sexta-feira, 12 de abril de 2019

O sofrimento humano e o poder de curar


Desde os primórdios que a humanidade procura meios para o apaziguamento do sofrimento. O sofrimento é inerente à existência e à condição humanas, pelo que em diferentes épocas as diversas sociedades precisaram de desenvolver meios que até aos nossos dias se têm revelado incapazes de eliminar todo o sofrimento. Apesar de o progresso ter sido enorme no que respeita à quase eliminação do sofrimento da parte física do corpo, tal não tem sido o caso em relação à dor psíquica.

As estratégias e os caminhos percorridos para atingir o objetivo têm sido ao longo da história, e em diferentes contextos civilizacionais, muito diversos e plurais. Ainda assim, as sociedades encontraram sempre alguém em quem delegar o poder de curar e aliviar o sofrimento.

Questões intangíveis, mas fundamentais da existência como: quem somos; o que fazemos aqui; para onde vamos; e qual o sentido de tudo isto – foram sempre objeto de inclusão no domínio do sagrado ao abrigo de conceitos e entendimentos marginais no seio da comunidade científica. O dom de cura articulava-se nesse paradigma conceptual. Um sagrado, umas vezes imanente, decorrente diretamente da estreita relação do homem com o ambiente; outras vezes assumindo formas transcendentes assentes em princípios que remetem para o absoluto.

Mas depois da aparente conquista do espaço da superstição por parte da ciência laica iluminista, eis que entramos na civilização do espetáculo e na era da pós modernidade alternativa. Hoje, a cultura de uma boa parte da sociedade é uma cultura de superfície e de aparência, de jogo e de pose, que para apaziguar o sofrimento do nosso tempo dispõe de duas alternativas às receitas protagonizadas pela religião católica, que se fina após dois milénios de supremacia: 1) através de seitas com o rótulo de “Nova Era” – que vão desde o espiritualismo oriental em todas as suas formas e divisões, passando pelas igrejas evangélicas e igrejas ainda mais exóticas que agora pululam e se dividem nos bairros marginais, até à cientologia tão popular em Hollywood; 2) através do álcool e estupefacientes, que apenas tranquilizam momentaneamente o espírito das incertezas outrora apaziguadas com rezas, confissões e sermões dos padres.

São setores muito reduzidos de seres humanos que podem dar-se ao luxo de prescindir por inteiro da religião. Só pequenas minorias conseguem emancipar-se da religião através da “alta cultura”, que enfrenta os problemas de frente e não lhes foge, com respostas sérias e não lúdicas aos grandes enigmas da existência pela filosofia, ciência e artes.

Sempre houve quem tivesse intuições de que os seres humanos possuíam razões que a razão desconhecia. E o discernimento da existência de pessoas com talentos consensualmente estabelecidos de apaziguamento e controlo de espíritos à solta. Por conseguinte, ainda que o conhecimento da mente humana tenha recebido incrementos extraordinários, a sua complexidade é de tal ordem que continua a ser o maior mistério a desafiar a nossa inteligência.

Apesar de a ciência ter dado saltos de gigante, continuam a persistir fórmulas decorrentes de uma epistemologia ingénua, mas nem por isso destituída de algum efeito benéfico no apaziguamento, quer dos males do corpo, quer dos males do espírito. O que muitas vezes as pessoas sofrem é de falta de sentido para as suas vidas. E do que precisam é de discursos que se conformem às suas mundividências idiossincráticas.

Ora, sempre houve conflitos de mundividências, entre epistemologias ingénuas e epistemologias esclarecidas e organizadas em universidades, faculdades, institutos e ordens profissionais. Estas organizações são as detentoras legais e legítimas da última palavra, do que é e deve ser, pelo que são detentoras da sapiência com poderes de calar as mundividências ingénuas. Daí a explicação para os discursos inflamados de parte a parte que pretendem transformar a anomia em ação, e as dúvidas em certezas.

Com o advento da farmacopeia em geral e da  psicofarmacologia em particular, deu-se aquilo que em filosofia se designa por uma rotura epistemológica, a passagem do mágico-religioso para o científico-empírico.  A terapia do sofrimento, quer ao nível do sofrimento físico, quer ao nível do sofrimento psíquico, se é que ainda tem sentido fazer esta separação mente/corpo, teve sempre outras figuras tutelares, onde as ordens religiosas pontuavam tanto nos cuidados do corpo como da mente.
A par da farmacologia é verdade que também surgiu a psicoterapia de cunho científico-empírico, se bem que o seu precursor, Freud, tenha sido considerado pouco científico com a sua psicanálise. Mas antes de Freud, muita gente podia desempenhar em algum momento função terapêutica, embora longe do que hoje é tido por psicoterapia. Esta aceção diferenciadora da ancestral função terapêutica, carece, todavia, de um extenso conjunto de reflexões que permitam perceber a pluralidade de propostas terapêuticas hoje disponíveis e abertas aos mais diversos contextos.

Cada vez mais, e um pouco por todo o lado, as pessoas recorrem a terapias, as mais díspares e diversas, para lidar com diferentes formas de dor, sofrimento ou desassossego. As sociedades, com os seus novos hábitos de consumo e de estilos de vida, têm gerado ondas de preocupação não apenas ao nível político, mas também ao nível da saúde pública. Uma das preocupações prende-se com o estatuto científico de algumas terapias e o seu enquadramento paradigmático à luz da doutrina dos dois filósofos da ciência mais influentes no século XX – Karl Popper e Thomas Kuhn.

