá nunca o conhecimento da obra de arte na sua totalidade. A complexidade do real não pode ser dominada inteiramente, porque a complexidade das variáveis e das suas interações permite sempre certos resultados inesperados e não redutíveis à análise. Por conseguinte, o resultado de uma ação nunca é aquele que se tinha previsto. Seja uma pessoa, seja uma empresa, estamos a lidar com sistemas complexos, que como reagem ao contexto estão em constante transformação. Quanto mais informação, mais inter-relações se estabelecem, e maiores são as retroações (positivas ou negativas) que comportam certos efeitos de bloqueio ou feedback.

Se perguntar qual dos seguintes exemplos é mais complexo do que o outro: “um Boeing ou um prato de esparguete” – a resposta imediata é: “obviamente o Boeing”. Mas a resposta está errada. Um Boeing é complicado, mas não complexo. Um prato de esparguete é simples, mas complexo. Um avião, apesar de comportar milhares de peças diferentes a funcionar obedecendo a leis físicas cuja compreensão só está ao alcance de uma minoria de engenheiros, a verdade é que é possível montá-lo e depois desmontá-lo peça por peça e analisar tudo com toda a certeza. Como não pode estar à mercê da incerteza, não é complexo. Ao passo que um prato de esparguete é formado por um emaranhado de fios que deslizam uns pelos outros enredados em retroações completamente aleatórias, não se podendo prever que quantidade de esparguete podemos enrolar em cada ação de enrolamento à volta do garfo antes de o meter na boca. A incerteza é um dos aspetos da complexidade.

Evoquei Edgar Morin como um “sistémico” de excelência, entre muitos outros que também poderia mencionar como excelentes. Mas opto por evocar uma outa metáfora: “Os cavalos do lago Ladoga”. O lago Ladoga é o maior lago inteiramente localizado na Europa e o 14º maior lago de água doce do mundo. Está localizado na República da Carélia e no oblast de Leninegrado no noroeste da Rússia próximo da fronteira com a Finlândia. Um dia, quando certos cavalos entraram na água fria do lago Ladoga, não pressentiram o que lhes iria acontecer porque devido a uma descida brusca da temperatura a água congelou muito rapidamente que não deu tempo a que os cavalos pudessem sair da água. E os cavalos morreram presos no gelo.

Hoje podemos verificar que as nossas instituições também arrefecem muito depressa. A escalada irreprimível do desemprego, a iliteracia crescente dos funcionários, as condições de vida das periferias e as novas formas de pobreza não são mais do que manifestações visíveis da congelação institucional.

O Universo é um sistema, em que a auto-organização, a confiança, a aceitação dinâmica das contradições, a reflexão coletiva sobre o sentido, a imaginação e a iniciativa – são mais eficazes para enfrentar o imprevisto do que diretrizes rigidamente impostas de cima para baixo. Estas raramente chegam a ser aplicadas, porque a imaginação dos homens é suficientemente criativa para as contornar e contrariar.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

O olhar da consciência sobre o mundo das coisas


No mundo capitalista das mercadorias o homem tende a ser olhado e tratado como uma coisa, a ser reduzido a mero apêndice da produção. E isso constitui um trauma porque teve de se sujeitar ao desprezo de Si como sujeito, que tanto tempo levou a consolidar desde a Pré-História, numa altura em que o que avultava era o caráter viril do Si para vencer o medo da morte.

A falta de compreensão, por parte das ciências naturais, do caráter constitutivo do Ser, levou a um obscurecimento do sentido da racionalidade ao tratar o homem como coisa. E isto aconteceu porque a técnica moderna, como braço armado das ciências naturais, arrogou-se à pretensão de primeiro no desvelamento da verdade. Ora, é o Ser que manifesta ao homem, em termos humanos, a verdadeira natureza do conjunto de forças, calculáveis, que criam as coisas.

Remeto-me para a época trágica das duas Grandes Guerras Mundiais do século XX na Europa, em que os totalitarismos se difundiram, para exemplificar como a racionalidade foi empregue para fins destruidores, com a cumplicidade das ciências naturais.

Não compensa, como se tem feito ultimamente, viajar entre os diversos mundos da vida, caminhando na direção do reencantamento à procura da felicidade, em saltos de extraordinária loucura. Aqui o “se” significa ao mesmo tempo todos e ninguém.

Qual Ulisses moderno, seja na versão seminal do herói homérico, seja na versão de Joyce. Uma viagem que durou dez anos no primeiro caso, vinte e quatro horas no segundo. Em mar aberto no herói de Homero, que se fez acorrentar ao mastro pelos seus homens com cera nos ouvidos, para que só ele ouvisse o canto da sereia de modo a poder entrar noutros mundos, e assim, num rito de passagem, viver uma identidade móvel, desencantada e trágica, mas imortal. Joyce entrou por outros sentidos proibidos para imprimir um outro significado ao seu plano de vida extra quotidiano, nos diversos lugares e não-lugares, nichos cavernosos da cidade protegida pelo sujeito que morreu antes de ter chegado à palavra.

