segunda-feira, 31 de maio de 2021

Uma açorda





Agora que já não tenho dentes, e não quero ir ao dentista, não há nada como uma boa açorda. A Ribeira do Porto era para onde os amigos iam festejar à volta de uma mesa comendo e bebendo aqueles pratos típicos à moda do Porto. Construíram-se ali muitas amizades, no tempo em que não se dizia “Champions”, mas “Taça dos Campeões Europeus”. Faz hoje 60 anos que assisti pela primeira vez a um jogo transmitido pela televisão. Foi num café - Chave d'Outo, a preto-e-branco, a final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, Benfica - Barcelona, em que o Benfica ganhou por 3-2, o seu primeiro título nas lides europeias. Os golos foram marcados por José Águas, Coluna, e Antoni Ramallets na própria baliza.

Há alguma amizade que não seja à volta de uma mesa com comida? Talvez também à volta do futebol, mas isso é assunto que não vem agora aqui para a conversa, enquanto tivermos na mente as imagens ainda frescas dos ingleses na Ribeira do Porto, no mesmo sítio onde outrora os antepassados desses ingleses nos vieram dar uma ajudinha para barrar a passagem aos franceses para a outra margem do rio Douro.




Esta estória é apócrifa. Um dia almocei ali no restaurante Marina, à volta de uma mesa com o 14º Dalai Lama (Tenzin Gyatso), o 266º Papa (Jorge Mario Bergoglio), e o 5º Presidente, as grandes forças unificadoras do mundo. Tiramos fotos com o Dalai Lama. É um encanto falar com o Dalai Lama. Éh Pá, Dalai Lama! Risos. Perguntei-lhe, quando era criança, o que é que a mãe cozinhava. Pergunta deslocada, porque ele só tinha lembranças dos monges. Mas tivemos uma conversa fantástica. Mesmo nas situações mais assustadoras, mesmo em pessoas com passados difíceis como o dele no Tibete, a comida pode ser uma ótima forma de abrir uma porta para experiências e prazeres partilhados. Uma das coisas fantásticas, quando conheço alguém, diz o Dalai Lama, é falarmos sobre comida. 
Vocês no Alentejo fazem uma açorda de coentros diferente desta. Põem pão na base e depois coentros por cima. Venho a Portugal e descubro que é mesmo delicioso! É isso mesmo. Tão simples. Não há dúvida de que nos unimos pela comida. Infelizmente, a comida também pode ser usada como uma arma para dividir. Acho que é a nossa função evitar isso e encontrar pontos em comum. Em vez de discutirmos, o melhor é concordarmos nas coisas de que gostamos. Eu adoro legumes. Quer sejamos: keto, paleo, vegano ou vegetariano - todos concordamos que os vegetais são uma coisa boa. 



Vossa Santidade não poderia ter dito melhor sobre o significado para os pequenos prazeres da vida, como um peixe grelhado num pequeno restaurante no Alvor - Fishermans Rest. 




A partir de certa idade é permitido pensar que nem tudo muda sempre para melhor: é o caso da saúde e da chamada "performance" física e psíquica. A propósito de açordas, ouve-se a cada passo aquela frase "não há almoços grátis". Mas eu recordo-me de uma outra frase dita pelo meu avô, que era assim: "não há fodas grátis para velhos".

Há uma grande diferença entre o correto a título individual; e o correto a título coletivo. A título coletivo é correto um velho ir ao dentista, ao oculista, ou fazer o rastreio do cancro. A título individual de um indivíduo velho, já é mais discutível não se poder comprar na feira uma dentadura postiça, ou uns óculos de ver ao perto. É legítimo a um indivíduo velho não querer meter tubos dentro do seu aparelho digestivo, só para falar fino desta vez. As referências de um velho de hoje são mais as de um avô. Quando digo isto as mulheres da casa dizem: "Fala por ti". Dizem as minhas avós. Sim, uma avó é uma avó, muita atenção. Eu sou apenas um avô. Agora, a título coletivo a questão é muito diferente. Imaginemos o surreal. O surreal, é o absurdo dos sonhos. Muitas vezes acordamos ainda envolvidos num sonho que estávamos a ter e pensamos: “que estupidez de sonho, onde é que eu fui buscar isto?” Deve ter sido com uma pergunta destas que Guillaume Apollinaire inventou o Surrealismo. Imaginemos que depois de termos coletivamente gastado uma fortuna em tecnologia para rastreios, por absurdo, ninguém quisesse fazer rastreios. Olhávamos para os aparelhos, para a estrutura montada, e dizíamos: “que desperdício, tanto dinheiro dos contribuintes deitado fora!”

Eu, um dia, quando andava entusiasmado com o budismo, quando ajudei a fundar o PAN (no princípio era só budista e dos animais), idealizei passar uns meses no Tibete, dois, três, quatro meses, isolado, afastado de tudo, sem telefones, sem nenhuma tecnologia. Mas isso era um exílio forçado, deliberado, mas completamente disparatado. Podia ser que esse período fosse convidativo à concentração. Mas depois pensei que seria cansativo. A pessoa a medir os gestos, os passos. Não havia problemas em não ir ao supermercado; em não ir cortar o cabelo ao barbeiro; em não ir aos médicos; aos dentistas. O que me iria custar era não ir aos almocinhos semanais com os meus amigos habituais.

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