Ao atual conflito entre o científico e o pseudocientífico, não é alheia a enorme proliferação de corpos profissionais ecléticos, oferecendo terapias com quadros de referência baseados em teorias e hipóteses demasiado heterodoxas para serem aceites pela ciência como sustentáculo legitimador das suas práticas. A ideia, de que o objeto da intervenção terapêutica é o indivíduo em sofrimento, pode ser enganadora. Habitualmente, é o paradigma teórico que define o objeto. Mas, como toda a experiência humana é eivada de subjetividade, o acesso do terapeuta ao sujeito é feito através da sua narrativa. Daí a necessidade de recorrermos a quadros explicativos e compreensivos dentro de um paradigma que, na impossibilidade de ser universal, seja pelo menos consensual ao nível de organizações internacionais, como é o caso da Organização Mundial de Saúde.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Fé e irracionalidade. Conhecimento como crença verdadeira justificada


Se se aceitar o paradigma lockiano da Racionalidade, então os filósofos que atualmente defendem a compatibilidade da crença religiosa com a racionalidade, o paradigma de ciência, tal como é hoje entendido, e com o conceito clássico de conhecimento como crença verdadeira justificada, serão encarados como defensores da irracionalidade em matéria de fé. Porque, entrelaçadas com as diferentes posições sobre a racionalidade da fé, existem diferentes posições sobre a natureza da racionalidade, tal como, na verdade, sobre a natureza da fé.

Se tomarmos por “Realidade” tudo o que existe. E se tudo o que existe inclui não apenas tudo o que é tangível pelos nossos sentidos biológicos, e mais o que faz parte da nossa mente, o mundo das ideias, ainda assim os Dogmas da “Fé”, como entes fictícios, são algo que transcende a Realidade. É a eterna questão insolúvel, que se arrasta pelo menos desde Platão no quadrante ocidental, da representação das imagens no interior da mente. Se formos aristotélicos, e não platónicos, o mundo do imaginário não pode ser reconhecido como fazendo parte da realidade. Como tudo aquilo que um sujeito conhece do mundo externo à sua mente tem de passar por um processo de interpretação de imagens, o conhecimento também é crença, mas tem de ser crença verdadeira justificada. Tem de ser verdadeiro e justificado com argumentos racionais.

Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Esta é, na verdade, uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá a favor da crença religiosa.

Um outro aspeto que importa considerar aqui é a natureza da realidade externa que conhecemos através dos nossos sentidos. Não pode ser a “realidade em si”, mas sim a realidade fenoménica, ou seja, do domínio do fenómeno. Fenómeno significa o que aparece. E o que aparece tem a ver com um outro aspeto da mente que damos pelo nome de consciência. Assim, para o sujeito, o fenómeno é um facto. Facto esse que pode ser comum a muitos sujeitos. Ao passo que cada experiência imaginária, é única. Não pode ser partilhada. Por conseguinte, transcende a realidade.

Hoje, para aqueles que se consideram “antirrealistas”, as crenças religiosas fazem parte de um outro nível de realidade socialmente construída. Para um antirrealista não há nenhuma verdade para além de um consenso socialmente aceite. Um grupo social pode ter um conjunto de verdades religiosas por consenso, e outro pode ter um conjunto diferente. Isto permite que diferentes comunidades e sociedades tenham diferentes noções de realidade. A disputa entre realistas e antirrealistas prende-se com a interpretação que fazem da cognoscibilidade dos factos.

Há uma longa história na discussão sobre a natureza da fé. Fé é uma crença em proposições, com base no que se diz? É uma atitude de lealdade ou de confiança em alguém ou numa ideologia? É uma espécie de “cuidado”? É uma virtude de um certo tipo? Para uns a fé no fundo é fiducia (acredita-se em algo ou alguém); para outros a fé é uma fides (acredita-se que uma proposição é o caso).

Quem defende que a fé tem conteúdo proposicional considera que Deus revela verdades, e que a fé consiste em parte em aceitá-las. Quem defende que a fé não tem conteúdo proposicional considera que a revelação divina consiste simplesmente em Deus manifestar-se, e que as proposições só entram na conversa quando os seres humanos interpretam a manifestação divina de Deus. 

As discussões na tradição filosófica ocidental contrapõem a fé à razão, na confluência entre a Bíblia, por um lado, e os textos da filosofia grega clássica, por outro. Tanto Platão como Aristóteles sustentavam que a vida humana ideal era a vida dedicada à teorização. Apesar de os seus entendimentos da teorização serem diferentes em vários aspetos, ambos a encaravam como a aquisição de conhecimento e estar ciente ou ter entendimento.

Para Platão, a aquisição de episteme exige o afastamento da opinião ou crença (doxa). Quase toda a gente na tradição cristã da antiguidade tardia e na idade média concordava com os gregos clássicos que o entendimento racional é um ideal humano. Contudo, ninguém considerava que a fé fosse episteme (grego) = scientia (latim). Para os cristãos da Antiguidade tardia a fé era uma atividade, não de razão, mas de amor. Não amor à sabedoria, mas amor a Deus.

Wittgenstein postulou que a racionalidade da fé é irrelevante quanto à sua aceitabilidade, na medida que para aquilo que a linguagem não tem palavras temos de calar. Essa posição tem tradicionalmente sido denominada “fideísmo”. Que a fé não precisa do apoio da razão e não deve procurá-lo. Um fideísta, pois, sustentará que a fé não precisa, ou não manifesta, uma forma de racionalidade, e irá proclamar isto mesmo em sua defesa. Mais habitualmente, o fideísta irá sustentar que a fé não obedece a critérios de prova, mas poderá ir mais longe e sustentar que as suas proclamações são paradoxais. Tanto na forma moderada como na radical, o fideísmo irá envolver o rebaixamento da razão como fonte de verdade espiritual e irá encontrar bases na natureza da fé para defender que ser sustentado pela razão é um defeito e não uma vantagem.