É supérflua a fadiga de quem pretende demonstrar que o mundo, no seu conjunto, avança numa determinada direção, desqualificando indiretamente toda a busca de autenticidade nos pequenos mundos de vida enquanto lugares de distensão. No seio deste submundo de atividades ilícitas, vigoram regras e critérios de tal relevância que, noutros lugares, seriam impensáveis. Recordo aquela fábula dublinense, do turista em Dublin que aborda um dublinense e lhe pede que o ajude a encontrar o melhor caminho para sair de Dublin. A resposta do dublinense foi que se quisesse sair de Dublin seria melhor partir de outro lugar. É claro que esta é uma narrativa alternativa à narrativa original, para metaforizar os tempos atuais das verdades alternativas, ou dos factos alternativos. São lendas com projeção do desejo, quando homens se encontram em certos lugares com mulheres desconhecidas, contando estórias inverificáveis sobre a sua identidade, sobre o seu curriculum vitae, ou quando mulheres se encontram com homens desconhecidos, ostentando os seus belos decotes postiços. É o choque adrenérgico quando se cede à casualidade dos encontros.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Horizontes culturais


Hoje, importa meter a mão a na consciência e refletir sobre o que temos andado a fazer com a tecnologia por ganância. Como foi possível o homem ter-se tornado um ser altamente nocivo, incapaz de valorizar adequadamente o risco ao alterar equilíbrios delicados? Todos contribuímos para a degradação do ambiente e a depauperação dos recursos. As potencialidades destrutivas tornaram-se ainda mais acentuadas quando o estilo de vida e o modelo industrial ocidental se tornaram globais.

Paradoxalmente, a ameaça ao equilíbrio ecológico do planeta Terra deriva precisamente porque a humanidade teve um êxito desmesurado com a ciência e a técnica. A escala exponencial dos efeitos indesejáveis da ação individual e coletiva ampliaram-se de tal modo inesperado e inaudito que muitos cientistas, alegadamente os mais pessimistas, consideram que já é demasiado tarde para reverter a situação climática do planeta rumo a uma série de catástrofes impossíveis de controlar.

Cada um de nós tem, de facto, uma responsabilidade coletiva perante a Terra e os seus habitantes, que estão longe de se reduzirem apenas aos seres humanos. Apesar de as religiões ditas do Livro, maioritárias no mundo, terem chamado insistentemente à atenção de que o primeiro mandamento tinha a ver com a expulsão do Paraíso, por termos desobedecido ao comer o fruto do conhecimento, não se quis ouvir o imperativo de agir de modo que os efeitos das nossas ações fossem compatíveis com a permanência de uma autêntica vida neste paraíso que é a Terra. Mas deixamo-nos iludir com a esperança, em vez de assumirmos com coragem a responsabilidade que se nos impunha.

Um filósofo americano, Richard Rorty, combateu a metafísica clássica ao sublinhar o papel dos contextos sociais. Continuador da tradição do pragmatismo americano, cujos mentores remetem para nomes como William James, para Rorty a verdade é o resultado de regras e de procedimentos aceites no seio de uma dada comunidade. Rejeita os pressupostos seculares do pensamento ocidental que visavam garantir a sua incondicional universalidade. Rejeita assim o conceito de realidade em si, como se as nossas representações mentais a reproduzisse tal e qual como se fosse um espelho.  Desistindo da busca cartesiana da certeza, delineou duas posições em relação à verdade: 1) ancorada num patamar suprassensível que remonta a Platão; 2) associada a práticas culturais compartilhadas de justificação e de controlo. A verdade filiada na metafísica clássica é, segundo Rorty, baseada em procedimentos de carater autorreflexivo, próprios de um grupo restrito que se arroga o direito de representar toda a humanidade, de todas as épocas e lugares. A verdade suprema é como o sol que não se pode olhar por muito tempo sem perder a vista. Verdade é aquilo que é aceite por aqueles que seguem determinadas regras históricas de verificação. A autoridade da ciência resultou de um acordo coroado de êxito entre indivíduos que se descobriram herdeiros das mesmas tradições históricas e confrontados com os mesmos problemas.

Rorty preconizava que se devia apostar na ideia de uma humanidade que avança em direções divergentes, privilegiando a diferenciação relativamente à unificação, e assim contrariava o ideal de unificação das formas de pensamento sob a égide de uma verdade e de uma racionalidade supracomunitária, em que a História avançaria inexoravelmente para a convergência entre as diversas civilizações.

Os critérios do universalismo assentaram em pressupostos metafísicos. Mas esses pressupostos acabaram por enfraquecer, abrindo a porta a formas de relativismo. E isto provocou a perda de prestígio das disciplinas da Filosofia. Filosofia essa que tentou articular a realidade e o saber sobre a base de uma razão universal unitária. Ainda assim ainda houve algumas tentativas para salvar a Filosofia. São exemplos disso Jürgen Habermas e John Rawls. Como contributos para a filosofia política, a ação comunitária de Habermas, e a teoria da justiça de Rawls, representam nas sociedades democráticas uma alternativa frente ao recurso à força na solução dos conflitos e à prática de uma fatigante negociação em que vence quem tem maiores reservas de poder ou maior habilidade estratégica na prossecução dos seus interesses.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Leis do Universo e pensamento ‘a priori’


O que tem levado a comunidade científica a procurar a última palavra na experiência, não se contentando apenas com as teorias assentes em equações matemáticas, decorre da sua lealdade para com os empiristas britânicos, os primeiros a serem bem-sucedidos na disputa com os ensinamentos bíblicos judaico-cristãos. No fim de contas, as teorias cosmológicas produzidas pelo pensamento matemático eram do mesmo domínio epistemológico das narrativas dos primeiros capítulos do Génesis, ou seja, derivadas de puro pensamento a priori.

