No passado 25 de abril, na cerimónia comemorativa dos 47 anos da Revolução dos Cravos, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa fez um discurso que para a maioria dos comentadores e líderes políticos terá sido o melhor discurso que ele alguma vez terá feito. E a forma como abordou a nossa história dos últimos 60 anos, tendo como pano de fundo o fim do império e o colonialismo, não podia ter sido mais oportuna numa altura em que estão a vir ao de cima as feridas que ficaram e ainda mal cicatrizadas devido ao facto de o tema dos estudos pós-coloniais ainda estar a fazer correr muita tinta em Portugal.
Marcelo Rebelo de Sousa falou da guerra de África, da descolonização e da difícil construção da democracia num país destituído de tradições democráticas. Prestou a homenagem devida a todos quantos de um lado e de outro pagaram a fatura mais cara com a sua vida. Lembrou assim os mortos da guerra. E falou também dos retornados e da sua trágica situação ao terem de refazer a vida depois de terem deixado tudo para trás.
Numa era de polarização, radicalismo e desconstrução da história, pediu aos portugueses que olhassem para a sua história com os olhos e as perspetivas dos vários lados, sem cegueira sectária nem anacronismos. Ou seja, ler a história verdadeira enquanto ciência sim, mas sem a julgar ou criminalizar com as grelhas epistemológicas dos dias de hoje.
Segundo o historiador Fernando Rosas, a representação do luso-tropicalismo perdura na sociedade portuguesa atual. O discurso legitimador do colonialismo português apresentando-o como um colonialismo bondoso e tolerante perdura e está muito presente nos discursos oficiais. Fernando Rosas sublinha que o luso-tropicalismo sendo o aspeto mais perdurável da ideologia do Estado Novo nem sequer é um conceito que tenha existido desde o princípio no colonialismo do anterior regime, mas acaba por manter-se ao longo das décadas. Até ao princípio dos anos 1950 a doutrina colonial predominante era a superioridade do homem branco, o darwinismo social, a raça superior, branca e as raças inferiores, os negros e, portanto, o colonialismo era legitimado em nome de uma raça que trazia a civilização e a fé às raças inferiores. Com o final da II Guerra Mundial as circunstâncias mudaram devido ao início do período da descolonização, das independências e dos movimentos de libertação.
Fernando Rosas defende que o Estado Novo importou as ideias do sociólogo brasileiro Gilberto Freire que defendiam que os portugueses teriam um "jeito especial" e um colonialismo diferente e uma forma de se "misturarem" dando origem a sociedades mestiças. Essa ideia do colonialismo bondoso e amigo dos africanos ficou e manteve-se como uma espécie de doutrina oficiosa do Estado português, em democracia, mas a realidade é bem diferente. O colonialismo português, nas suas relações com o africano, foi violento, racista, recorreu ao trabalho forçado, às culturas obrigatórias, ao estatuto dos indígenas, tal como o colonialismo francês, inglês ou belga. Não há grandes diferenças. Pode haver diferenças do ponto de vista administrativo, mas do ponto de vista doutrinário as diferenças não são nenhumas.
Assim, temos de considerar que estamos perante a voz dos que dominaram, e a voz dos que foram dominados. Importa saber se haverá lugar então para uma terceira voz, ou seja, uma voz autónoma. Uma cientista política cabo-verdiana, cujo doutoramento em estudos luso-afro-brasileiros o realizou na Universidade de Massachusetts, pronunciou-se recentemente, mas cuidadosamente, que “Os Maias” de Eça de Queirós, sendo uma das maiores obras de arte da cultura portuguesa, defende que em edições futuras devia ser feita uma introdução pedagógica no sentido de chamar a atenção para o viés do supremacismo, aspeto hoje em dia candente nas novas derivas autocráticas. O supremacismo é uma ideologia que defende, propala e reclama a supremacia de um grupo específico de indivíduos sobre outro ou outros, invocando raça ou características étnicas, religiosas, sociais, culturais e de género pretensamente dominantes.
Vejamos as seguintes transcrições de "Os Maias" de Eça de Queirós:
"Ega declarou muito decididamente ao Sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido quem era seriamente temido... Por isso ninguém agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse lícito dar vergastadas […] Só houvera duas civilizações em que o homem conseguira viver com razoável comodidade: a civilização romana e a civilização especial dos plantadores de Nova Orleães. Porquê? Porque numa e noutra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!” Sousa Neto, perturbado, pergunta a Ega se não acredita no progresso. Ega, “entalando de vez em quando o monóculo no olho”, diz-lhe que não.Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros […] Enfim, o melhor está feito. Em todo o caso há ainda detalhes interessantes a terminar […] Por exemplo, em Luanda […] Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda, precisava-se bem de um teatro normal, como elemento civilizador! "
O sociólogo brasileiro Gilberto Freire, criador da doutrina do luso-tropicalismo, define o “mundo português” – Portugal, Brasil, África e Índia portuguesa, Madeira, os Açores e Cabo Verde – em termos de uma “unidade de sentimento e cultura”. Já alguns anos depois, definirá este mundo em termos de “civilização luso-tropical”: uma cultura e ordem social comuns, às quais confluem homens e grupos de origem étnica e procedências culturais diversas.
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