No início da era moderna surgiu o ceticismo fideísta, ou fideísmo cético. O fideísmo cético assume duas formas: O de Michel de Montaigne e Pierre Bayle, que procuraram apresentar a fé como uma aceitação não-dogmática de convenções e práticas tradicionais; e o de Blaise Pascal e Kierkegaard que reconheciam que o convencionalismo dos primeiros estava profundamente em conflito com os compromissos da verdadeira fé. O cético é um aliado involuntário que desmascara as pretensões da razão, de modo que a fé pode então entrar e preencher o vazio espiritual que o cético ajudou a criar.

A fé não é apenas uma questão de aceitar doutrinas, mas um estado de confiança e compromisso que tem por objecto o próprio Deus, e não uma série de proposições acerca dele. A razão exige uma objetividade e um distanciamento que é apropriado na ciência, mas é uma fuga do envolvimento apaixonado que é preciso para conseguir a salvação.

Pascal é um fideísta moderado, a fé e o raciocínio filosófico são incompatíveis com respeito aos seus motivos, e que as verdades da fé estão para lá do poder da razão. Um fideísta radical diz-nos que a fé é inequivocamente contrária à razão. É difícil ao filósofo responder ao fideísmo radical, dado que o fideísta radical parece rejeitar todas as regras a que um filósofo pode apelar. O fideísta parece superficialmente ter escolhido aceitar as afirmações de uma autoridade e ter posto de lado os protestos da outra. Viver conscientemente a inconsistência é um problema. Se eu pensar que algo do que acredito é verdadeiramente paradoxal, então, passei também a acreditar na sua falsidade. Terei então um conflito de crenças. Há um conflito interno que está condenado a persistir enquanto persistir a consciência do juízo negativo da razão. Que o conflito não seja agonizante em algumas pessoas (que a paixão seja feliz) só mostra que o autoengano pode ser bem-sucedido. Apesar de toda a sua insistência na pureza espiritual da fé, o fideísmo radical é uma forma de falsa consciência.

Pascal diz-nos que a fé é Deus conhecido pelo coração e não pela razão; e que o coração tem razões que a razão desconhece; e no “argumento da aposta”, Pascal adotando uma postura prudencial, como uma maneira de minimizar os riscos que se corre face à eternidade, exorta um leitor sério, mas descrente, a reconhecer as vantagens da fé em comparação com a descrença. Pascal exorta o seu descrente a adotar várias estratégias para induzir a crença em si próprio, apesar da ausência de bases convincentes.

São argumentos importantes, que tanto Pascal como Kierkegaard usam, de que muitas crenças de senso comum partilham com a fé a característica de estarem para lá da justificação racional. Se isto for verdadeiro, a situação da fé não é pior que a de muitas formas seculares de prova, e deve-se reconhecer que também envolvem fé. Kierkegaard fala de fé secular, tal como de fé religiosa. Apesar da solidez do argumento, enquanto manobra apologética, pode ser apartado das suas conexões fideístas, e tem-no sido. A analogia entre as crenças religiosas e as que dependem da perceção ou da memória ou da indução, é o que alimenta o movimento da pós-verdade da pós-modernidade.

As discussões da fé e da razão centram-se habitualmente em determinar em que medida a fé se conforma ou deve conformar-se com padrões de racionalidade cognitiva. Mas a tradição fideísta tem também algo a dizer sobre até que ponto a vida de fé se conforma com padrões de racionalidade prática.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Ciência e religião – duas forças culturais antagónicas a moldar humanidades


O que há de especial entre a crença na ciência e a crença religiosa? como tem de ser uma crença para ser religiosa? Por questões de método de exposição considero as cinco maiores religiões do mundo por ordem de antiguidade: Hinduísmo, Judaísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo; e as ciências modernas empíricas que se desenvolveram no ocidente a partir do século XVI sob o lema do conhecimento como crença verdadeira justificada. Sendo o conflito, o ponto central desta abordagem ao tema, seria útil caracterizar a natureza da religião e a natureza da ciência. Sucede que não é fácil caracterizá-las, quando se verifica que nem toda a crença em Deus, é religiosa. E nem todas as religiões envolvem a crença em Deus. Os filósofos medievais fartaram-se de propor teorias sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte crucial de um sistema metafísico-teológico e não religioso. A propriedade religiosa da crença é adquirida apenas quando condiciona o modo de vida da pessoa ou da comunidade onde ela exerce a sua força. Assim, a crença está apropriadamente conectada a atitudes caracteristicamente religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração, amor, compromisso, maravilhamento e afins.

O termo ciência abarca um leque muitíssimo variado de atividades humanas que para se considerarem ciências têm de obedecer a um grupo de critérios para serem aceites como tal por sociedades que se identificam com um determinado paradigma cultural e civilizacional marcado pelo tempo histórico. É o paradigma da objetividade, da evidência empírica e do método experimental. Ora, ainda hoje, por exemplo, no quadrante do hemisfério que é designado por ocidental, há quem considere que tanto a teoria do Big Bang como a teoria evolucionista de Darwin não são ciência porque não há nada de objetivo nem de experimental que lhes dê sustentação. Já para não falar das limitações na aplicação da ciência a questões humanas centrais como é o caso dos juízos morais, ou dos juízos de valor mais em geral. Assim, talvez se devesse entender o conceito de ciência que desse cobertura de uma forma mais abrangente às várias atividades sem as quais uma determinada civilização não funcionaria. Para todos os efeitos práticos da Grécia Antiga, Aristóteles era um homem de ciência, que abarcava no seu entendimento atividades que se relacionavam entre si por semelhança e analogia, porque não havia uma atividade única que fosse apenas ciência em si. No entanto não deixava de ser uma atividade sistemática e disciplinada, teórica e empírica, que visava descobrir a verdade sobre o mundo.