Muitos fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação literal da narrativa da criação dos primeiros dois capítulos do Génesis. Ora esta interpretação recebeu um novo rombo com Darwin, depois de ter publicado o livro seminal da teoria evolucionista ainda hoje intocável nos seus pilares fundamentais: a evolução das espécies por variação e seleção natural. Pelas explicações Darwinistas, os seres humanos não foram concebidos, sendo antes produto do processo cego sem direção da seleção natural, operando sobre uma fonte de variação, como a mutação genética.  A Natureza não tem em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente. Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê coisa alguma. A Natureza tem leis. E o que os humanos fazem, através do que eles chamam ciência, é descobrir essas leis.

A existência dos buracos negros, que até agora era uma entidade teórica a priori, é confirmada por conhecimento a posteriori. Mas provavelmente esta certeza dos buracos negros vai reforçar ainda mais a ideia a priori de que no interior dos buracos negros são geradas estrelas e quiçá universos que se regem por outras leis que não as leis que até agora a ciência tem definido como “as leis da natureza”. Laplace disse em 1796: “Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do que se lhe seguirá”. Para ele nada seria incerto, e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos.

As leis de Newton aplicam-se a sistemas isolados ou fechados; descrevem como o mundo funciona desde que o mundo seja um sistema fechado (isolado), não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas não faz parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a declaração de que o universo material é realmente um sistema fechado. Como poderia uma coisa dessas ser verificada experimentalmente? Assim, pelo paradigma newtoniano, as leis dentro de um buraco negro podem ser diferentes de todas as leis postuladas por esse paradigma científico, agora dito “clássico”. A tese de que o universo material é de facto um sistema fechado não faz parte da física clássica; é um acrescento metafísico ou teológico. Esta imagem clássica foi, evidentemente, ultrapassada pelo desenvolvimento da mecânica quântica.

A atitude epistémica dominante na ciência é a investigação empírica crítica que propõe teorias, que por serem hipotéticas estão sujeitas a serem abandonadas por outras mais satisfatórias, e por isso o seu caráter é sempre temporário. Por conseguinte, a ciência, ou antes, a atitude científica, é diferente da crença religiosa, que é dogmática e definitiva. Daí que a ciência e a religião estejam condenadas a um conflito irreconciliável e insanável. Não há maneira de uma pessoa ter uma mentalidade apropriadamente científica, e ao mesmo tempo ser um verdadeiro crente religioso. É claro que, uma coisa é dizer isto assim, outra coisa é dizer que a atitude epistémica científica é a única apropriada a qualquer área do conhecimento. Na verdade, esta afirmação não é em si mesmo produto de qualquer atividade científica que tenha chegado a essa conclusão por métodos empíricos. É uma declaração epistemológica da Filosofia como disciplina do conhecimento e dos primeiros e últimos princípios da existência e essência do ser e das coisas. De um modo geral os cientistas não se colocam na atitude epistémica de questionar todas as suas crenças: científicas e não científicas.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Pensamento matemático e saber científico


Hoje muita gente está eufórica com a primeira fotografia real de um buraco negro, que confirma, mais uma vez, que Einstein tinha razão. Com este acontecimento reforça-se ao mais alto nível a objetividade do conhecimento científico. Mas devemos ter em mente que quaisquer dados de perceção científica resultam de operações complexas, e que em última instância a realidade depende dos parâmetros dos sistemas observacionais escolhidos.

Einstein havia conseguido demonstrar pela teoria da relatividade geral que o espaço sujeito às leis da física era um espaço não euclidiano. Não se trata de um espaço natural intuitivamente representável pela experiência sensível comum. Essa teoria descola para atmosferas extremamente rarefeitas de universos regidos apenas pela coerência interna da matemática. Bertrand Russel, acreditava na realidade dos números. Tinham uma conceção platónica da realidade dos números.

Neste universo em perene movimento, a realidade é continuamente reescrita e reinterpretada. O conceito de dados sensíveis, ou dados dos sentidos, que foram rigidamente fixados pelas correntes positivistas, acabaram por liquefazer-se por dentro do próprio positivismo, com o pensamento do chamado “Segundo Wittgenstein”. Uma coisa era dizer que o sol não deixava de existir quando fechamos os olhos. Outra coisa era perguntar como ficava o vermelho de uma maçã vermelha exposta ao sol, quando se colocava a maçã num quarto escuro. Wittgenstein perguntou: “uma maçã vermelha no escuro continua a “ser” vermelha?

No campo das matemáticas assiste-se a tentativas altamente complexas de busca dos fundamentos comuns assentes numa lógica que atribui um significado específico, particularmente sui generis, à objetividade dos entes matemáticos.

O sofrimento humano e o poder de curar


Desde os primórdios que a humanidade procura meios para o apaziguamento do sofrimento. O sofrimento é inerente à existência e à condição humanas, pelo que em diferentes épocas as diversas sociedades precisaram de desenvolver meios que até aos nossos dias se têm revelado incapazes de eliminar todo o sofrimento. Apesar de o progresso ter sido enorme no que respeita à quase eliminação do sofrimento da parte física do corpo, tal não tem sido o caso em relação à dor psíquica.

As estratégias e os caminhos percorridos para atingir o objetivo têm sido ao longo da história, e em diferentes contextos civilizacionais, muito diversos e plurais. Ainda assim, as sociedades encontraram sempre alguém em quem delegar o poder de curar e aliviar o sofrimento.

