sábado, 15 de maio de 2021

Negr@s, pret@s ? Como devemos chamar?





Um jornalista da Lusa, ao divulgar para a imprensa a lista dos nomes dos deputados da Comissão de Revisão Constitucional, empossada por Ferro Rodrigues, cometeu a gafe de escrever o nome de uma deputada assim - "Romualda Fernandes (preta)". Parece ter sido um lembrete pessoal, mas que sem querer não o apagou e publicou mesmo assim. Ora, apesar de ter sido posteriormente corrigido, já não havia nada a fazer. Não foi a tempo de evitar que a gafe se tornasse num problema público. As palavras têm consequências, não são neutras, e refletem a sociedade em que são ditas. O erro foi corrigido; a agência noticiosa pediu desculpa; o jornalista penalizou-se e pediu desculpa. Mas o problema é outro: ainda há um lastro, no inconsciente coletivo português, de racismo que urge reparar.

Tendo em conta que em Portugal, o machismo e o sexismo impactam a vida de todas as mulheres, esse impacto aumenta quando a condição de ‘ser mulher’ é acrescida de outras condições como de classe, raça, geração, orientação sexual e identidade de género. É uma situação de maior vulnerabilidade destas pessoas a inúmeras violações de direitos que as deviam proteger. Tais violações são potencializadas pela permanência de um racismo estrutural, que vem de longe, e acantona a pessoa negra na sociedade.

A comunidade negra dos EUA acusou Barack Obama de não ser "suficientemente negro". Uma funcionária de uma junta de freguesia de Lisboa acusou o presidente de racismo por ele lhe ter chamado preta. Spike Lee zangou-se com Tarantino por causa da palavra preto. Negro e preto têm o mesmo poder discriminatório? Ou um dos termos é mais "aceitável" do que o outro?

Mia Couto, um escritor moçambicano muito conhecido e que dispensa apresentações, defende que o problema não está nas palavras. Num texto já com alguns anos, que escreveu para a abertura do ano letivo 2007/2008 no Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique, defendeu que a ideia de mudar a realidade através da alteração de palavras é falsa, designando-a como um dos "sete sapatos sujos" que devem ser abandonados "na soleira da porta dos tempos novos". E contou um episódio:
"Uma vez, em Nova Iorque, um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte, recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente incorretos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc... Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer 'negro' ou 'preto'. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé."
Enquanto estivermos agarrados ao "problema terminológico", o incómodo subsistirá. Talvez fosse melhor recusar o uso de categorias raciais para "descrever as pessoas". Seja como for, nos casos em que surgem situações com origem em questões raciais, devíamos procurar usar termos "menos estigmatizantes", como acontece noutros casos, como, por exemplo, em relação ao tamanho das pessoas: quando elas são pequenas ou de baixa estatura; ou quando são obesas.

Existem algumas realidades e particularidades em certos países que não são linearmente transponíveis para outros. Importar sem critério coisas que se adotam, por exemplo, na América, podem dar mau resultado em Portugal. Há avaliações que são específicas de uma sociedade e não de outras. Por isso muitas vezes utilizam-se palavras, apenas com a boa intenção de não provocar desconforto. Mas isso pode ser enganador. Se, por um lado, as palavras não são neutras, por outro lado, os eufemismos têm curta duração. O que está em causa é a interpretação social dada às palavras num determinado contexto social e histórico. É preciso que não se corra o risco de entrarmos em extremismos. Ora, pensando que a liberdade de expressão não tem limites, mesmo que possa ofender alguém; ou começarmos a meter os pés pelas mãos com medo de não podermos dizer nada. 

No caso que nos trouxe aqui, o jornalista colocou uma nota pessoal no nome da deputada Romualda Fernandes para melhor a identificar. Tudo o que aconteceu depois, para além de um lapso desastroso e lamentável, denunciou um padrão de estereótipo. O jornalista teve necessidade de materializar, eventualmente de forma inconsciente, aquilo que na realidade ainda está impregnado na nossa sociedade, que consiste na identificação de um corpo que parece estar fora do seu lugar. Ou seja, como é uma exceção no Parlamento, houve ainda necessidade de a sinalizar, e para isso o jornalista usou, inocentemente presumo, a palavra dos nossos usos e costumes.

A questão do racismo está longe de ser apaziguada nos tempos mais próximos. É bom recordar que a palavra “preto” tem sido utilizada por integrantes das comunidades “afro”, sobretudo pelos mais jovens, para se referirem a si próprios como forma de reivindicar uma identidade. Mas, quando utilizada por pessoas de outros quadrantes identitários, a carga simbólica é interpretada como ofensiva. Lá está, na língua portuguesa, a palavra preferencial para o insulto e que tem por trás toda uma ideologia, e toda uma relação de poder, é a palavra "preto", e não "negro".

É claro que a língua portuguesa não é apenas falada em Portugal. Seria interessante estudar como é avaliado este problema das palavras nos restantes países PALOP. O Brasil, um destes países, é onde o debate sobre o assunto está mais adiantado, e isso pode ser constatado se fizermos uma pesquisa na Internet. Por exemplo, segundo um tal Babu, embora ache que não há um certo ou um errado absoluto, é inadequado o uso da palavra “negro” para referir pessoas com ascendência africana. Para o que Babu nos convoca, é que façamos uma reflexão acerca do sentido das palavras, ou seja, como os sentidos foram construídos socialmente e não propriamente acerca da sua etimologia (palavra latina derivada da raiz indo-europeia nekwt, ‘noite’, a mesma que deu em ‘night’. 
O problema surgiu quando o colonizador passou a usar o termo como sinónimo de “escravo com a cor da pele preta”, cuja intenção consistia em desumanizar. Babu não quer ser chamado de “negro”. Ele se sente melhor sendo chamado de “preto”, que é assim nos Estados Unidos da América. Nos Estados Unidos da América “nigger” é uma ofensa muito grave, uma palavra impronunciável que carrega em si a conotação da supremacia branca. O racismo se expressa nela. Por isso, "Black" é como os afro-americanos se definem. E Babu sente-se bem, sente-se respeitado, quando alguém se refere a ele como sendo "preto". Mas a questão não é simples. E é por isso que há muitas teóricas e teóricos que se dedicam a pensar os termos identitários dos dias de hoje.

O corpo feminino foi e é um espaço de constante disputa. No decurso da história este foi sendo modelado por uma série de discursos disciplinadores, opressores e violentos. As mulheres foram ao longo dos tempos tratadas culturalmente como objetos, ao qual não se pode ignorar a questão da sexualidade. A opressão exercida sobre o corpo da mulher por via da sua sexualidade feminina tomou aspetos muito variados com grandes implicações sociais e culturais. No caso das mulheres, ditas "de côr" , os efeitos do machismo atingiram proporções intoleravelmente gritantes. O efeito estereotipado da hipersexualização da "mulher negra africana" contribuiu para a perpetuação da violência e do racismo para com essas mulheres. Quando o assunto é o corpo das "mulheres negras africanas", os problemas são vários. Por um lado, há uma mistura de invisibilidade e rejeição, quando nos meios mediáticos a preferência tende para mulheres brancas. Por outro lado, a sua sexualidade é abusivamente explorada desde muito jovem. Ou seja, a sua natureza ontológica de objeto cresce por interiorização incutida de fora a partir da adolescência. 
 

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