Há várias questões históricas e epistemológicas que se colocam ao investigador desta temática. Em termos históricos podemos referir a surpreendente relutância do Médio Oriente islâmico em aceitar a ciência europeia transmitida por Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc., que não deixavam de ser seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton, não fossem cristologicamente ortodoxos. Há uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um salto no escuro. O que sucede é que a ciência já havia sido transmitida na Idade Média aos europeus pelos muçulmanos. A civilização islâmica medieval era não apenas herdeira dos conhecimentos do antigo Egito e Babilónia, mas também o foram da Grécia Antiga e da Pérsia, na medida em que traduziram e preservaram dos textos mais importantes, que de outro modo se teriam perdido para sempre.

Nos finais da Idade Média e transição para o período da Renascença, muitos jovens europeus viajaram até Espanha e Sicília (leia-se o romance de Margueritte Yourcenar – A obra ao negro), para frequentar os centros de ensino muçulmanos, os mais prestigiados à época. A partir daqui traduziram para latim textos do árabe originais e outros que já eram adaptações dos antigos textos gregos. Assim, aqueles cientistas europeus sentiam a enorme dívida que tinham para com esses transmissores de conhecimento. No entanto, inexplicavelmente, ou a não haver outra explicação que não a religiosa, de uma forma súbita os muçulmanos operaram uma mudança radical, uma reviravolta de 180º no seu paradigma civilizacional. No mundo islâmico, a liberdade foi praticamente eliminada, e a ciência foi substituída por um corpo dogmático de conhecimentos. Uma inversão total com o mundo cristão, que doravante e até aos dias de hoje abraçou a ciência de uma forma tal que as suas repercussões para o futuro deste Universo ainda estão por adivinhar. Nem no mundo da civilização chinesa, mais a Oriente, se verificou tal fenómeno. A maior parte dos países asiáticos incorporaram e absorveram o impacto da civilização ocidental por via da ciência. Hoje, ao invés do Médio Oriente, no universo chinês e japonês apenas há uma ciência. A ciência que era ocidental, por via da globalização deixou de o ser, para ser global.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Uma via insustentável