Questões intangíveis, mas fundamentais da existência como: quem somos; o que fazemos aqui; para onde vamos; e qual o sentido de tudo isto – foram sempre objeto de inclusão no domínio do sagrado ao abrigo de conceitos e entendimentos marginais no seio da comunidade científica. O dom de cura articulava-se nesse paradigma conceptual. Um sagrado, umas vezes imanente, decorrente diretamente da estreita relação do homem com o ambiente; outras vezes assumindo formas transcendentes assentes em princípios que remetem para o absoluto.

Mas depois da aparente conquista do espaço da superstição por parte da ciência laica iluminista, eis que entramos na civilização do espetáculo e na era da pós modernidade alternativa. Hoje, a cultura de uma boa parte da sociedade é uma cultura de superfície e de aparência, de jogo e de pose, que para apaziguar o sofrimento do nosso tempo dispõe de duas alternativas às receitas protagonizadas pela religião católica, que se fina após dois milénios de supremacia: 1) através de seitas com o rótulo de “Nova Era” – que vão desde o espiritualismo oriental em todas as suas formas e divisões, passando pelas igrejas evangélicas e igrejas ainda mais exóticas que agora pululam e se dividem nos bairros marginais, até à cientologia tão popular em Hollywood; 2) através do álcool e estupefacientes, que apenas tranquilizam momentaneamente o espírito das incertezas outrora apaziguadas com rezas, confissões e sermões dos padres.

São setores muito reduzidos de seres humanos que podem dar-se ao luxo de prescindir por inteiro da religião. Só pequenas minorias conseguem emancipar-se da religião através da “alta cultura”, que enfrenta os problemas de frente e não lhes foge, com respostas sérias e não lúdicas aos grandes enigmas da existência pela filosofia, ciência e artes.

Sempre houve quem tivesse intuições de que os seres humanos possuíam razões que a razão desconhecia. E o discernimento da existência de pessoas com talentos consensualmente estabelecidos de apaziguamento e controlo de espíritos à solta. Por conseguinte, ainda que o conhecimento da mente humana tenha recebido incrementos extraordinários, a sua complexidade é de tal ordem que continua a ser o maior mistério a desafiar a nossa inteligência.

Apesar de a ciência ter dado saltos de gigante, continuam a persistir fórmulas decorrentes de uma epistemologia ingénua, mas nem por isso destituída de algum efeito benéfico no apaziguamento, quer dos males do corpo, quer dos males do espírito. O que muitas vezes as pessoas sofrem é de falta de sentido para as suas vidas. E do que precisam é de discursos que se conformem às suas mundividências idiossincráticas.

Ora, sempre houve conflitos de mundividências, entre epistemologias ingénuas e epistemologias esclarecidas e organizadas em universidades, faculdades, institutos e ordens profissionais. Estas organizações são as detentoras legais e legítimas da última palavra, do que é e deve ser, pelo que são detentoras da sapiência com poderes de calar as mundividências ingénuas. Daí a explicação para os discursos inflamados de parte a parte que pretendem transformar a anomia em ação, e as dúvidas em certezas.

Com o advento da farmacopeia em geral e da  psicofarmacologia em particular, deu-se aquilo que em filosofia se designa por uma rotura epistemológica, a passagem do mágico-religioso para o científico-empírico.  A terapia do sofrimento, quer ao nível do sofrimento físico, quer ao nível do sofrimento psíquico, se é que ainda tem sentido fazer esta separação mente/corpo, teve sempre outras figuras tutelares, onde as ordens religiosas pontuavam tanto nos cuidados do corpo como da mente.
A par da farmacologia é verdade que também surgiu a psicoterapia de cunho científico-empírico, se bem que o seu precursor, Freud, tenha sido considerado pouco científico com a sua psicanálise. Mas antes de Freud, muita gente podia desempenhar em algum momento função terapêutica, embora longe do que hoje é tido por psicoterapia. Esta aceção diferenciadora da ancestral função terapêutica, carece, todavia, de um extenso conjunto de reflexões que permitam perceber a pluralidade de propostas terapêuticas hoje disponíveis e abertas aos mais diversos contextos.

Cada vez mais, e um pouco por todo o lado, as pessoas recorrem a terapias, as mais díspares e diversas, para lidar com diferentes formas de dor, sofrimento ou desassossego. As sociedades, com os seus novos hábitos de consumo e de estilos de vida, têm gerado ondas de preocupação não apenas ao nível político, mas também ao nível da saúde pública. Uma das preocupações prende-se com o estatuto científico de algumas terapias e o seu enquadramento paradigmático à luz da doutrina dos dois filósofos da ciência mais influentes no século XX – Karl Popper e Thomas Kuhn.

Ao atual conflito entre o científico e o pseudocientífico, não é alheia a enorme proliferação de corpos profissionais ecléticos, oferecendo terapias com quadros de referência baseados em teorias e hipóteses demasiado heterodoxas para serem aceites pela ciência como sustentáculo legitimador das suas práticas. A ideia, de que o objeto da intervenção terapêutica é o indivíduo em sofrimento, pode ser enganadora. Habitualmente, é o paradigma teórico que define o objeto. Mas, como toda a experiência humana é eivada de subjetividade, o acesso do terapeuta ao sujeito é feito através da sua narrativa. Daí a necessidade de recorrermos a quadros explicativos e compreensivos dentro de um paradigma que, na impossibilidade de ser universal, seja pelo menos consensual ao nível de organizações internacionais, como é o caso da Organização Mundial de Saúde.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Fé e irracionalidade. Conhecimento como crença verdadeira justificada


Se se aceitar o paradigma lockiano da Racionalidade, então os filósofos que atualmente defendem a compatibilidade da crença religiosa com a racionalidade, o paradigma de ciência, tal como é hoje entendido, e com o conceito clássico de conhecimento como crença verdadeira justificada, serão encarados como defensores da irracionalidade em matéria de fé. Porque, entrelaçadas com as diferentes posições sobre a racionalidade da fé, existem diferentes posições sobre a natureza da racionalidade, tal como, na verdade, sobre a natureza da fé.

Se tomarmos por “Realidade” tudo o que existe. E se tudo o que existe inclui não apenas tudo o que é tangível pelos nossos sentidos biológicos, e mais o que faz parte da nossa mente, o mundo das ideias, ainda assim os Dogmas da “Fé”, como entes fictícios, são algo que transcende a Realidade. É a eterna questão insolúvel, que se arrasta pelo menos desde Platão no quadrante ocidental, da representação das imagens no interior da mente. Se formos aristotélicos, e não platónicos, o mundo do imaginário não pode ser reconhecido como fazendo parte da realidade. Como tudo aquilo que um sujeito conhece do mundo externo à sua mente tem de passar por um processo de interpretação de imagens, o conhecimento também é crença, mas tem de ser crença verdadeira justificada. Tem de ser verdadeiro e justificado com argumentos racionais.

Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Esta é, na verdade, uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá a favor da crença religiosa.

Um outro aspeto que importa considerar aqui é a natureza da realidade externa que conhecemos através dos nossos sentidos. Não pode ser a “realidade em si”, mas sim a realidade fenoménica, ou seja, do domínio do fenómeno. Fenómeno significa o que aparece. E o que aparece tem a ver com um outro aspeto da mente que damos pelo nome de consciência. Assim, para o sujeito, o fenómeno é um facto. Facto esse que pode ser comum a muitos sujeitos. Ao passo que cada experiência imaginária, é única. Não pode ser partilhada. Por conseguinte, transcende a realidade.

Hoje, para aqueles que se consideram “antirrealistas”, as crenças religiosas fazem parte de um outro nível de realidade socialmente construída. Para um antirrealista não há nenhuma verdade para além de um consenso socialmente aceite. Um grupo social pode ter um conjunto de verdades religiosas por consenso, e outro pode ter um conjunto diferente. Isto permite que diferentes comunidades e sociedades tenham diferentes noções de realidade. A disputa entre realistas e antirrealistas prende-se com a interpretação que fazem da cognoscibilidade dos factos.

Há uma longa história na discussão sobre a natureza da fé. Fé é uma crença em proposições, com base no que se diz? É uma atitude de lealdade ou de confiança em alguém ou numa ideologia? É uma espécie de “cuidado”? É uma virtude de um certo tipo? Para uns a fé no fundo é fiducia (acredita-se em algo ou alguém); para outros a fé é uma fides (acredita-se que uma proposição é o caso).

Quem defende que a fé tem conteúdo proposicional considera que Deus revela verdades, e que a fé consiste em parte em aceitá-las. Quem defende que a fé não tem conteúdo proposicional considera que a revelação divina consiste simplesmente em Deus manifestar-se, e que as proposições só entram na conversa quando os seres humanos interpretam a manifestação divina de Deus. 

As discussões na tradição filosófica ocidental contrapõem a fé à razão, na confluência entre a Bíblia, por um lado, e os textos da filosofia grega clássica, por outro. Tanto Platão como Aristóteles sustentavam que a vida humana ideal era a vida dedicada à teorização. Apesar de os seus entendimentos da teorização serem diferentes em vários aspetos, ambos a encaravam como a aquisição de conhecimento e estar ciente ou ter entendimento.

Para Platão, a aquisição de episteme exige o afastamento da opinião ou crença (doxa). Quase toda a gente na tradição cristã da antiguidade tardia e na idade média concordava com os gregos clássicos que o entendimento racional é um ideal humano. Contudo, ninguém considerava que a fé fosse episteme (grego) = scientia (latim). Para os cristãos da Antiguidade tardia a fé era uma atividade, não de razão, mas de amor. Não amor à sabedoria, mas amor a Deus.

Wittgenstein postulou que a racionalidade da fé é irrelevante quanto à sua aceitabilidade, na medida que para aquilo que a linguagem não tem palavras temos de calar. Essa posição tem tradicionalmente sido denominada “fideísmo”. Que a fé não precisa do apoio da razão e não deve procurá-lo. Um fideísta, pois, sustentará que a fé não precisa, ou não manifesta, uma forma de racionalidade, e irá proclamar isto mesmo em sua defesa. Mais habitualmente, o fideísta irá sustentar que a fé não obedece a critérios de prova, mas poderá ir mais longe e sustentar que as suas proclamações são paradoxais. Tanto na forma moderada como na radical, o fideísmo irá envolver o rebaixamento da razão como fonte de verdade espiritual e irá encontrar bases na natureza da fé para defender que ser sustentado pela razão é um defeito e não uma vantagem.

No início da era moderna surgiu o ceticismo fideísta, ou fideísmo cético. O fideísmo cético assume duas formas: O de Michel de Montaigne e Pierre Bayle, que procuraram apresentar a fé como uma aceitação não-dogmática de convenções e práticas tradicionais; e o de Blaise Pascal e Kierkegaard que reconheciam que o convencionalismo dos primeiros estava profundamente em conflito com os compromissos da verdadeira fé. O cético é um aliado involuntário que desmascara as pretensões da razão, de modo que a fé pode então entrar e preencher o vazio espiritual que o cético ajudou a criar.