          A recente catástrofe climática em Moçambique avisa-nos mais uma vez que temos de nos mexer e mudar esta via insustentável para uma mais sustentável. Caso contrário, algo desagradável irá acontecer. Até agora ainda tem sido possível aos países mais desenvolvidos manter em grande parte as suas amenidades, mas de futuro tal deixará de ser assegurado se não se arrepiar caminho. É duvidoso que o mundo desenvolvido possa manter o seu estilo de vida isolado, não apenas porque o clima não obedece a fronteiras, mas também porque as suas fronteiras rapidamente se desmoronam sob vagas maciças de imigrantes desesperados com fome, fugindo às catástrofes naturais e às guerras nos seus países de origem. Por outro lado, não se vislumbra que a curto prazo a deterioração ambiental, provocada pela poluição industrial e tráfego rodoviário, sobretudo nas megametrópoles, seja revertida.
          Pode haver dois tipos de escolha para o sucesso ou o fracasso:
          Planeamento a longo prazo e vontade de reconsiderar antigos valores. Do mesmo modo, também podemos reconhecer o papel crucial dessas mesmas duas escolhas para o resultado de nossas vidas individuais. Uma dessas escolhas depende da coragem de praticar raciocínio de longo prazo, e tomar decisões antecipadas firmes, corajosas, em um tempo em que os problemas se tornam percetíveis, mas antes de assumirem proporções críticas. Este tipo de tomada de decisão é o oposto da tomada de decisão reativa de curto prazo que muito frequentemente caracteriza os nossos políticos eleitos, concentrando-se apenas em assuntos que possam vir a irromper em crise nos próximos 90 dias. A outra escolha crucial iluminada pelo passado envolve a coragem de tomar decisões dolorosas em relação a valores. Que valores que outrora serviram bem à nossa sociedade podem continuar a ser mantidos sob as novas alteradas circunstâncias? Quais desses valores devem ser alijados e substituídos por abordagens diferentes? Eis a questão!
          Os habitantes dos países mais desenvolvidos vivem numa certa ambivalência em relação aos imigrantes que chegam em busca de um melhor nível de vida. Por um lado, a economia está completamente dependente da mão de obra desses povos, quer na agricultura, quer na construção civil, quer nos serviços domésticos. Mas por outro lado os autóctones queixam-se de que os imigrantes competem com os desempregados locais, fazem baixar os salários e sobrecarregam os sistemas de saúde.
          Os otimistas dizem: "A tecnologia resolverá os nossos problemas." Esta é uma expressão de fé no futuro, portanto baseada no suposto antecedente de ter a tecnologia resolvido mais problemas do que aqueles que criou em passado recente. Está implícita a premissa de que de amanhã em diante, a tecnologia funcionará basicamente para resolver os problemas existentes, e deixará de criar novos. A experiência que se tem de tudo isto é que é o contrário. Algumas tecnologias são bem-sucedidas, outras não. As que são bem-sucedidas geralmente demoraram algumas décadas para se desenvolverem e se espalharem. E mesmo estas, sejam ou não bem-sucedidas na solução dos problemas para os quais foram projetadas, geralmente criam novos e inesperados problemas. As soluções tecnológicas para os problemas ambientais geralmente são bem mais dispendiosas do que as medidas preventivas para evitar a criação de problemas. Acima de tudo, os avanços tecnológicos apenas aumentam a nossa habilidade de fazer coisas, seja para o bem ou para o mal. Todos os nossos problemas atuais são consequências negativas não intencionais de nossa tecnologia existente. Os rápidos avanços tecnológicos durante o século XX criaram problemas novos e difíceis mais rapidamente do que resolvido os antigos.
          Durante os primeiros anos após a entrada em cena dos automóveis, até parecia que as cidades se tornavam mais limpas à medida que os cavalos iam desaparecendo. Ainda hoje se notam vestígios desses tempos quando visitamos o núcleo histórico da cidade de Viena, o cheiro a esterco e urina de cavalo mais a sonoridade dos seus cascos. Embora ninguém esteja advogando a volta ao cavalo como solução para o smog das emissões dos motores a explosão, o exemplo serve para ilustrar o lado negativo não previsto de tecnologias que alguns teimam em preservar.
          Outro exemplo de fé na mudança e substituição é a esperança de que fontes de energia renováveis, como a energia eólica e solar, possam resolver a crise de energia. Tais tecnologias existem, contudo, a energia eólica e solar têm aplicabilidade limitada porque só podem ser usadas em locais com luz e vento constantes. Além disso, a recente história da tecnologia demonstra que o tempo de conversão para a adoção de grandes mudanças pode ser medido em décadas, porque muitas instituições e tecnologias secundárias associadas com a antiga tecnologia têm de ser mudadas. É de facto visível que fontes de energia além dos combustíveis fósseis farão contribuições crescentes para o nosso transporte motorizado e geração de energia. Mas esta é uma solução a longo prazo. Não faz sentido nos contentarmos com o nosso presente conforto quando é evidente que estamos num curso não sustentável.
          O problema além de demográfico é também de desenvolvimento se ele for virtuoso para os países dantes ditos do terceiro mundo. Se estes países alcançarem os padrões de vida do primeiro mundo, o que é legítimo, então a situação se tornará ainda mais insustentável. Até agora, as preocupações ambientais são luxos que só podem ser pagos pelos países ricos, que não têm o direito de dizer aos cidadãos dos países pobres o que devem fazer. Estes povos saberem muito bem como estão sendo prejudicados pelo crescimento populacional, desflorestação, sobrepesca e outros problemas. Eles sabem disso porque pagam a conta imediata, em forma de perda de madeira gratuita com a qual construir casas, grave erosão do solo e a queixa trágica da sua incapacidade de comprar roupas, livros e pagar a escola para os seus filhos. A floresta atrás de sua aldeia está sendo derrubada ou porque um governo corrupto ordenou que fosse derrubada apesar do seu protesto, frequentemente violento, ou porque tiveram de assinar um arrendamento com grande relutância por não ter visto outro meio de conseguir dinheiro necessário para sustentar os seus filhos no ano seguinte.
          Porque será que os níveis desses produtos químicos tóxicos, de nações industriais remotas das Américas e da Europa, podem ser mais elevados nos inuits do que em americanos e europeus urbanos? É porque a base da dieta inuit são as baleias, focas e aves marinhas que comem peixes, moluscos, camarões, e esses produtos químicos se concentram em cada passo desta cadeia alimentar. Todos nós no Primeiro Mundo que ocasionalmente consumimos frutos do mar também estamos ingerindo esses produtos químicos, mas em quantidades menores.
          Quando as pessoas estão desesperadas, subnutridas e sem esperança, culpam os seus governos, que veem como responsáveis ou incapazes de resolver os seus problemas. Depois, ou se matam uns aos outros em guerras civis, ou tentam emigrar a qualquer custo. Dão-se conta de que nada têm a perder, e tornam-se terroristas, ou apoiam e toleram o terrorismo. Alta percentagem da população no fim da adolescência e início da idade adulta transformam-se em hordas de homens jovens desempregados, maduros para serem recrutados em milícias.
          Portanto, globalização quer dizer mais que comunicações mundiais aperfeiçoadas, que podem levar diversas coisas em diversas direções. A globalização não se restringe apenas a coisas boas. Para se entender a escala mundial dos problemas, considere-se o lixo recolhido nas praias dos pequenos atóis no sudeste do Oceano Pacífico: atóis desabitados, sem água potável, raramente visitados até mesmo por iates, e entre os pedaços de terra mais remotos do mundo, cada um deles a centenas de quilómetros até mesmo da remota e desabitada ilha Henderson. Ali, as pesquisas detetaram em média um pedaço de lixo para cada metro linear de praia, que deve ter vindo de navios ou de países asiáticos ou americanos na costa do Pacífico, a milhares de quilómetros de distância. Os itens mais comuns são sacos plásticos, boias, garrafas de vidro e de plástico, cordas, sapatos e lâmpadas, junto com coisas estranhas como bolas de futebol. Outro exemplo sinistro são os mais altos níveis de contaminação por produtos químicos tóxicos e pesticidas registados entre os inuits (esquimós) da Gronelândia Oriental e da Sibéria, que também estão entre os lugares mais afastados das fábricas de produtos químicos de uso intensivo. Os níveis de mercúrio que têm no sangue, porém, atingem as faixas associadas à intoxicação aguda, enquanto os níveis tóxicos de bifenóis policlorados PCBs no leite das mães inuits são altos o bastante para classificar seu leite como alimento tóxico. Os efeitos nos bebés incluem perda de audição, desenvolvimento mental alterado e função imunológica deprimida, daí as altas taxas de infeções respiratórias e do ouvido.

sexta-feira, 29 de março de 2019

O problema da fé religiosa


O problema da fé religiosa é que a fé se baseia no dogma. E como os dogmas são tenazmente considerados invioláveis, irrefutáveis e não suscetíveis de revisão, levam a que quem está por ela possuída de uma forma fanática, ou como se costuma dizer “fundamentalista”, está disposta a morrer. A fé é aquilo por que morre, mas o dogma é aquilo por que pode inclusivamente matar se for induzida a fazê-lo.