A fé não é apenas uma questão de aceitar doutrinas, mas um estado de confiança e compromisso que tem por objecto o próprio Deus, e não uma série de proposições acerca dele. A razão exige uma objetividade e um distanciamento que é apropriado na ciência, mas é uma fuga do envolvimento apaixonado que é preciso para conseguir a salvação.

Pascal é um fideísta moderado, a fé e o raciocínio filosófico são incompatíveis com respeito aos seus motivos, e que as verdades da fé estão para lá do poder da razão. Um fideísta radical diz-nos que a fé é inequivocamente contrária à razão. É difícil ao filósofo responder ao fideísmo radical, dado que o fideísta radical parece rejeitar todas as regras a que um filósofo pode apelar. O fideísta parece superficialmente ter escolhido aceitar as afirmações de uma autoridade e ter posto de lado os protestos da outra. Viver conscientemente a inconsistência é um problema. Se eu pensar que algo do que acredito é verdadeiramente paradoxal, então, passei também a acreditar na sua falsidade. Terei então um conflito de crenças. Há um conflito interno que está condenado a persistir enquanto persistir a consciência do juízo negativo da razão. Que o conflito não seja agonizante em algumas pessoas (que a paixão seja feliz) só mostra que o autoengano pode ser bem-sucedido. Apesar de toda a sua insistência na pureza espiritual da fé, o fideísmo radical é uma forma de falsa consciência.

Pascal diz-nos que a fé é Deus conhecido pelo coração e não pela razão; e que o coração tem razões que a razão desconhece; e no “argumento da aposta”, Pascal adotando uma postura prudencial, como uma maneira de minimizar os riscos que se corre face à eternidade, exorta um leitor sério, mas descrente, a reconhecer as vantagens da fé em comparação com a descrença. Pascal exorta o seu descrente a adotar várias estratégias para induzir a crença em si próprio, apesar da ausência de bases convincentes.

São argumentos importantes, que tanto Pascal como Kierkegaard usam, de que muitas crenças de senso comum partilham com a fé a característica de estarem para lá da justificação racional. Se isto for verdadeiro, a situação da fé não é pior que a de muitas formas seculares de prova, e deve-se reconhecer que também envolvem fé. Kierkegaard fala de fé secular, tal como de fé religiosa. Apesar da solidez do argumento, enquanto manobra apologética, pode ser apartado das suas conexões fideístas, e tem-no sido. A analogia entre as crenças religiosas e as que dependem da perceção ou da memória ou da indução, é o que alimenta o movimento da pós-verdade da pós-modernidade.

As discussões da fé e da razão centram-se habitualmente em determinar em que medida a fé se conforma ou deve conformar-se com padrões de racionalidade cognitiva. Mas a tradição fideísta tem também algo a dizer sobre até que ponto a vida de fé se conforma com padrões de racionalidade prática.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Ciência e religião – duas forças culturais antagónicas a moldar humanidades


O que há de especial entre a crença na ciência e a crença religiosa? como tem de ser uma crença para ser religiosa? Por questões de método de exposição considero as cinco maiores religiões do mundo por ordem de antiguidade: Hinduísmo, Judaísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo; e as ciências modernas empíricas que se desenvolveram no ocidente a partir do século XVI sob o lema do conhecimento como crença verdadeira justificada. Sendo o conflito, o ponto central desta abordagem ao tema, seria útil caracterizar a natureza da religião e a natureza da ciência. Sucede que não é fácil caracterizá-las, quando se verifica que nem toda a crença em Deus, é religiosa. E nem todas as religiões envolvem a crença em Deus. Os filósofos medievais fartaram-se de propor teorias sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte crucial de um sistema metafísico-teológico e não religioso. A propriedade religiosa da crença é adquirida apenas quando condiciona o modo de vida da pessoa ou da comunidade onde ela exerce a sua força. Assim, a crença está apropriadamente conectada a atitudes caracteristicamente religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração, amor, compromisso, maravilhamento e afins.

O termo ciência abarca um leque muitíssimo variado de atividades humanas que para se considerarem ciências têm de obedecer a um grupo de critérios para serem aceites como tal por sociedades que se identificam com um determinado paradigma cultural e civilizacional marcado pelo tempo histórico. É o paradigma da objetividade, da evidência empírica e do método experimental. Ora, ainda hoje, por exemplo, no quadrante do hemisfério que é designado por ocidental, há quem considere que tanto a teoria do Big Bang como a teoria evolucionista de Darwin não são ciência porque não há nada de objetivo nem de experimental que lhes dê sustentação. Já para não falar das limitações na aplicação da ciência a questões humanas centrais como é o caso dos juízos morais, ou dos juízos de valor mais em geral. Assim, talvez se devesse entender o conceito de ciência que desse cobertura de uma forma mais abrangente às várias atividades sem as quais uma determinada civilização não funcionaria. Para todos os efeitos práticos da Grécia Antiga, Aristóteles era um homem de ciência, que abarcava no seu entendimento atividades que se relacionavam entre si por semelhança e analogia, porque não havia uma atividade única que fosse apenas ciência em si. No entanto não deixava de ser uma atividade sistemática e disciplinada, teórica e empírica, que visava descobrir a verdade sobre o mundo.