O problema da crença religiosa é que quer no passado como no presente trouxe sempre a todo o lado a guerra, intolerância e perseguição, distorcendo a natureza humana para formas repudiantes. Isto, independentemente do que possa contribuir para o reconforto dos temerosos, quando tomados pelo fanatismo a uma qualquer falsidade, é abraçada até à morte.

Como toda a gente sabe, a fé religiosa é a negação da razão, inclusivamente contra todas as evidências em sentido contrário. Ainda que o conhecimento seja definido como crença, sem a qual não seria possível ter conhecimento, não é suficiente sem que esse estado mental esteja ligado aos factos, simultaneamente verdadeiros e justificados. O conhecimento implica verificação, e depende da existência do tipo certo de relação entre a mente e o mundo. A crença religiosa existe apenas na mente, não se baseando em nada do que existe no mundo.

O ser humano é um ser espiritual, e a espiritualidade é importante, tudo bem. Mas por serem criaturas espirituais não ficaram impedidas de ter ideias e de imaginar e inventar coisas. E Deus, ainda que seja um conceito com muita força, não passa de uma invenção que ao longo da história, desde que foi inventado, se revestiu sempre de muita manigância.

Cada uma das numerosas religiões no mundo conhece a sua própria versão de uma história em que uma ou outra força sobrenatural age sobre o caos para trazer ao mundo a criação e a existência do universo. Para a maioria das religiões, a história da criação é um facto de fé, uma verdade absoluta.

O que é espantoso, e de certa forma misterioso, é ainda alguns cientistas de renome internacional, poucos, conseguirem conviver dentro de si com as contradições entre uma fé religiosa e os seus conhecimentos científicos. À medida que o conhecimento científico progrediu na melhor explicação da origem do universo, permitiu às pessoas em geral não necessitarem de invocar forças sobrenaturais para explicar o mundo. A ciência tem uma grande vantagem, uma vez que trabalha com hipóteses cuidadosas e abrangentes, estando sempre pronta a revelá-las e a revê-las sempre que surgem novos dados sempre dentro de factos e evidências não especulativas, uma vez que é assumida com humildade as nossas limitações no conhecimento de um universo tão complexo e enigmático. Mas a nossa ignorância em relação a uma coisa tão vasta e poderosa não tem necessariamente que nos levar para derivas tão contraditórias com o melhor que a ciência nos pode oferecer, e aceitar a oferta das certezas eternas das religiões que se baseiam apenas em superstições antigas.

quinta-feira, 28 de março de 2019

A ordem ocidental e o colapso do planeta



          A bem dizer, apesar de estar por um fio, ainda vigoram no mundo os princípios básicos do Tratado de Vestefália, 1648, resumidos nos princípios de soberania e de igualdade.
          Tudo começou com os Portugueses quando se lançaram ao mar no século XV, dispostos a fazer o reconhecimento do globo e aperfeiçoar, explorar e “civilizar” as terras às quais chegariam, sobre os povos encontrados. Secundados depois sobretudo por Espanhóis, Ingleses e Holandeses, os europeus imprimiram suas visões sobre religião, ciência, comércio, governo e diplomacia, modeladas pela experiência histórica ocidental, a qual consideravam o ápice da realização humana. Passou então a ser considerada a Era Moderna, com um Ocidente confiante, se bem que truculento e territorialmente dividido.
          Os “Ocidentais” acabaram por revelar as características habituais do colonialismo, uma notável arrogância, deixando transparecer a convicção de que detinham o direito de moldar uma ordem mundial de acordo com suas máximas. Relatos a respeito da China e da Índia adotavam um tom condescendente, definindo a missão europeia como sendo a de educar as culturas tradicionais de modo a elevá-las a níveis mais altos de civilização. Com um número relativamente pequeno de funcionários, administradores europeus redesenharam as fronteiras de nações antigas, ignorando o facto de que esta atitude poderia não ser bem-vinda ou ser considerada anormal e ilegítima. É verdade que os seus melhores elementos tentaram promover uma espécie de método intelectual que encorajasse o ceticismo e um conjunto de práticas que conduziram à ciência que hoje é reconhecida por todos como um “bem universal”, em última instância também contaminou a política ao ponto de serem aceites pela maioria dos países os dois conceitos políticos fundamentais: democracia e direitos humanos.
          Recuando na história, não se pode esconder a prática sórdida da escravidão. E o Ocidente, mais uma vez, produziu o que nenhuma outra civilização escravocrata fizera antes: um movimento abolicionista global baseado na convicção de uma humanidade comum e da dignidade inerente ao indivíduo. Rejeitando sua adesão anterior a esse comércio desprezível, a Grã-Bretanha assumiu a liderança na aplicação de uma nova norma relativa à dignidade humana, abolindo a escravidão do seu império e proibindo a circulação de navios negreiros em alto-mar. A combinação singular de uma conduta autoritária, arrojo tecnológico, humanitarismo idealista e um fermento intelectual revolucionário provou ser um dos fatores que ajudaram a dar forma ao mundo moderno. Mas tudo isso, ainda assim não evitou as brutais depredações das potências expansionistas através das grandes empresas.
          E aqui chegamos agora ao grave problema do Ambiente. Todas as sociedades modernas dependem da extração de recursos naturais. Até aqui, apesar de alguma parte da energia de que necessitamos ter origem em recursos renováveis, como as barragens hidroelétricas e as torres eólicas, a maior parte tem sido extraída de fontes não renováveis e poluentes: petróleo, gás e carvão. Mas um outro setor que muitas vezes esquecemos, que é o setor dos nossos instrumentos e máquinas, é o dos metais. Para além da madeira e dos plásticos derivados do petróleo e outros produtos sintéticos, que dependem da exploração mineira.
Depois das grandes controvérsias abertas entre os ambientalistas e as empresas industriais que se arrastaram no quase último meio século, com acusações mútuas muitas vezes verdadeiras de ambos os lados, hoje já não há nenhuma controvérsia quanto ao contributo humano para as catástrofes ambientais que acontecem um pouco por todo o planeta cuja intensidade tem aumentado de ano para ano.
          No passado, houve sociedades e civilizações que colapsaram e desapareceram por sua própria culpa. Que lições podemos extrair daí? E o que ainda podemos fazer para não destruirmos mais os habitats naturais? Por exemplo, a destruição das florestas representa uma perda efetiva para nós, porque para além da madeira e outras matérias primas, é imprescindível ao ecossistema, como a proteção das bacias hidrográficas, a proteção do solo contra a erosão, habitat para a maior parte das espécies animais e vegetais terrestres, e essencial ao ciclo da água que gera uma grande parte da precipitação. As alterações na estrutura das florestas têm-se traduzido nas alterações nos regimes de fogos que colocam as florestas e matas sob um risco acrescido de incêndios cada vez mais anómalos e catastróficos.
          Mas se os exemplos do passado se limitaram a problemas nos ecossistemas terrestres, como foi o caso da Ilha de Páscoa ou da Gronelândia na Idade Média, hoje temos também problemas nos ecossistemas marítimos e oceânicos. Cerca de um terço dos recifes de coral – o equivalente no oceano às florestas tropicais húmidas, porque são habitats de uma percentagem desproporcionada de espécies marinhas – foram já gravemente danificadas. E isto deve-se não apenas aos agressivos métodos de pesca, mas sobretudo ao efeito do escoamento de sedimentos de terras adjacentes desflorestadas e convertidas em terras agrícolas, e poluentes industriais. A esta pressão acresce também o aumento da temperatura dos oceanos, que contribui para o incremento do branqueamento dos corais.