Há várias questões históricas e epistemológicas que se colocam ao investigador desta temática. Em termos históricos podemos referir a surpreendente relutância do Médio Oriente islâmico em aceitar a ciência europeia transmitida por Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc., que não deixavam de ser seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton, não fossem cristologicamente ortodoxos. Há uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um salto no escuro. O que sucede é que a ciência já havia sido transmitida na Idade Média aos europeus pelos muçulmanos. A civilização islâmica medieval era não apenas herdeira dos conhecimentos do antigo Egito e Babilónia, mas também o foram da Grécia Antiga e da Pérsia, na medida em que traduziram e preservaram dos textos mais importantes, que de outro modo se teriam perdido para sempre.

Nos finais da Idade Média e transição para o período da Renascença, muitos jovens europeus viajaram até Espanha e Sicília (leia-se o romance de Margueritte Yourcenar – A obra ao negro), para frequentar os centros de ensino muçulmanos, os mais prestigiados à época. A partir daqui traduziram para latim textos do árabe originais e outros que já eram adaptações dos antigos textos gregos. Assim, aqueles cientistas europeus sentiam a enorme dívida que tinham para com esses transmissores de conhecimento. No entanto, inexplicavelmente, ou a não haver outra explicação que não a religiosa, de uma forma súbita os muçulmanos operaram uma mudança radical, uma reviravolta de 180º no seu paradigma civilizacional. No mundo islâmico, a liberdade foi praticamente eliminada, e a ciência foi substituída por um corpo dogmático de conhecimentos. Uma inversão total com o mundo cristão, que doravante e até aos dias de hoje abraçou a ciência de uma forma tal que as suas repercussões para o futuro deste Universo ainda estão por adivinhar. Nem no mundo da civilização chinesa, mais a Oriente, se verificou tal fenómeno. A maior parte dos países asiáticos incorporaram e absorveram o impacto da civilização ocidental por via da ciência. Hoje, ao invés do Médio Oriente, no universo chinês e japonês apenas há uma ciência. A ciência que era ocidental, por via da globalização deixou de o ser, para ser global.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Uma via insustentável


          A recente catástrofe climática em Moçambique avisa-nos mais uma vez que temos de nos mexer e mudar esta via insustentável para uma mais sustentável. Caso contrário, algo desagradável irá acontecer. Até agora ainda tem sido possível aos países mais desenvolvidos manter em grande parte as suas amenidades, mas de futuro tal deixará de ser assegurado se não se arrepiar caminho. É duvidoso que o mundo desenvolvido possa manter o seu estilo de vida isolado, não apenas porque o clima não obedece a fronteiras, mas também porque as suas fronteiras rapidamente se desmoronam sob vagas maciças de imigrantes desesperados com fome, fugindo às catástrofes naturais e às guerras nos seus países de origem. Por outro lado, não se vislumbra que a curto prazo a deterioração ambiental, provocada pela poluição industrial e tráfego rodoviário, sobretudo nas megametrópoles, seja revertida.
          Pode haver dois tipos de escolha para o sucesso ou o fracasso:
          Planeamento a longo prazo e vontade de reconsiderar antigos valores. Do mesmo modo, também podemos reconhecer o papel crucial dessas mesmas duas escolhas para o resultado de nossas vidas individuais. Uma dessas escolhas depende da coragem de praticar raciocínio de longo prazo, e tomar decisões antecipadas firmes, corajosas, em um tempo em que os problemas se tornam percetíveis, mas antes de assumirem proporções críticas. Este tipo de tomada de decisão é o oposto da tomada de decisão reativa de curto prazo que muito frequentemente caracteriza os nossos políticos eleitos, concentrando-se apenas em assuntos que possam vir a irromper em crise nos próximos 90 dias. A outra escolha crucial iluminada pelo passado envolve a coragem de tomar decisões dolorosas em relação a valores. Que valores que outrora serviram bem à nossa sociedade podem continuar a ser mantidos sob as novas alteradas circunstâncias? Quais desses valores devem ser alijados e substituídos por abordagens diferentes? Eis a questão!
          Os habitantes dos países mais desenvolvidos vivem numa certa ambivalência em relação aos imigrantes que chegam em busca de um melhor nível de vida. Por um lado, a economia está completamente dependente da mão de obra desses povos, quer na agricultura, quer na construção civil, quer nos serviços domésticos. Mas por outro lado os autóctones queixam-se de que os imigrantes competem com os desempregados locais, fazem baixar os salários e sobrecarregam os sistemas de saúde.
          Os otimistas dizem: "A tecnologia resolverá os nossos problemas." Esta é uma expressão de fé no futuro, portanto baseada no suposto antecedente de ter a tecnologia resolvido mais problemas do que aqueles que criou em passado recente. Está implícita a premissa de que de amanhã em diante, a tecnologia funcionará basicamente para resolver os problemas existentes, e deixará de criar novos. A experiência que se tem de tudo isto é que é o contrário. Algumas tecnologias são bem-sucedidas, outras não. As que são bem-sucedidas geralmente demoraram algumas décadas para se desenvolverem e se espalharem. E mesmo estas, sejam ou não bem-sucedidas na solução dos problemas para os quais foram projetadas, geralmente criam novos e inesperados problemas. As soluções tecnológicas para os problemas ambientais geralmente são bem mais dispendiosas do que as medidas preventivas para evitar a criação de problemas. Acima de tudo, os avanços tecnológicos apenas aumentam a nossa habilidade de fazer coisas, seja para o bem ou para o mal. Todos os nossos problemas atuais são consequências negativas não intencionais de nossa tecnologia existente. Os rápidos avanços tecnológicos durante o século XX criaram problemas novos e difíceis mais rapidamente do que resolvido os antigos.
          Durante os primeiros anos após a entrada em cena dos automóveis, até parecia que as cidades se tornavam mais limpas à medida que os cavalos iam desaparecendo. Ainda hoje se notam vestígios desses tempos quando visitamos o núcleo histórico da cidade de Viena, o cheiro a esterco e urina de cavalo mais a sonoridade dos seus cascos. Embora ninguém esteja advogando a volta ao cavalo como solução para o smog das emissões dos motores a explosão, o exemplo serve para ilustrar o lado negativo não previsto de tecnologias que alguns teimam em preservar.
          Outro exemplo de fé na mudança e substituição é a esperança de que fontes de energia renováveis, como a energia eólica e solar, possam resolver a crise de energia. Tais tecnologias existem, contudo, a energia eólica e solar têm aplicabilidade limitada porque só podem ser usadas em locais com luz e vento constantes. Além disso, a recente história da tecnologia demonstra que o tempo de conversão para a adoção de grandes mudanças pode ser medido em décadas, porque muitas instituições e tecnologias secundárias associadas com a antiga tecnologia têm de ser mudadas. É de facto visível que fontes de energia além dos combustíveis fósseis farão contribuições crescentes para o nosso transporte motorizado e geração de energia. Mas esta é uma solução a longo prazo. Não faz sentido nos contentarmos com o nosso presente conforto quando é evidente que estamos num curso não sustentável.
          O problema além de demográfico é também de desenvolvimento se ele for virtuoso para os países dantes ditos do terceiro mundo. Se estes países alcançarem os padrões de vida do primeiro mundo, o que é legítimo, então a situação se tornará ainda mais insustentável. Até agora, as preocupações ambientais são luxos que só podem ser pagos pelos países ricos, que não têm o direito de dizer aos cidadãos dos países pobres o que devem fazer. Estes povos saberem muito bem como estão sendo prejudicados pelo crescimento populacional, desflorestação, sobrepesca e outros problemas. Eles sabem disso porque pagam a conta imediata, em forma de perda de madeira gratuita com a qual construir casas, grave erosão do solo e a queixa trágica da sua incapacidade de comprar roupas, livros e pagar a escola para os seus filhos. A floresta atrás de sua aldeia está sendo derrubada ou porque um governo corrupto ordenou que fosse derrubada apesar do seu protesto, frequentemente violento, ou porque tiveram de assinar um arrendamento com grande relutância por não ter visto outro meio de conseguir dinheiro necessário para sustentar os seus filhos no ano seguinte.
          Porque será que os níveis desses produtos químicos tóxicos, de nações industriais remotas das Américas e da Europa, podem ser mais elevados nos inuits do que em americanos e europeus urbanos? É porque a base da dieta inuit são as baleias, focas e aves marinhas que comem peixes, moluscos, camarões, e esses produtos químicos se concentram em cada passo desta cadeia alimentar. Todos nós no Primeiro Mundo que ocasionalmente consumimos frutos do mar também estamos ingerindo esses produtos químicos, mas em quantidades menores.
          Quando as pessoas estão desesperadas, subnutridas e sem esperança, culpam os seus governos, que veem como responsáveis ou incapazes de resolver os seus problemas. Depois, ou se matam uns aos outros em guerras civis, ou tentam emigrar a qualquer custo. Dão-se conta de que nada têm a perder, e tornam-se terroristas, ou apoiam e toleram o terrorismo. Alta percentagem da população no fim da adolescência e início da idade adulta transformam-se em hordas de homens jovens desempregados, maduros para serem recrutados em milícias.
          Portanto, globalização quer dizer mais que comunicações mundiais aperfeiçoadas, que podem levar diversas coisas em diversas direções. A globalização não se restringe apenas a coisas boas. Para se entender a escala mundial dos problemas, considere-se o lixo recolhido nas praias dos pequenos atóis no sudeste do Oceano Pacífico: atóis desabitados, sem água potável, raramente visitados até mesmo por iates, e entre os pedaços de terra mais remotos do mundo, cada um deles a centenas de quilómetros até mesmo da remota e desabitada ilha Henderson. Ali, as pesquisas detetaram em média um pedaço de lixo para cada metro linear de praia, que deve ter vindo de navios ou de países asiáticos ou americanos na costa do Pacífico, a milhares de quilómetros de distância. Os itens mais comuns são sacos plásticos, boias, garrafas de vidro e de plástico, cordas, sapatos e lâmpadas, junto com coisas estranhas como bolas de futebol. Outro exemplo sinistro são os mais altos níveis de contaminação por produtos químicos tóxicos e pesticidas registados entre os inuits (esquimós) da Gronelândia Oriental e da Sibéria, que também estão entre os lugares mais afastados das fábricas de produtos químicos de uso intensivo. Os níveis de mercúrio que têm no sangue, porém, atingem as faixas associadas à intoxicação aguda, enquanto os níveis tóxicos de bifenóis policlorados PCBs no leite das mães inuits são altos o bastante para classificar seu leite como alimento tóxico. Os efeitos nos bebés incluem perda de audição, desenvolvimento mental alterado e função imunológica deprimida, daí as altas taxas de infeções respiratórias e do ouvido.