terça-feira, 26 de março de 2019

Anamorfose na pintura: Os Embaixadores, de Hans Holbein, o Jovem


Este quadro, de 1533, ano do nascimento de Isabel I de Inglaterra, incorpora com uma caveira, o exemplo típico de anamorfose na pintura. 

A Anamorfose é um efeito de perspetiva que força o observador a se colocar sob um determinado ponto de vista, o único a partir do qual o elemento recupera uma forma proporcionada e clara, que neste caso se trata da caveira colocada no centro da composição. Uma vanitas ou memento mori, opondo vida e morte num rito de passagem, não está claro por que Holbein lhe deu tal proeminência nesta pintura. A Anamorfose esteve em voga sobretudo na pintura mural dos séculos XVI e XVII para criar ilusões de óptica na pintura sobre superfícies curvas, como as abóbadas das igrejas, por exemplo, onde a deformação de perspectiva permite a visão correta somente a partir de um único ponto de vista: se o observador se colocar em qualquer outra posição, a imagem fica deformada e incompreensível.

Entre as pistas para a exploração das associações entre as duas figuras estão uma seleção de instrumentos científicos incluindo dois globos, um quadrante, um torquetum e dois relógios de sol (um horizontal e outro vertical), bem como vários tipos de têxteis, incluindo o mosaico do chão, com base no pavimento da Abadia de Westminster, e o tapete oriental na prateleira superior, um exemplo dos tapetes orientais frequentes na pintura renascentista. A escolha das duas figuras pode, além disso, ser vista como simbólica. A figura da esquerda está em trajes seculares, enquanto a figura da direita está vestida com roupas clericais. E a mesa exibindo livros abertos de cariz religioso, simboliza a unificação do poder secular com o poder espiritual.

Holbein nasceu na Alemanha, mas passou a maior parte da sua vida em Inglaterra. No entanto, Holbein mostra nesta obra a influência da pintura flamenga. Essa influência na pintura a óleo de Holbein veem-se nos detalhes meticulosos dos objetos do conhecimento científico misturados simbolicamente com os livros reservados ao espaço do sagrado.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Por Londres: Turner como metáfora do espaço infinito


Turner nasceu em Londres em 23 de abril de 1775, vindo a falecer a 19 de dezembro de 1851 em Chelsea. As suas obras mais importantes estão na National Gallery e na Tate Gallery, ambas em Londres. Está sepultado na Catedral de São Paulo, na capital inglesa.

A pintura de Turner serve e modelo, por sinal bastante interessante, de como a gramática da representação do espaço pode compor uma textura de uma estrutura narrativa. Apesar de a pintura, ainda no tempo de Turner ser a representação de corpos finitos, normalmente manifestados através de contornos, Turner ousou subverter o espírito da época para dar forma ao infinito. Neste aspeto Turner é um génio, com uma intuição audaciosa que acompanha outra intuição noutro campo do saber: a matemática.

Até 1800, os matemáticos mantinham uma oposição absoluta entre as ideias: ‘infinito’ versus ‘indefinido’; ‘linear’ versus ‘não linear’. Assim se introduziram os números chamados ‘indefinidos’, números que submetidos a certas operações, fazem que estas se prolonguem até ao infinito. E Turner apresenta também novas categorias: luminoso versus opaco; ortogonal versus circular; policromático versus monocromático; e contornado versus expandido.

Hegel, na Estética, diz que “o infinito pertence ao divino e o humano só pode chegar até ele através do indefinido”. É necessário estabelecer equivalências entre “infinito” e “indefinido”, de maneira que a representação do segundo tenha como significado o primeiro. O indefinido ao nível da expressão será portador do infinito ao nível do conteúdo. Foi isso que Turner pretendeu fazer na pintura: uma nova palavra pictórica.


“Sombras e Trevas (a noite do Dilúvio, 1843)” encontra-se no National Gallery of Art, Washington. E “Luz e Cor, 1843 (o dia seguinte ao Dilúvio), a teoria de Goethe) encontra-se na Tate Gallery de Londres. A referência a Goethe explicitada no título do quadro “Luz e cor”, revela que Turner conhecia bastante bem a obra do poeta alemão. No exemplar do livro de Goethe “Teoria das Cores”, 1810, que possuía, foi densamente anotado por ele.

Turner foi um génio incompreendido no seu tempo, mas considerado o antecipador da arte abstrata contemporânea. Os primeiros a darem-lhe valor foram os impressionistas. Com a sua intuição de ter chegado o momento da destruição de todas as leis da proporção e perspetiva até aí vigentes, levou a cabo uma caminhada de libertação espacial isenta da forma figurativa.

Turner elimina a narrativa a favor do abstrato, chamando-lhe “o sublime sem mediação”. Extraordinário exímio na manipulação do espaço e, sobretudo, das ideias de espacialidade, realizou uma reformulação da semiótica do mundo natural, como ponto máximo da sua autoconsciência.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Ter petróleo ou não ter, eis a questão


Os portugueses, por experiência própria, sabem que o 'rating' de um país é muito mais importante para o seu bem-estar económico do que as suas jazidas de petróleo. O rating indica a probabilidade de um país pagar as suas dívidas. 


Além de dados puramente económicos, estes tomam em consideração fatores políticos, sociais e culturais. A Venezuela é um país rico em petróleo, mas está amaldiçoado pelo seu governo de Maduro, e por um sistema político que deixa muito a desejar quanto a corrupção. 

Como tal, lamentavelmente os venezuelanos estão condenados à pobreza, uma vez que não conseguem angariar a confiança necessária para aproveitar ao máximo o seu petróleo enquanto é tempo. Daqui a alguns anos, pelo caminho que o aquecimento global está a tomar, o petróleo vai deixar de ter qualquer valor comercial.  

Assim, um país pode não ter jazidas de petróleo, mas se viver em paz consigo e com os outros, desfrutar de um governo livre e democrático de um estado de direito com um sistema judicial justo, tem mais hipóteses de obter crédito a juros baixos. 

Apesar de não devermos ser ingénuos em relação à doutrina do mercado livre, a verdade é que é esta crença que domina o atual sistema capitalista, que é global. E por mais que apregoem que o poder político não se deve meter na economia, um mercado, livre de toda a influência política, é algo que simplesmente não existe. 

O recurso económico mais importante é a confiança no futuro. Mas é também o recurso mais sujeito a ameaças, vindas de dentro ou de fora do país. 


segunda-feira, 18 de março de 2019

Europa: que futuro..?



Parece uma obviedade afirmar, no atual contexto de uma ordem mundial globalizada, que as sociedades europeias têm muito mais chances de se viabilizarem, com mais ou menos sucesso, unidas numa União Europeia, do que fragmentadas nos seus nacionalismos cada um por si. Daí a quantidade de pessoas apreensivas com o Brexit.

Contudo, afirmar a inevitabilidade de a sociedade europeia estar destinada a se unir para sobreviver não significa dizer que o resultado final tinha de ser este, a União Europeia que temos atualmente. Podemos naturalmente imaginar que podia ser diferente. Porque está a língua inglesa tão difundida hoje em dia? Não podemos efetuar experiências contra-factuais. Se quisermos saber como foi o passado, só temos um caminho. Mas se quisermos saber como será o futuro, temos uma miríade de caminhos. Às vezes a História segue por atalhos inesperados.

Podemos descrever como é que se chegou a este Brexit. Mas não se consegue explicar porque foi que este Brexit específico se concretizou.

Há uma diferença entre explicar como e explicar porquê. Pode-se reconstruir a série de acontecimentos que conduziu a este ponto. Mas para explicar porquê é preciso descobrir uma quantidade imensa de razões indeterminadas. Hoje a maioria dos historiadores não acredita nas teorias deterministas. Quanto mais informação se tenha, quanto mais se conheça, mais difícil se torna explicar porque aconteceu de uma forma e não de outra.

Em retrospetiva é sempre fácil dar uma explicação ad hoc. Em História as coisas passam-se assim: as pessoas que vivem os acontecimentos são aquelas que menos percebem o que se passa, porque o futuro é insondável. Ao passo que um acontecimento analisado em retrospetiva é mais fácil de entender, é quase sempre óbvio. Mas esteve longe de ser óbvio para as pessoas que o vivenciaram.

Não sabemos ainda o desfecho que vai ter a atual desregulação do clima e da ecologia. Existem bons argumentos para que seja uma catástrofe, um desastre ecológico. Mas não há certezas. E, todavia, dentro de algumas décadas, as pessoas vão olhar para trás e não entender como gerações passadas foram tão imprudentes, acreditando num certo tipo de paraíso tecnológico, quando era evidente o que está à vista de todos.